Por Guilherme Crippa Ursaia*
A expansão e a persistência de práticas inadequadas e perigosas de desmantelamento de navios continuam a ser motivo de grande preocupação, tendo em vista que a demolição no mundo aumentou seis vezes, entre 2007 e 2009, sustentada pela crise econômica e decorrente, também, do excesso de capacidade, já que a frota mundial quase duplicou nos últimos dez anos.
No fim da sua vida útil, a maior parte dos grandes navios mercantes de mar continua a ser desmantelada em estaleiros de baixa qualidade, localizados na Ásia (Índia, Paquistão e Bangladesh), em geral pelo método de varar o navio, resultando impacto ambiental e sanitário considerável, por não constituir método de reciclagem seguro, ante as péssimas condições de trabalho, ausência de direitos dos trabalhadores, proteção da saúde pública e preservação do meio ambiente.
Esses aspetos negativos impedem que a reciclagem de navios se torne uma indústria verdadeiramente sustentável.
É previsível que esta situação se agrave, já que se prevê o desmantelamento de um grande número de navios nos próximos anos, devido à sobrecapacidade da frota mundial, que, segundo as estimativas, se deverá manter, pelo menos, nos próximos 5 a 10 anos. Prevê-se, além disso, que o próximo pico de demolições, por volta de 2015, decorrente dos prazos de retirada de serviço dos petroleiros de casco simples, vá beneficiar essencialmente os estaleiros de pior qualidade.
A atual capacidade de reciclagem de navios nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) não é suficientemente explorada.
A situação atual da reciclagem de navios é caracterizada por uma externalização excessiva dos custos. Por conseguinte, a grande maioria da frota de navios destinada à reciclagem é desmantelada em praias de certos países, em condições humanas degradantes e prejudiciais para o ambiente, que são inaceitáveis.
Para desmanchar um navio, seguindo as melhores práticas, o custo é igual ou até mais alto do que construir um novo navio. A alternativa encontrada é a deposição de navios em locais onde leis trabalhistas, normas de segurança e ambientais, não têm qualquer valor, como as praias de Chittagong, Alang, Aliaga, Kaohsiung, ou mesmo na África e Haiti.
Navios de todos os tamanhos, tipos e bandeiras são descartados nesses locais e a demolição é feita por homens, mulheres e crianças, sem qualquer preocupação com a segurança das pessoas e do meio ambiente, isto graças à fraca legislação ambiental local e ao baixíssimo custo com mão de obra.
Sem contar que as substancias nocivas presentes nos navios que são demolidos criaram um cinturão de degradação nas praias, que foram cobertas por óleos e por restos de metais pesados.[1]
O regulamento relativo às transferências de resíduos aplica na União Europeia os requisitos da Convenção de Basileia sobre o controle dos movimentos transfronteiriços de resíduos perigosos e sua eliminação. Aplica também o disposto numa alteração à Convenção (proibição de Basileia), que proíbe a exportação de resíduos perigosos para fora da OCDE. Essa alteração não entrou ainda em vigor à escala internacional por não ter sido ratificada por número suficiente de Estados. Nos termos desse regulamento, os navios embandeirados na EU, enviados para desmantelamento, são classificados como resíduos perigosos por neles estarem presentes substâncias perigosas.
Sendo assim, só podem ser desmantelados em países da OCDE. No entanto, este regulamento é quase sistematicamente ignorado pelos navios embandeirados na UE, o que torna ineficazes tanto as normas internacionais como a legislação da União. Esse incumprimento generalizado está relacionado, em primeiro lugar, com a falta de capacidade de reciclagem na OCDE, nomeadamente para os navios de maior porte. A capacidade existente à escala europeia é utilizada para o desmantelamento de navios de pequeno porte e de navios do Estado, mas não para os navios mercantes de mar de grande porte. Tal como a construção naval, o desmantelamento de navios tem-se transferido nas últimas décadas de países europeus para países não-OCDE, por razões de ordem econômica (procura de aço, baixos custos da mão de obra, não internalização dos custos ambientais).
Disso decorre que a opção de criar capacidade suplementar de desmantelamento na Europa não tem sido economicamente viável.
Ora, do ponto de vista do princípio do poluidor-pagador, os custos decorrentes da reciclagem e tratamento ecológicos dos navios devem ser assumidos pelos proprietários dos mesmos.
Para fins de proteção da saúde humana e do meio ambiente, deve ser estabelecido um mecanismo financeiro capaz de gerar recursos que contribuam para que a reciclagem e o tratamento ecológicos sejam competitivos de um ponto de vista econômico.
A legislação atual não está adaptada às características específicas dos navios. É difícil determinar quando um navio se converte em resíduo. Para decidirem da reciclagem de um navio, os armadores comparam os custos e benefícios de manterem o navio em serviço e de seu envio para desmantelamento.
Se essa decisão é tomada quando o navio está em águas internacionais ou em águas sob jurisdição do Estado reciclador, é muito difícil, ou mesmo impossível, aplicar os procedimentos do regulamento relativo às transferências de resíduos. Além disso, os navios de comércio que largam de portos e águas europeus para desmantelamento, otimizam, em geral, a sua última viagem, transportando mercadorias para a Ásia. Se o armador não declarar sua intenção de desmantelar um navio à largada deste de um porto da UE, as autoridades competentes geralmente não podem intervir. O regulamento relativo às transferências de resíduos estabelece direitos e obrigações para o Estado exportador, o Estado importador e, se for o caso, os Estados de trânsito. Contudo, os Estados portuários não estão necessariamente informados da intenção do armador de reciclar um navio. Por último, também não é incomum que um navio seja vendido a outro operador, a pretexto de que continuará no ativo, unicamente para ser transferido para um estaleiro de desmantelamento.
Para melhorar a situação, as Partes na Convenção de Basileia solicitaram, em 2004, à Organização Marítima Internacional (OMI) que estabelecesse requisitos obrigatórios para a reciclagem de navios. Em 2006, as Partes na Convenção de Basileia saudaram as iniciativas tomadas pela OMI na elaboração do projeto de Convenção sobre a reciclagem de navios e reconheceram a necessidade de se evitar a duplicação de instrumentos com o mesmo objetivo.
As Partes foram convidadas a avaliar o nível de controlo e execução estabelecido pela Convenção de Basileia na sua integralidade e o nível previsto de controle e execução que proporcionaria o projeto de convenção sobre reciclagem de navios na sua integralidade e comparar as duas convenções.
Em maio de 2009, a Organização Marítima Internacional adotou a Convenção Internacional de Hong Kong sobre a Reciclagem Segura e Ecológica dos Navios (Convenção de Hong Kong). Quando entrar em vigor, esta convenção exigirá que as Partes (incluindo os Estados-Membros) desmantelem os seus navios mercantes de grande porte unicamente em países que sejam parte na Convenção. Nestes poderão incluir-se os países asiáticos, cujos estaleiros de desmantelamento de navios deverão cumprir as normas internacionalmente aceites (superiores às normas atuais). O tratamento dado por esses estaleiros aos navios de Partes não contratantes deverá ser análogo ao dado aos navios de bandeira das Partes na Convenção (cláusula de não aplicação de tratamento mais favorável).
A Convenção de Hong Kong foi adotada em 2009, mas terá de ser ratificada por um número suficiente de grandes Estados de bandeira e Estados recicladores para entrar em vigor e começar a produzir efeitos, o que não deverá acontecer antes de 2020, no mínimo. A Convenção entrará em vigor vinte e quatro meses após a data em que estejam reunidas as seguintes condições:
– terem assinado a Convenção, sem reservas quanto à sua ratificação, aceitação ou aprovação, ou depositado o instrumento requerido de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão, de no mínimo, 15 Estados,
– cujas frotas mercantes combinadas constituam, no mínimo, 40 % da arqueação bruta da frota mercante mundial, e
– cujo volume máximo anual combinado de reciclagem de navios nos 10 anos anteriores represente, no mínimo, 3 % da arqueação bruta das suas frotas mercantes combinadas.
As Partes na Convenção de Basileia saudaram a adoção da Convenção de Hong Kong em 2006 e empreenderam uma avaliação preliminar da equivalência do nível de controle e execução proporcionado por esta convenção com o estabelecido pela Convenção de Basileia.
Em abril de 2010 a União Europeia e os Estados-Membros finalizaram a sua avaliação, que concluiu que a Convenção de Hong Kong parece proporcionar um nível de controle e execução pelo menos equivalente ao proporcionado pela Convenção de Basileia em relação aos navios classificados como resíduos ao abrigo da Convenção de Basileia.
Em outubro de 2011, as Partes na Convenção de Basileia apelaram para a ratificação da Convenção de Hong Kong, de forma a tornar possível a sua entrada em vigor.
Em 2007, a Comissão adotou um Livro Verde intitulado Melhorar as práticas de desmantelamento de navios, e uma comunicação que apresenta uma estratégia da UE para o desmantelamento de navios, em 2008. Essa estratégia visava a adoção de medidas para melhorar o mais rapidamente possível as condições de desmantelamento de navios, inclusive no período de transição anterior à entrada em vigor da Convenção de Hong Kong, nomeadamente, preparar o estabelecimento de medidas sobre os elementos fundamentais da Convenção, incentivar ações voluntárias do setor, prestar assistência técnica e apoio aos países em desenvolvimento e melhorar o cumprimento da legislação atual.
A Convenção abrange a utilização de materiais perigosos nos navios, de forma a facilitar a reciclagem segura e ecológica sem comprometer a segurança e a eficiência operacional dos navios; abrange, igualmente, mediante orientações específicas, a exploração dos estaleiros de reciclagem de navios e inclui um mecanismo de execução para sua reciclagem. A Convenção de Hong Kong não se aplica a navios que sejam propriedade do Estado, a navios com menos de 500 toneladas de arqueação bruta (GT), nem a navios que operem apenas em águas sujeitas à soberania ou à jurisdição do Estado cuja bandeira o navio está autorizado a arvorar.
A Convenção de Hong Kong também não abrange a reciclagem do aço proveniente dos estaleiros de reciclagem de navios ou das operações em estaleiros que manipulem materiais perigosos. Além disso, a Convenção de Hong Kong não visa prevenir a exportação de navios que se converteram em resíduos perigosos para países que não sejam membros da OCDE, prática esta atualmente proibida pelo Regulamento (CE) n.º 1013/2006.
A Convenção de Hong Kong prevê expressamente que as suas Partes sejam capazes de tomar medidas mais rigorosas, consentâneas com o direito internacional, no que respeita à reciclagem segura e ecológica dos navios, para prevenir, reduzir ou minimizar os efeitos adversos para a saúde humana e o ambiente.
O estabelecimento de uma lista de estaleiros de reciclagem de navios que cumprem os requisitos desse regulamento deverá contribuir para o objetivo, bem como para uma melhor aplicação da Convenção, na medida em que facilitará o controle pelos Estados de bandeira dos navios enviados para reciclagem. Os requisitos aplicáveis aos estaleiros de reciclagem de navios deverão basear-se nos requisitos da Convenção de Hong Kong, mas deverão ir mais longe, para alcançar um nível de proteção da saúde humana e ambiental que seja amplamente equivalente ao da União Europeia. Isto contribuiria igualmente para aumentar a competitividade da reciclagem e tratamento seguros e ecológicos dos navios.
Conclusão:
No Brasil, inicialmente cumpre destacar que a Lei n. 12.305, de 2 de agosto de 2010 que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos reúne princípios, objetivos, instrumentos, diretrizes, metas e ações a serem adotadas pela União isoladamente ou em parceria com o Distrito Federal, Estados, Municípios e particulares, visando a gestão integrada e o gerenciamento ambientalmente adequado dos resíduos sólidos.
O Decreto n. 7.404/10 tem por objetivo regulamentar os dispositivos da Lei n. 12.305/10, que já estão em pleno vigor.
Dentre elas destacam-se a introdução da responsabilidade compartilhada dos fabricantes, importadores, distribuidores, comerciantes, consumidores, bem como os titulares dos serviços públicos de limpeza urbana e manejo dos resíduos sólidos; de acordos setoriais e logística reversa.
O objetivo da responsabilidade compartilhada é a co-responsabilização dos envolvidos na cadeia de consumo de determinado produto, em todo o seu ciclo de vida, visando o direcionamento adequado dos resíduos após o consumo, a minimização da geração e a redução dos impactos à saúde humana e a qualidade ambiental.
A logística reversa, nos termos da lei, nada mais é do que a forma com que determinado produto retornará ao seu fabricante após o consumo ou que sua disposição final ocorra de maneira adequada. Este processo será feito através de acordo setorial (natureza jurídica contratual), regulamento e mediante termos de compromisso.
A Lei fixa as “cadeias” com obrigatoriedade de implementação desta logística (agrotóxicos, seus resíduos e embalagens, assim como outros produtos cuja embalagem, após o uso, constitua resíduo perigoso, como pilhas e baterias, pneus, óleos lubrificantes, seus resíduos e embalagens, lâmpadas fluorescentes, de vapor de sódio e mercúrio e de luz mista, produtos eletroeletrônicos e seus componentes), prevendo, inclusive sua extensão por meio de instrumentos como os termos de acordo, planos de resíduos.
Está claro que tal obrigação pode ser estendida a outros setores, ainda que não haja uma disposição expressa em lei sobre o tema, como no caso dos navios, por exemplo.
É necessário reconhecer que a Lei de Resíduos Sólidos trouxe alguns casos de aplicação imediata pelo só efeito desta Lei, mas, deixou em aberto, a possibilidade de ampliação para outros casos, conforme se percebe da redação do parágrafo primeiro, do artigo 33.
Portanto, é de se reconhecer que o rol de produtos sujeitos à logística reversa é meramente exemplificativo na lei, podendo ser ampliado para outros, sem nenhum problema.
Trata-se da aplicação do princípio da responsabilidade pós-consumo independentemente de qualquer regulamentação, para que se obriguem os fabricantes de determinados produtos a recolhê-los e dar-lhes destinação adequada.
Outro ponto que merece destaque é a análise de sua exigência nos planos de gerenciamento de resíduos sólidos que devem ser levados a efeito por alguns geradores, sendo que tal análise deverá ser feita no âmbito do processo de licenciamento ambiental.
Além disso, quando o consumo de determinado produto causar risco anormal ao meio ambiente ou à saúde humana é possível aplicar-se a responsabilidade pós-consumo, que poderá ter dois fundamentos: periculosidade intrínseca do produto ou/e periculosidade decorrente do consumo em massa.
Estando presentes um destes fundamentos, ou ambos, independentemente da vigência da Convenção de Hong Kong para navios, é possível obrigar judicialmente os fabricantes pela responsabilidade pós-consumo de seus produtos, ou resíduos, sendo possível também ao CONAMA regulamentar as hipóteses de responsabilidade pós-consumo, como o fez nos casos de pilhas e baterias, pneus, óleo lubrificante, dentre outros.
*Guilherme Crippa Ursaia é Advogado, Auditor Líder Ambiental – ISO 14001 pela Bureau Veritas, tendo trabalhado no Folkecenter for Renewable Energy, Solar Panels, na Dinamarca e Center for Alternative Technologies – CAT , no País de Gales (Reino Unido). É membro da Comissão de Meio Ambiente e da Comissão de Energia da Ordem dos Advogados do Brasil – Subseções de Santa Catarina e São Paulo. Gerencia as áreas de Sustentabilidade e de Novos Negócios do escritório Pinheiro Pedro Advogados.