Programa instituído pelo governo paulista oficializa condutas que deveriam ser banidas da Administração
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
Estamos num raro período de alinhamento da sociedade com o Estado, sob o patrocínio da equipe econômica do governo e do Congresso Nacional, para enfrentar o desafio de inserir o Brasil no rol das grandes economias sustentáveis do mundo.
A reforma tributária é ponto de destaque desse esforço de alinhamento. A política fiscal deve produzir justiça sem prejudicar a competitividade do Brasil no comércio internacional. Precisa compreender a cidadania para além da contribuição e, por isso mesmo, deve resgatar os princípios básicos de justiça fiscal.
Porém, se muito já foi dito e escrito sobre princípios e fórmulas que precisam ser aperfeiçoadas, modificadas ou erigidas, pouco se disse sobre o que é preciso ser eliminado e esquecido.
Um bom exemplo do que deve ser eliminado – que aliás é verdadeira síntese dos procedimentos nefastos que há séculos contaminam a Administração Fiscal no Brasil, é a Lei Complementar paulista nº 1.320 de 2018, não por acaso alcunhada de “Nos Conformes”.
O nome popular do marco legal não poderia ser mais adequado, posto que a expressão remete ao que há de pior na burocracia, no serviço público e na fiscalização.
Não é segredo que entraves burocráticos e procedimentos complexos sempre geraram acumulação de créditos de ICMS e pagamentos indevidos. O manicômio tributário estadual é ampliado pela política de casuísmos implementada na esfera de arrecadação do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços.
De fato, o volume de casuísmos no âmbito do ICMS sempre gerou insegurança jurídica e transmitiu ao contribuinte aquela interminável sensação de sempre estar errando em alguma coisa. Essa sensação sempre foi a chave usada para abrir a porta do “acerto” e da corrupção entre agentes da fiscalização e o cidadão contribuinte.
O mais poderoso estado da federação, no entanto, ao invés de investir na moralização, publicidade e simplicidade contra os procedimentos cavernosos, resolveu criar o marco “Nos Conformes”.
O governo paulista, com o aval integral da Assembleia Legislativa (considerada o túmulo da política no Brasil), resolveu aprimorar a via subterrânea da solução dos impasses fiscais.
O “Nos Conformes”, a pretexto de instituir um mecanismo de conciliação, criou um mecanismo de coação, de chantagem burocrática e favorecimento.
Com efeito, a lei Lei Complementar nº 1.320 de 2018 extrapola todos os limites da criatividade não republicana. Cria um “cadastro positivo-negativo” diferenciando contribuintes devedores, favorecendo uns em relação a outros, inclusive quanto á possibilidade de contestar a própria posição no referido cadastro – sem estabelecer regra clara de transparência nos procedimentos de reclassificação.
Também permite que o grande devedor, capaz de avaliar o risco de autuação, se antecipe à fiscalização e busque negociar as condições para sanar preventivamente a inconformidade – vale dizer, entrar “nos conformes” prevendo a autuação.
Por óbvio que o inconforme consciente sai premiado, participando do “programa de incentivo à autorregularização” e propondo “contrapartidas”, enquanto aquele comerciante comum, que inocentemente pensa estar em situação regular, pego pela interpretação do fiscal na análise de seus livros, ou inadimplente há apenas “dois meses”, jamais terá oportunidade de fazê-lo – pois cairá na teia de casuísmos interpretativos da fiscalização e, dela só sairá nos conformes pagando ou… pagando.
Vale dizer, a lei premia um seleto grupo de contribuintes que calculam riscos e executam “planejamento fiscal”… para o bem e para o mal. Justamente os tubarões do comércio, pertencentes ao topo da cadeia alimentar de nossa economia.
Esse grupo de grandes conglomerados industriais, atacadistas, e varejistas, que têm porteira aberta junto aos governantes de plantão, ganha com a lei o poder de direcionar preços e cortar fornecimento sem perder mercado, pois recebe tratamento favorecido e diferenciado às avessas, lidando com uma burocracia menos pesada, obtendo devolução rápida do que pagou indevidamente e recebendo salvo conduto mediante uma auditoria “orientativa”, que permite as correções sem punição.
Enquanto isso, para os demais contribuintes – aqueles que lutam todos os dias para cumprir as exigências ciclópicas e, vez ou outra, vêem-se obrigados a atrasar um recolhimento de tributos para priorizar a folha de pagamento e a manutenção do seu bom cadastro perante fornecedores, o tratamento do estado-cobrador permanece implacável, sujeito às pesadas multas tributárias.
Em síntese, a lei viola a isonomia, a moralidade, a razoabilidade, a proporcionalidade e a eficiência, princípios constitucionais que deveriam embasar a relação fisco-contribuinte.
Como se não bastasse a falta de isonomia e a chantagem autorizada sobre os contribuintes, a malsinada lei distorce a ação dos agentes públicos responsáveis pela arrecadação tributária – oficializa o “acerto”, a pretexto de flexibilizar a aplicação da lei.
Para piorar, a lei traz o seu “jabuti” corporativo. De fato, ela cria um incremento de remuneração – apelidado de verba indenizatória, ATIM, que impele o fiscal a tratar desigualmente contribuintes que deveriam ser tratados de forma igualitária.
É patente que a gratificação, disfarçada de verba “indenizatória”, é mais um “penduricalho” bem engendrado pelo Executivo Paulista, construído para burlar o teto do funcionalismo.
Trata-se de uma saída tipicamente “tucana”. Ao invés de resolver a questão da má remuneração dos agentes públicos responsáveis pela arrecadação tributária, desvinculando o teto do funcionalismo estadual dos subsídios do governador para vincular ao dos ministros do STF – como já ocorre em todas as demais unidades da federação, o governo paulista recorreu a um expediente de burla à lei do teto.
Conclusão
O programa da forma como redigido, aparenta ser algo que não é – muito pelo contrário. O que ele pode estar criando é verdadeira “reserva de mercado” para determinados contribuintes junto á cúpula da administração tributária do Estado.
O rol de possibilidades embutido na lei permite traçar uma sinopse bastante interessante, na hipótese de ocorrer uma autuação fiscal:
Fiscal honesto + contribuinte honesto= autuação
Fiscal honesto + contribuinte desonesto= pré notificação / autorregularização
Fiscal desonesto + contribuinte honesto = autuação
Fiscal desonesto + contribuinte desonesto = pré notificação / autorregularização
O quadro de hipóteses, acima, não poderia ser mais ilustrativo do risco
Resumindo, a Lei Complementar n. 1.320/2018 é inconstitucional e reúne a síntese de tudo que um novo sistema tributário brasileiro deve evitar.
Uma vergonha vigorar tamanho disparate no mais pujante estado da federação… sem que Ministério Público, Fiscais, Tribunal de Justiça, Deputados e o próprio governador corem de vergonha pelo mal-feito que estão causando ao sistema.
Tristes tempos.
Nota:
https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei.complementar/2018/lei.complementar-1320-06.04.2018.html
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB. Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API, é Editor – Chefe do Portal Ambiente Legal, do Mural Eletrônico DAZIBAO e responsável pelo Blog The Eagle View
Fonte: The Eagle View