É preciso reconhecer as origens do Sistema Nacional do Meio Ambiente para entender o que é necessário mudar
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
O REGIME MILITAR – DO FIM AO COMEÇO
Foi no ano de 1981. No Brasil de trinta e três anos atrás os militares ainda comandavam o Estado Brasileiro.
O regime instalado em 1964 estava no então chamado processo de “abertura”. O presidente do País era o General Figueiredo, empenhado em conduzir uma redemocratização na base do “prende e arrebenta”, impondo um diálogo institucional lotado de solavancos, Estado de Emergência, enquadramentos na Lei de Segurança Nacional, atentados de direita e movimentos com grandes mobilizações de massa popular, como o das “Diretas Já”.
O momento era de esgotamento do regime autoritário, sem uma perspectiva clara do que ainda viria pela frente – cheio de contradições e, talvez por isso mesmo, menos sujeito ao espírito “desenvolvimentista”, ditatorial e insensível a clamores sociais, instalado em 1964 e cristalizado com o Ato Institucional n.5 em 1968.
Foi neste clima de “desaceleração”, nos anos 80, que se desenharam os principais instrumentos que configuram o Zoneamento Industrial e a Política Nacional do Meio Ambiente, ainda em vigor no país.
A Lei de Zoneamento Industrial nas Áreas Críticas de Poluição (Lei Federal 6.803/1980) e a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei Federal 6.938/1981) estabeleceram um arcabouço sistêmico, construíram um organograma e instalaram uma estrutura burocrática de gestão.
Num período de refluxo do “Brasil Grande”, esses dois marcos legais agiram na consolidação das normas de ordenamento do solo para a instalação de fontes de poluição, na instituição da Avaliação de Impacto Ambiental como instrumento do licenciamento ambiental e na articulação entre entes federados dentro de uma estrutura sistematizada de gestão do meio.
O marco legal de 1981 – PNMA, autorizou o Ministério Público brasileiro a agir com autonomia na prevenção, repressão e reparação do dano ambiental. Esse dispositivo legal demandou radical reestruturação daquele órgão ministerial e reclamou implementação urgente de norma processual que permitisse o cumprimento do novo dever imposto à instituição – o que veio a ocorrer em 1985, com a Lei Federal 7.347 – Lei da Ação Civil Pública.
Esses marcos, no entanto, significaram apenas um corolário de todo um esforço legal efetuado durante vinte anos, em prol de um Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA), que traçasse diretrizes para o controle territorial pretendido pelo Regime Militar.
Foi durante o regime militar que surgiram os marcos legais balizadores da política ambiental no Brasil, quais sejam: o Estatuto da Terra (1964), a Lei da Ação Popular (1965), o Código Florestal (1965), a Lei da Pesca (1967), o Estatuto de Proteção à Fauna (1967), Lei Complementar criando as Regiões Metropolitanas (1973), o Decreto-Lei de Controle da Poluição em Zonas Críticas (1975), a Lei de Responsabilidade por Danos Nucleares (1977), as Normas Regulamentadoras de Prevenção, Saúde e Segurança do Trabalho e a Lei de Parcelamento do Solo Urbano (1979). Nesse período, também surgiram normas estaduais de significativa importância, como a de Zoneamento Industrial Metropolitano de São Paulo (1978) e, a partir de 1975, as normas estaduais de controle de poluição (nos estados do Rio, São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais), que instituiram agências de controle ambiental respectivas.
Os Militares consolidaram no Brasil a cultura do Planejamento. Baixaram por Lei Planos Nacionais de Desenvolvimento e Planos Estratégicos Setoriais, alguns seguidos até hoje à risca, como o Plano Nacional de Viação (1973) – que foi incorporado integralmente no Plano de Aceleração do Crescimento do Governo Lula (2007).
Esse conjunto de leis formou o quebra-cabeça do controle do regime militar sobre o meio ambiente do país, e a peça principal, moldada em 1981, foi a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente.
Aprovada praticamente por unanimidade, (teve apenas dois votos contrários no Congresso), a Lei no. 6.938, instituindo a Política Nacional do Meio Ambiente, uniu governo, oposição, empresários, produtores rurais e ecologistas na busca de mudanças de como concebermos nosso desenvolvimento nacional.
A Lei 6938, é fato, deu ao Brasil uma perspectiva global do meio ambiente, sem apartar desse universo a imprevisível e imprescindível criatura humana. Foi urdida muito à frente do seu tempo, quando ainda não havia no país uma estrutura de proteção aos interesses difusos, inexistia um ambiente de regulação por setor econômico e não se adotava um modelo de participação da sociedade civil organizada na administração pública, por meio de conselhos.
A CHAVE DA QUESTÃO: UM PROJETO NACIONAL
Por óbvio que figuras importantes como o Secretário Nacional de Meio Ambiente no regime militar – Professor Paulo Nogueira Neto, entre tantos outros, tiveram papel importante.
No entanto, o fator objetivo que demandou esse avançado arcabouço de tutela ambiental, foi a existência de um PLANO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO, relacionando produção, integração, infra-estrutura e logística.
A existência de um plano estratégico de Poder, voltado para o desenvolvimento nacional, concebido com técnica e disciplina, ainda que num espectro tipicamente autoritário, DEMANDOU a política normativa de proteção ambiental, aperfeiçoada ao longo de um período de 20 anos, durante o regime militar.
A política ambiental foi implementada na medida em que os ecossistemas passaram a ser impactados pelas alterações do meio físico, social e econômico – impactos decorrentes da implementação das políticas relacionadas à concepção desenvolvimentista. A prioridade era o crescimento econômico e estabilização social do regime. O conjunto de normas obedeceu, assim, dois ciclos: de início o meio rural (anos 60/70), em seguida o meio urbano (anos 70/80).
Essas normas legais de controle ambiental sofreram dificuldade na sua implementação, posto que avançadas demais para o aparato burocrático e cartorial existente no país. Porém, sem dúvida, balizaram a ascensão do Brasil, no espaço de vinte anos, de país com o 45º. PIB do mundo, em 1964, para o 10º. PIB mundial, em 1985.
Para se ter uma ideia, ainda estamos, em 2014, trinta anos depois, posicionados no décimo lugar.
No mesmo período, foram criados 13 milhões de empregos, a produção de petróleo cresceu de 75 mil para 750 mil barris/dia, implementou-se com incentivo estatal a estruturação de um pool de grandes firmas de engenharia privada (quase todas elas ainda servindo de base, até hoje, para a instalação de obras de infraestrutura no Brasil e no mundo), instalaram-se agências de fomento e gestão importantíssimas como a Embrapa, EBTU, Eletrobrás, Nuclebrás, Embratel, surgiram programas governamentais como o pro-álcool e foram construídas em território nacional quatro das seis maiores usinas hidrelétricas do mundo. Foram implantados 43 mil quilômetros de estradas asfaltadas, construídos ou modernizados 24 portos marítimos e estaleiros, instalado metrô no Rio e São Paulo.
Importante citar, no campo do conhecimento científico-acadêmico, a criação do CNPq, FINEP e CAPES, até hoje responsáveis pela regulação, condução e aporte financeiro das atividades de pesquisa científica e produção acadêmica no País.
O ENTULHO TECNOCRÁTICO SOBREVIVE
Antes que os patrulheiros ideológicos de plantão se mobilizem, aviso que não se trata, em absoluto, de ufanar aqui o regime militar.
É preciso agir com inteligência, reconhecer características importantes de um sistema, para compreender o arcabouço normativo construído. É necessário entender sua funcionalidade e, então, fazer com que a estrutura remanescente possa gerar bons frutos dentro do regime democrático.
É fato notório que a estrutura erigida de 1964 a 1984, no campo do controle ambiental, tinha como objetivo preservar seletivamente exemplares da fauna, da flora nacional e balizar o combate à poluição, visando dar suporte ao projeto de desenvolvimento nacional então proposto. O caráter da legislação era subsidiário a um objetivo nacional.
Terminado o mandato do último general, vencedoras as forças democráticas numa histórica votação presidencial, no Congresso Nacional, a Nova República nasceu. Surgiu, no entanto, contaminada por uma rejeição apaixonada ao que entendiam seus líderes tudo aquilo que representasse o “entulho autoritário”.
O governo democrático, então, cometeu o equívoco de jogar na mesma vala normas de controle territorial, Planos Nacionais de Desenvolvimento, instrumentos de planejamento setorial, metropolitano e industrial, como se nada valessem. Pior, desobrigou legisladores e implementadores das normas ambientais, de buscarem finalidade social na lei, vinculada a um projeto estratégico de caráter nacional (os termos “plano”, “estratégico” e “nacional”, por si só, já consistiam rejeito no mundo legal pós ditadura).
Assim, a partir de 1985, desvinculado de plano nacional ao qual devesse prestar suporte, o sistema legal ambiental passou a atirar a esmo, visando, não controlar mas, sim, REPRIMIR “espasmos de evolução da atividade econômica”. Ganhou na democracia extrema e reativa sensibilidade a qualquer reclamo de impactos decorrentes da implantação de projetos pontuais.
O estigma de “entulho autoritário”, sintomaticamente, não atingiu o sistema ambiental. O sistema de gestão ambiental, na verdade, foi tachado pela Nova República como uma “exceção urdida no regime de exceção”.
O sistema de gerenciamento ambiental, então, reforçou sua personalidade tecnocrática, sob a justificativa que, nos anos de chumbo, toda a legislação havia sido construída mas, “não era para valer”.
Era um engodo ideológico. Liberados de compromissos com interesses macro-governamentais, não mais atrelados a planos integrados de desenvolvimento, gestores ambientais, legisladores ambientalistas e operadores do direito ligados ao então chamado “direito ecológico”, passaram a aplicar a norma ambiental e gerar novos marcos legais, de forma puramente reativa.
A falta de planejamento estratégico ocasionou a reatividade. Cresceu em face da omissão dos sucessivos governos civis, absortos com movimentos pendulares autoimpostos e na implantação de programas econômicos próprios à cada gestão que se seguia. Portanto, nem um pouco sensibilizados com planos de médio e longo alcance.
A demagogia e a leviandade administrativa causou estragos ao Sistema Nacional de Meio Ambiente. Governantes e gestores, passaram a tratar a gestão ambiental como algo “cosmético” ou “midiático” – entregue aos cuidados de “sonháticos”, “midiáticos”, “sonhadores”, românticos”, “militantes da causa”, “verdes”, “vermelhos”, “rosas” e, até mesmo, “roxos de raiva”…
O caráter técnico, comprometido com o planejamento, cedeu lugar ao caráter ideológico, biocentrista (politizado e descompromissado com metas nacionais). Esse biocentrismo, radical, passou a ditar a regra na formulação e aplicação da lei ambiental. Curiosamente, a politização reforçou a velha burocracia, tecnocrática e arbitrária, já instalada no SISNAMA desde os tempos da ditadura militar.
O sistema foi assim, acometido de uma insensibilidade olímpica, falta de traquejo para o diálogo. Pequenos ditadores cheios de bons ideais passaram a impor unilateralmente juízos de valor e interpretações subjetivas sobre os propósitos da norma.
Filho absoluto dos estertores do regime militar, o neo-ministério público brasileiro, desde então forte tutor da norma ambiental, é exemplo clássico desse procedimento olímpico, descompromissado com a realidade econômica, para infelicidade de muitos que hoje ainda tentam empreender no país.
COMPORTAMENTO BIPOLAR
A legislação protetiva do meio ambiente de hoje, em que pese toda a evolução apresentada nos últimos trinta anos, remanesce, portanto, mera superestrutura de uma política ambiental fortemente enraizada no regime militar.
O comportamento do sistema é bipolar, patológico e gerador de conflitos, com elevado índice de judicialização.
O regime democrático não ficou inerte a isso. Está amadurecendo por força desses conflitos.
De fato, nesses últimos seis anos de gestão, nos governos Lula e Dilma, foram equacionados vários pontos de conflito, até por conta dos sucessivos embates e impasses experimentados pela gestão petista na condução de obras de interesse nacional e atendimentos a demandas sociais inadiáveis.
Os governos de Fernando Henrique Cardoso, de Lula e Dilma apresentaram nuances diferentes para os conflitos de ordem ambiental, decorrentes da bipolaridade comportamental do SISNAMA, senão vejamos:
a) na gestão de FHC, a reestruturação do Estado Brasileiro e a reforma do capital privado geraram as melhores legislações relacionadas a Políticas Públicas no campo dos interesses difusos e meio ambiente. No entanto, o refluxo observado pela falta de um projeto governamental de desenvolvimento da infraestrutura, inversamente proporcional ao afluxo e desenvolvimento de grandes projetos estruturantes entregues ao capital privado, dispersaram os impasses gerados pela verve autoritária dos gestores ambientais, pulverizados em conflitos isolados, travados diretamente com a livre iniciativa;
b) na gestão Lula-Dilma, no entanto, o resgate dos projetos conduzidos pelo Estado Brasileiro, articulados na reforma do Setor de Energia e nos Planos de Aceleração do Crescimento, concentraram os conflitos. Essa concentração revelou um inaceitável descompromisso da burocracia ambiental com a finalidade de interesse nacional dos projetos a ela submetidos para licenciamento. Daí a reforma sistemática e as reações hoje observadas no setor ambiental – incluso a judicialização (patrocinada grandemente pelo Ministério Público e ONGs).
NECESSÁRIO DEMOCRATIZAR O SISTEMA AMBIENTAL
A democracia no Brasil ainda é jovem. O regime democrático tem idade inferior à da principal lei ambiental. A convivência com legislações anteriores e posteriores à PNMA e à Constituição geram muitos conflitos. Os conflitos, porém, são passíveis de solução, desde que haja coragem e firmeza de propósito de nossos governantes.
É inadiável e hercúlea a tarefa de resgatar a vocação estruturante da lei ambiental. É necessário harmonizar a legislação com um PROJETO ESTRATÉGICO DE DESENVOLVIMENTO NACIONAL, alinhar sua finalidade ao objetivo de consolidação democrática. Devemos todos conferir maior transparência à atividade de regulação ambiental, sintonizando-a com as múltiplas demandas de todo o país.
É necessário, em definitivo, extirpar o ranço autoritário incrustado na legislação ambiental, “desmilitarizar” o estamento burocrático do setor, conferir transparência ás agências ambientais, introduzir a cultura das reuniões técnicas, dos registros, e dos protocolos obrigatórios.
É preciso, ainda, obrigar técnicos, consultorias jurídicas das agências e secretarias, gerentes e diretores, a receber, ouvir, dialogar, agir com cortesia, atender bem cidadãos, partes interessadas, consultores, gestores civis, advogados… enfim, implantar um regime democrático na gestão olímpica ambiental.
Parcela ainda significativa da velha e novíssima burocracia ambiental, pelo visto, não adotou o regime democrático pós ditadura militar, como se 1964 não houvesse terminado.
Tudo isso, no entanto, depende da velha arte de separar o joio do trigo, com brio político (hoje infelizmente raro), profissionalismo, e coragem, sob pena de perpetuarmos danos ambientais e não ganhos ambientais.
O que está em jogo interessa a toda sociedade.
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado(USP), sócio-diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Consultor ambiental, com consultorias prestadas ao Banco Mundial, IFC, PNUD, UNICRI, Caixa Econômica Federal, Ministério de Minas e Energia, Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência, DNIT, Governos Estaduais e municípios. É integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Grupo Técnico de Sustentabilidade e Gestão de Resíduos Sólidos da CNC e membro das Comissões de Direito Ambiental do IAB e de Infraestrutura da OAB/SP. Jornalista, é Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal, Editor da Revista Eletrônica DAZIBAO e editor do Blog The Eagle View.
.
Que pena que a grande maioria dos brasileiros não se interessa por esse tipo de assunto, pois se fôssemos mais envolvidos com a nossa política ambiental, teríamos
mais noção de sua importância.
Enfim, muito bom esse texto, parabéns!
É uma pena que ainda exista um ranço com os militares que apesar de terem instituído um regime forte de governo, criaram a maioria das coisas que ainda hoje existem e que na sua maioria somente mudaram de nome.Assim podemos programa minha casa minha vida; era financiado através do BNH – Banco Nacional da Habitação. Ensino do Jovem Adulto – EJA, começou com o nome MOBRAL; criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS, e muitas outras coisas que foram criadas durante o regime militar, como a nossa atual Política Nacional do Meio Ambiente. Vivi e convivi com o regime militar e não tenho nada a reclamar daqueles tempos. Pelo menos tínhamos orgulho de sermos brasileiros. Que orgulho temos hoje de nosso país, carregado de sentimento ideológico e dominado pelo empresariado que só pensa em lucrar e manter escravo o restante da população de uma forma velada. No tempo dos governos militares não existia solta essa bandidagem que há hoje por aí, porque havia controle. Não podemos criar a celeuma na cabeça da juventude de que tudo foi ruim no regime militar, como tentam fazer alguns teóricos que por fazerem coisas erradas na época foram penalizados e hoje guardam rancor a uma política de controle que todo Estado necessita. Um grande abraço.