DESTRUIÇÃO DA IDENTIDADE SOCIAL DO TRABALHO ACADÊMICO
“A racionalidade pode muito bem ser a inimiga da inteligência”
(Kornberger e Clegg)
Por Marilene Nunes (*)
No Século XIX, Max Weber previu que a burocracia seria uma ferramenta necessária à construção da modernidade, no sentido de ser eficiente na promoção da expansão do capitalismo industrial. O referido estudioso apontou que a sua disseminação implicaria na inevitável redução das individualidades, bem como, na consequente perda da liberdade.
As teses de Weber se confirmaram. O paradigma burocrático de regulação e controle social por meio de tecnologias políticas autoritárias alastrou-se como uma febre virótica por toda a sociedade de base industrial. Sob a égide da racionalidade instrumental, à organização do trabalho, seja no âmbito do estado, ou nas organizações empresariais, foram impostos padrões materiais de regulação e procedimentos de controle jamais vistos.
A burocracia enquanto sistema racionalista criou e fez uso de paradigmas de gestão autoritários e desumanos, tais como, o taylorismo, o fordismo e outras vertentes da administração racional do trabalho, que em detrimento da produtividade acabou por destruir grande parte da criatividade dos indivíduos no processo de trabalho. Todavia, as tecnologias de controle social jamais conseguiram eliminar a identidade social dos trabalhadores. Nos diferentes campos de atividades laborativas, os trabalhadores mantiveram intacta a capacidade subjetiva de refletir a própria prática social no cotidiano do trabalho. A consciência de pertencer a um grupo social profissional, com saberes e culturas sobre a atividade laborativa lhes era inerente.
Nesse contexto, é importante enfatizar que a participação ativa dos sujeitos na constituição da identidade grupal sempre afetou todo o contexto histórico em que as relações sociais são produzidas, conferindo ao trabalho, grande relevância social. O que somos é a nossa identidade social, que depende essencialmente daquilo que fazemos. Graças à preservação desta consciência, frente à situação de grande hostilidade e controle social coercitivos, os trabalhadores conseguiram produzir relações sociais solidárias entre si e, entre as distintas categorias profissionais.
As burocracias tradicionais foram politicamente hegemônicas até o final do Século XX. Quando a indústria deixou de ser à base de sustentação econômica do capitalismo; o seu declínio se tornou inexorável. O novo padrão de acumulação exigiu, mundialmente, rearranjos dos grupos políticos de poder que culminou no surgimento e ascensão do que eu denominarei de neoburocracias.
O fenômeno do aparecimento das neoburocracias coincide com o fortalecimento dos grupos sociais esquerdistas de várias orientações ideológicas, que através do sufrágio universal, tomou o poder de Estado nas duas últimas décadas do século XX e primórdios do século seguinte. As sociedades democráticas emergentes, alicerçadas sob o Estado Democrático de Direito foi fator preponderante para a existência e consolidação do poder político das neoburocracias.
Teoricamente, as burocracias tradicionais, eram fundamentadas em um projeto político moralizante com o objetivo de atingir a igualdade e a justiça social entre os indivíduos, por meio de ações reguladoras disciplinares, que na prática revelou-se instável, mesmo porque, os trabalhadores se constituíam como mecanismos de resistências que lhe quebravam a ordem institucional. No pensar burocrático, o Estado e as organizações empresariais deveriam ser comandados por tecnocratas ou detentores de um conhecimento cientificista, que livrariam os indivíduos de todas as mazelas sociais. Este delírio obsessivo, levado ás últimas consequências, resultou no aparecimento de estados totalitários, que por ilustração cito o Nacional Socialismo Alemão e o Comunismo Soviético.
O projeto político da neoburocracia em relação a sua antecessora diverge não somente pela capacidade de inovar frente às tecnologias políticas de controle social do trabalho, mas, sobretudo, por se tratar de um projeto político amoral. As novas tecnologias políticas de controle capitaneadas pelas neoburocracias tornaram-se mais visíveis à proporção que o seu projeto político de reformas amoralizantes adentrou as organizações escolares e universitárias.
O trabalho acadêmico, por ser de natureza intelectual, manteve as burocracias tradicionais nos limites das reformas estruturais e técnicas. É o caso da reforma instituída em 1968 nas universidades públicas brasileiras, que teve como principal objetivo extinguir as cátedras substituindo-lhes o modelo de organização departamental; formalizar o plano de carreira docente, além de constituir um fundo de financiamento para a expansão dos programas de pós-graduação e da pesquisa científica. Estas medidas resultaram no elevado índice de crescimento do ensino universitário público no Brasil. Já o ensino de pós-graduação, implementado a partir do Parecer nº 977 (BRASIL/MEC), também ficou restrito à sua composição estrutural e administrativa, o que significa que não enfatizou diretamente o processo de trabalho docente.
A essência do trabalho acadêmico, que consiste na produção do conhecimento cientifico crítico e independente permaneceu de forma indelével. É evidente que o regime de exceção, que vigorava nesse período histórico acabou por afastar vários docentes do espaço acadêmico. Embora lhes fossem restringidos o espaço para atuação prático crítica reflexiva, isto não lhes destruiu a identidade social. Ser docente, no espaço acadêmico e fora dele, mesmo por força de exceção significava ser intelectual e comprometido com a produção do conhecimento e a verdade. Muitos professores universitários, mesmo perseguidos e impedidos de se manifestarem politicamente, tinham a consciência do seu papel social e fizeram frente ao autoritarismo perpetrados pelas burocracias militares.
No Brasil atual, a neoburocracia, controlada pelo Partido dos Trabalhadores – PT, e por outras facções que o apoia, tem como projeto político sequestrar todo o pensamento inteligente produzido na academia e destruí-lo no seu nascedouro. A reforma, em curso nas universidades públicas brasileiras, denominada de Sistema CAPES de Avaliação, se desenvolve de forma sutil e silenciosa, e tem como missão transformar o trabalho acadêmico em outra “coisa” distinta do que é, ou seja, pretende dar um novo sentido ao que seja lecionar, aprender, pesquisar, enfim almeja “designificar” o trabalho acadêmico na universidade e para a sociedade eliminando a sua identidade social.
A reestruturação produtiva do trabalho acadêmico, já em vigor, foi delineada mais claramente no documento V PNPG – Plano Nacional de Pós-Graduação, onde está exposta à estratégia para “avaliar” a produtividade do trabalho docente. Um olhar mais crítico permite compreender o real objetivo do plano que é a regulação das atividades acadêmicas e, não, a sua avaliação, que seria salutar e necessária.
O conceito de regulação diz respeito à criação de regras para orientação das condutas dos indivíduos; trata-se de uma tecnologia política de controle social cujos mecanismos visam manter o equilíbrio do sistema pelo rigoroso cumprimento de regras. Fiel a este conceito o Sistema CAPES de “avaliação” estabeleceu novas regras para definir o que seja excelência no desempenho da atividade acadêmica, regras de um fazer completamente alienígena à cultura do trabalho acadêmico. Utilizam-se para isso, instrumentos matemáticos com escalas aleatórias para explicitar os valores do desempenho acadêmica, valores estes, atrelados aos interesses da neoburocracia acadêmica, integrados às políticas mais globais do governo federal.
Assistimos a morte da autonomia universitária. Em seu lugar vemos o nascimento de um modelo heterônomo de organização, em cujo bojo não há espaço para a inteligência, o pensamento crítico reflexivo. Sem autonomia de pensamento a inteligência morre.
Diante de uma política de controle social tão perversamente amoral, para controlar as vozes dissonantes, Stalin, Hitler e Gobbels, o chefe do serviço de propaganda nazista, foram superados pela neoburocracia petista. Afinal para alcançar o mesmo objetivo eles precisaram do assassinato em massa, do confinamento no GULAG e em campos de concentração, além de formar uma feroz polícia de repressão política, como foram a GESTAPO, TCHEKA, KGB, STASI, quando tão somente bastava acabar com a inteligência dos indivíduos e fazer no dizer de Aldous Huxley : “as pessoas amarem a servidão, em troca da segurança e proteção da tirania da utopia assistencial”.
Mediante tais fatos, uma coisa é certa, se nada for feito, a neoburocracia conseguirá unir uma inconciliável antinomia entre totalitarismo e democracia, ao constituir a “Democracia Totalitária”, o neofascismo.
Referências:
HUXLEY, H. O admirável mundo novo. Biblioteca azul, São Paulo, 2014.
PARECER nº 977, (BRASIL/MEC), Brasília, 1968.
PLANO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO. (CAPES/MEC), Brasília, 2011.
WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Companhia das Letras, São Paulo, 2004.
(*) Marilene Nunes é Doutora em Gestão em Políticas Públicas pela USP. Mestre em Economia Política pela UFRGS. Especialista em Gestão do Conhecimento pela Fundação Getúlio Vargas. Especialista do Conselho Estadual de Educação-SP. Docente em Programas de Pós-Graduação e autora de vários artigos acadêmicos no Brasil e no exterior. Articulista no Portal Ambiente Legal.
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