A inteligência contida no novo marco legal do saneamento, é justamente não ter produzido um novo marco legal
“Vi ontem um bicho na imundice do pátio, catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, não examinava nem cheirava: engolia com voracidade. O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem!” (Manuel Bandeira, 1947)
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
Após uma longa novela de inúmeras medidas legislativas infrutíferas e duas iniciativas governamentais frustradas por meio de medidas provisórias, finalmente o Congresso Nacional aprovou o PL 4.162 de 2019 que institui o novo marco legal do saneamento básico no Brasil.
Agora o PL aguarda a sanção presidencial, talvez com um ou outro veto recomendado, visando resguardar a integralidade das razões que levaram o governo brasileiro a propor a medida.
A inteligência contida no novo marco legal é justamente não ter produzido um novo marco legal.
Como havia dito em artigo, cuja leitura recomendo fortemente, sobre saneamento, produtividade e renda, em 2014, “nos falta tudo, só não falta lei”… ¹
Na verdade, a iniciativa legislativa constitui-se num conjunto de modificações introduzidas no ordenamento que já está em vigor. Desta forma não gera mais um diploma e, sim, atualiza os textos já existentes.
Doravante, os operadores da norma estarão aptos a produzir, com apoio da iniciativa privada, suporte na regulação e esforço conjunto dos entes federados, a meta da universalização dos serviços de abastecimento de água, tratamento de esgoto, coleta, destinação dos resíduos sólidos e drenagem urbana.
As circunstâncias, mais uma vez, estão nos dando uma chance objetiva de dar um rumo moralmente correto a um setor abandonado pelo descaso e poluído pela corrupção.
Como disse a Professora Maria Inês Otranto, no Diário Notícias de Valinhos, em novembro de 2013, a respeito da fotografia da criança no meio do lixo, acima postada – tirada em Recife, há menos de dez anos, “o poema de Manuel Bandeira, de contestação contra a realidade e a miséria humana, pode também servir, hoje em dia, como analogia para outro tipo de lixo e outro tipo de degradação humana: o homem que vendeu seus princípios; o homem que vive na imundície dos acordos; o homem que exala o cheiro do que é mais imundo e fétido aos olhos dos cidadãos de bem.” ª
O objetivo desse artigo é, portanto, em notas objetivas, analisar a nova iniciativa legislativa propugnando sempre por sua concreta aplicabilidade. Pois é hora de por a bota no solo e transformar essa realidade que nos envergonha.
Segurança Jurídica e Garantia Financeira
O texto traça dois trilhos sólidos, por onde poderá seguir a marcha da universalização do saneamento no Brasil: i- o apoio estruturado da federação às iniciativas dos municípios; e ii- a segurança jurídica necessária para a garantia financeira dos investimentos públicos e privados.
Foram consolidados os instrumentos de concessão, de regulação, de compartilhamento dos serviços em bloco (por meio de consórcio, instituição de regiões metropolitanas ou aglomerações urbanas), de incentivo à privatização e de estruturação de parcerias público-privadas – com remuneração garantida por tarifa,
Particularmente me orgulho desse aspecto do diploma, pois era o que já havíamos, como consultores do Banco Mundial, recomendado em estudo produzido há dez anos, para o governo brasileiro (e isso mostra que a maior virtude, no campo do direito… é a paciência).²
No citado trabalho do Banco Mundial, tínhamos como escopo identificar modelos de gestão de RSU via Gestão Pública (direta ou via autarquia), Consorciada, Concessionada ou Delegada e Privada. Prescrevemos a separação da coleta e destinação final da varrição (esta sendo atividade indivisível) para compreender melhor a regionalização da atividade, a qual seria suportada financeiramente pela tarifação ou taxa baseada em uma correlação de consumo de água e uma remuneração variável á concessionária segundo critérios de performance – objetivamente estabelecidos. Dispusemos, também que a garantia de receitas acessórias incluíssem o aproveitamento do lodo das ETEs e a valorização econômica dos resíduos (beneficiamento – recuperação energética – compostagem), bem como créditos de carbono (captura de GEEs), recebimento de resíduos privados de grandes geradores, tratamento de RSS, etc.
Todas as soluções indicadas há dez anos, foram agora contempladas.
Esse instrumental se estende para além do ciclo hídrico do saneamento básico, atingindo a gestão dos resíduos sólidos urbanos. Com isso confere suporte à economia circular e resolve um enorme problema estrutural, como adiante será demonstrado.
O novo marco legal reforça as parcerias público-privadas para o saneamento. Ele, no entanto, toma o cuidado de limitar subcontratações a 25% do valor dos contratos (cf. artigo 2º – alteração do art. 4º da Lei 9.984 de 2000 e artigo 11-A da lei 11.445 de 2007, modificada pelo art. 6º do PL). Essa limitação evita terceirizações indevidas, que servem de escape para as PPPs, pois permitem “privatizações” praticadas por empresas estaduais – que terceirizavam seus serviços a particulares por meio de subdelegação. Essa ferramenta, agora, será monitorada pela agência reguladora e pelo concedente.
O ciclo de energia se inicia de forma articulada com a economia circular para conferir efetividade à cadeia de gestão dos resíduos sólidos. Por isso, o setor de aproveitamento energético dos resíduos vê com muito otimismo o advento das novas bases, com que será tratado o saneamento básico brasileiro.
Haverá possibilidade de inserir novas rotas tecnológicas da recuperação dos resíduos para geração de energia, nos processos públicos de destinação do lixo urbano. Isso irá contribuir decisivamente para o saneamento do meio e para a política energética nacional.
As empresas de saneamento integrado, com divisões técnicas de atendimento aos serviços de abastecimento e tratamento de esgoto, e de concessões que abrangem serviços indivisíveis e divisíveis da gestão de resíduos sólidos urbanos (coleta e varrição, transbordo, destinação e disposição final), também festejam a nova fórmula – pois ganham segurança jurídica e vislumbram um ambiente mais hígido para direcionar seus investimentos.
De há muito, na gestão de resíduos sólidos urbanos (RSU), é perturbadora a inexistência de meios seguros para permitir a sustentabilidade econômica dos projetos e dos contratos de concessão – administrativa ou patrocinada. Isso desestimula os projetos construídos mediante Parceria Público Privada (PPP).
Assim, uma das grandes razões do projeto de lei ora aprovado e prestes a ser sancionado, é justamente normalizar a cobrança pelos serviços de gestão pública dos resíduos sólidos urbanos.
Com o novo marco, os contratos de concessão envolvendo a destinação final dos resíduos sólidos urbanos serão respaldados pela tarifa na conta de consumo – conjunta ou espelhada em outros serviços públicos ( como o de água). Isso permitirá a realização de investimentos e sua respectiva amortização.
Esse equilíbrio financeiro e a regulação na economia dos serviços públicos de limpeza urbana – incluindo destinação final dos resíduos e disposição dos rejeitos, formam a pedra de toque para o estímulo aos investimentos no setor.
A falta de uma política tarifária tornava (e ainda torna), o sistema refém dos contratos remunerados emergenciais ou improvisados.
Esse padrão “emergencial” – quase sempre provocado pela inadequação do local usado para aterro, é por óbvio sujeito a chuvas e trovoadas do ministério público (leia-se judiciário) e tribunais de contas.
Com efeito, os serviços são remunerados à custa do tesouro das prefeituras, visto que a conhecida “taxa de limpeza urbana”, geralmente acoplada ao IPTU, não cobre 5% do valor real das despesas com a coleta, varrição e destinação final do lixo.
Pesa no orçamento municipal, em especial a destinação dos resíduos, pois a inadequação da esmagadora maioria de sítios de disposição final dos rejeitos termina por explodir o apertado orçamento municipal na primeira autuação ou interdição sofrida. Esse aperto obriga o prefeito a destinar os resíduos da cidade para aterros devidamente licenciados não raro distantes mais de cem quilômetros do município.
Isso se soma – e incrementa a inadimplência de 40% dos municípios brasileiros – algo que desencoraja qualquer investimento privado, inviabiliza o sistema de WtE (waste to energy) e transforma o empreendimento dos aterros sanitários em um “caça-lixo/caça-níquel” predatório.
Regionalização e inter federatividade
A regionalização – ou seja, o compartilhamento dos serviços de saneamento, incluso os de gestão de resíduos sólidos urbanos – por meio de blocos de municípios organizados em regiões metropolitanas ou aglomerações urbanas, insere os estados no esforço de universalização dos serviços. Esse fenômeno deve resultar na maior eficiência do sistema de gerenciamento, para muito além das concessões locais de coleta e varrição.
Os municípios partilharão os serviços dos destinadores para além do transbordo, e poderão experimentar novas rotas tecnológicas para a destinação dos resíduos antes da disposição final dos rejeitos.
O consórcio, por sua vez, ganha nova configuração, evitando alterações abruptas provindas dos humores políticos do prefeito de plantão. A uniformização da regulação imporá profissionalização. A orientação federal cuidará de harmonizar regras e metas nos contratos de concessão e normas de transição.
O disciplinamento do sistema restringe de toda forma a vigência dos contratos de programa – que praticamente engessavam os municípios em função dos interesses das grandes companhias estatais mantidas pelos estados, como será demonstrado adiante. Já o banimento dos contratos administrativos temporários e outras formas contratuais que contornavam a Lei de Licitações, forçará uma rápida transição para o sistema de concessão, com longo prazo e certeza de remuneração.
Esse disciplinamento, por sua vez, deverá obrigar os blocos de compartilhamento a articularem suas concessões locais de coleta, varrição, poda e desobstrução de bueiros com os sistemas regionais integrados de transbordo, destinação final de resíduos e disposição final dos rejeitos. Ou seja, deverá ter um fim seguro a licitação pela metade desses serviços, ou poderá haver licitações locais para os serviços de coleta e outra, conjunta, do bloco, para transbordo, destinação e disposição. Com isso, a distribuição espacial dos sistemas de destinação serão estrategicamente calculados conforme a demanda regional. Aliás, é o que já se trata de fazer com os sistemas de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto.
O legislador, no entanto, ao pretender manter uma postura “aterrista” (aquela que entende que a melhor solução para o lixo é um aterro perto e a segunda melhor solução é um aterro longe…) para a gestão dos resíduos sólidos urbanos (RSU), mais uma vez ignorou a sutil diferença entre resíduo e rejeito.
Nesse sentido o novo marco legal altera, no seu art. 10, o disposto no art. 56 do Estatuto das Metrópoles (lei 13.089 de 2015), para dispor que ” nos casos em que a disposição de rejeitos em aterros sanitários for economicamente inviável, poderão ser adotadas outras soluções, observadas normas técnicas e operacionais estabelecidas pelo órgão competente, de modo a evitar danos ou riscos à saúde pública e à segurança e a minimizar os impactos ambientais.”
Ora, pela lei 12.305 de 2010, o aterro sanitário só deveria receber rejeitos e estes deveriam ser cada vez mais reduzidos, na medida em que outras soluções tecnológicas pudesse dar ao material outra destinação funcional e ambientalmente mais adequada que a disposição. Em verdade, pela lógica do sistema, os aterros deveriam receber um adicional de performance nas novas concessões pela redução que obtivessem na disposição final dos rejeitos, pois isso aumentaria a vida útil deles e os resíduos estariam em tese servindo para funcionalidades mais sustentáveis – em especial à recuperação energética.
Portanto, a lógica do artigo acima referia está invertida.
Nesse sentido, é possível que nossas recomendações agora sejam adotadas. Elas foram efetuadas em trabalho de nossa autoria, contratado ao PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República – destinado à Comissão Interministerial encarregada de elaborar o Plano Nacional de Resíduos Sólidos, para a análise de assuntos pertinentes ao conceito jurídico de disposição final de rejeito, as responsabilidades dos atores na cadeia de gestão dos resíduos e os critérios de segregação para a obtenção do resultado pretendido na lei.³
Nesse trabalho, particularmente, tratei de reforçar a necessidade de se buscar mecanismos estruturantes e prévios à disposição final (upstream) – justamente para reduzir ao máximo o que se destinasse ao aterro.
As conclusões desse estudo caem como luva no novo marco legal, senão vejamos:
1- Necessidade de progressiva regionalização do sistema de gestão integrada;
2- Necessária criação de um órgão de regulação da cadeia de gestão de resíduos, articulado com o Comitê Interministerial e o Comitê Orientador – CORI, de resíduos sólidos;
3- Criação, por lei, de sistema de regulação contendo agência reguladora e mecanismos de permissão para vigência de entidades gestoras privadas, setoriais;
4- Aferição periódica do tratamento e recuperação por processos tecnológicos disponíveis e economicamente viáveis dos resíduos sólidos na cadeia de destinação final, de forma a manter atualizado o processo de disposição final dos rejeitos, regulando os conflitos de ordem econômica e tecnológica que envolvem a questão.
Esses serão os assuntos que tomarão tempo e esforços dos entes federados, no cumprimento dos prazos estatuídos pelo marco legal, para regularização da disposição final dos rejeitos.
A consolidação do ambiente de regulação
A Política Nacional de Saneamento Básico já instituíra o sistema municipalizado de gestão em um ambiente de regulação – um grande avanço que gerou pelo menos meia centena de agências reguladoras Brasil afora. No entanto, a Lei de Política Nacional de Resíduos Sólidos foi absolutamente omissa com relação à regulação. Isso causou profunda distorção no sistema, pois se por um lado, em obediência ao marco legal de 2007 os serviços concessionados nas capitais seguiram regulados para a coleta e destinação dos resíduos, toda a economia circular permaneceu literalmente no limbo, sem um instrumento de regulação que permitisse a ela sair do estágio catatônico em que se encontra até hoje.
O marco legal agora aprovado pode corrigir o problema, na medida em que institui uma agência nacional encarregada de traçar as diretrizes gerais para ambos os ciclos – do saneamento hídrico e da economia circular dos resíduos sólidos.
Porém, há uma contradição intrínseca ao próprio novo marco legal do saneamento.
Ocorre que remanesce em vigor o art.. 4o da Lei 11.445/2007 – que reza que “os recursos hídricos não integram os serviços públicos de saneamento básico”. Aduz o mesmo artigo que “a utilização de recursos hídricos na prestação de serviços públicos de saneamento básico, inclusive para disposição ou diluição de esgotos e outros resíduos líquidos, é sujeita a outorga de direito de uso, nos termos da Lei no 9.433, de 8 de janeiro de 1997, de seus regulamentos e das legislações estaduais”.
É de se perguntar: como poderia a Agência Nacional de Águas regular um setor diverso do seu por força de lei e, pior, cliente de sua finalidade original?
O fato é que a ANA deverá passar por uma grande reengenharia.
Do ponto de vista estrutural, a ANA trabalhará com três sistemas: a) Sistema Nacional de Recursos Hídricos – estruturado por bacias e gerenciado federativamente em conjunto com os Estados; b) o Sistema de Saneamento de água e esgoto, cuja gestão é descentralizada, com um ente regulador por concessão; e c) a Política Nacional de Resíduos Sólidos, cuja gestão assimétrica e articulada não possuía, até o momento, um ente regulador.
O diploma aprovado no Congresso prevê até um novo ramo profissional a ser capacitado para a nova tarefa. Afinal, a nova regulação abrange a regulação dos ciclos econômicos envolvendo o uso da água para abastecimento, esgotamento, reúso e a economia circular dos resíduos sólidos. Cumprirá à ANA baixar diretrizes gerais que influenciarão a condução dos regimes de concessão e a interligação destes com a logística reversa, o aproveitamento energético, os sistemas gestores das categorias de recicláveis e os sistemas baseados na natureza de biorremediação e filtragem.
Esse complexo ambiente de regulação irá envolver as normas gerais de gestão dos contratos de risco, dos ativos, projetos de financiamento para parcerias no setor, formação dos blocos inter-federativos, tarifação e tarifa social. Com certeza, também deverá impulsionar a cobrança pelo uso da água no sistema de saneamento – o principal cliente do sistema de recursos hídricos.
A equação para determinar a inserção da remuneração pelo uso econômico do recurso, a reservação e a outorga serão muito relevantes para o equilíbrio financeiro do SNRH e tarifário dos serviços de saneamento. Esse avanço, possivelmente, obrigará municípios a incrementar avanços tecnológicos na preservação dos corpos d’água, incluso os subterrâneos.
Com a ANA – agora denominada “Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico”, no topo da regulação de ambos os sistemas, de saneamento e recursos hídricos, a bacia hidrográfica finalmente deverá se impor como a grande unidade de planejamento inclusive para determinar, no campo da gestão de resíduos sólidos, o compartilhamento dos serviços de destinação e disposição final.
Esse fenômeno deve refletir-se no avanço definitivo da solução para o problema do chorume e risco de contaminação dos corpos d’água pela contaminação do solo. Por outro lado, a ANA deverá avançar nos acordos setoriais – graças à interconexão clara entre o serviço de coleta municipal e o material reciclável nele inserido. Essa recolha de material reciclado pelos serviços públicos de coleta deverá ser remunerada pelos acordos setoriais envolvidos com esse fluxo de materiais.
A ANA pautará as demais agências reguladoras dos respectivos contratos de concessão e os de programa remanescentes, com suas diretrizes. Isso poderá finalmente alavancar uma economia hoje reprimida no Brasil e resgatar os famosos bilhões perdidos no lixo, como sempre foi apontado pelo consagrado professor Sabetai Calderoni.
O forte lobby das estatais e dos “desconectados”
Para a aprovação do PL no Senado, impôs-se a rejeição das 94 emendas propostas naquela câmara alta, eliminando-se os escandalosos jabutis que pretendiam dar sobrevida aos contratos precários de prefeituras com aterros e outros destinadores desconectados dos coletores concessionados ou não. Essa desconexão, em verdade, constitui uma das maiores fontes de corrupção em todo o território nacional – com as exceções de sempre – a ponto deste subscritor ousar dizer que no negócio de gestão de resíduos sólidos, a parte mais limpa é o lixo…
No entanto, houve um jabuti que seguiu incólume, inserido desde quando aprovado o projeto na Câmara Federal, inserido no artigo 16 e no artigo 20 do PL, sem que houvesse discussão prévia sobre o dispositivo.
O artigo 20, que tem uma redação absolutamente remissiva – restringe a aplicação de vários dispositivos da Lei dos Consórcios Públicos e também da Lei Nacional do Saneamento – mantendo sua aplicabilidade exclusiva aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Com isso, os serviços de limpeza pública e manejo de RSU ficaram sujeitos à existência de contratos de programa e possibilidade de fórmulas que mantém a insegurança jurídica na remuneração dos serviços de destinação final dos resíduos.
Com o artigo 16 do PL, surge uma contradição. O texto incentiva a criação de blocos regionalizados de municípios e determina a conversão dos contratos de programa em contratos de concessão. Isso deveria significar o império da concessão precedida de licitação dos serviços. Porém os contratos de programa (firmados por municípios e grandes operadoras estatais de saneamento, como a Sabesp de São Paulo e a Cedae,do Rio), não precedidos por licitação em razão de previsão expressa na Lei 8.666/93, podem ser esticados por mais 30 anos, e com prazo até 31 de março de 2022 para ocorrer.
Há várias razões, no entanto, para o cuidado reservado aos contratos de programa. Há toda uma escola publicista que aponta o contrato de programa como um eficiente instrumento de cooperação inter federativa, derivada do artigo 241 da Constituição Federal. Por ele, os municípios podem autonomamente conveniar com a empresa estadual de saneamento para operar os serviços de água e esgotamento sanitário, permitindo a execução dos serviços de saneamento pelo estado federado. Essa fórmula permitiu, de fato, a expansão do saneamento básico para os municípios brasileiros e é verdadeiro afirmar que a maior parte do serviço de saneamento existente no país, nos últimos trinta anos, é prestado por companhias estaduais.
Outro fato que pesou nessa manutenção foi a facilidade de uniformização de regras para a prestação dos serviços e estabelecimento de metas. A manutenção de tarifas uniformes para os municípios atendidos pela mesma companhia pública torna-se possível, por outro lado, por conta do subsídio cruzado – meio pelo qual as receitas auferidas nos grandes municípios são investidas nos pequenos – que de outra forma não seriam atendidos. As tarifas sociais – que beneficiam os mais pobres, também são fruto dos mecanismos de compensação constantes dos contratos de programa.
Porém, o fato inescapável é que os contratos de programa foram desenvolvidos pelas empresas estatais visando, em especial desde a reforma do estado empreendida em 1995, escapar do disposto no art. 175 da Constituição Federal, a qual expressa de forma indiscutível que a prestação dos serviços públicos sempre se dará sob o regime de concessão ou permissão “sempre através de licitação”.
Patente, assim, que a manutenção do sistema de forma isolada no projeto de lei visa manter uma válvula de escape para empresas estatais que firmaram contratos de programa de saneamento com prefeituras.
No entanto, o mecanismo posto no artigo 20 é mais complicado, pois o mesmo lobby “do bem”, organizado para defender o serviço de saneamento básico prestado pelas grandes empresas públicas, torna-se um lobby “do mal” quando se presta a garantir uma sobrevida do sistema para as empresas que trataram de inserir no rol de serviços constantes no programa uma ainda não prestada gestão de resíduos sólidos. O mecanismo, não utilizado e mantido “na manga” das estatais, permitirá a delegação dos serviços onde os contratos estiverem em vigor e renovados. Permite também aos serviços desconectados de destinação de resíduos sólidos urbanos, manterem por algum tempo seus serviços em caráter precário, inclusive renovando prazos.
Assim, há uma forte pressão para que se proceda ao veto presidencial do artigo 20, do PL aprovado, permitindo o Executivo a preservação do caráter uniforme, privatista e hígido do marco legal do saneamento básico, conferindo sustentabilidade aos investimentos tão necessários à modernização do parque de tratamento e destinação dos resíduos sólidos urbanos no Brasil.
Retirado o dispositivo contraditório, com todo o respeito devido às ponderações dos seus defensores, permanecerão hígidas as novas bases para a gestão pública e segura dos resíduos sólidos urbanos no Brasil pelo sistema de concessões reguladas, conferindo segurança aos investimentos também nas novas rotas tecnológicas de destinação dos resíduos e de aproveitamento energético nesse setor.
Porém, o esforço estatista guarda no texto do PL uma última trincheira defensiva. Ela está localizada no artigo 42 do diploma e condiciona a transição do contrato à indenização, pelo poder concedente – que transmitirá ao novo concessionário, a obrigação de indenizar o prestador do serviço anterior (obviamente público). Há previsão de que o município só retomará os serviços de água e esgoto se pagar a indenização pelos investimentos não amortizados (cf. artigo 42, § 5º).
O assunto será com certeza objeto de judicialização, pois o entendimento jurisprudencial do STJ é contrário, e estatuído com base constitucional, no sentido de não se poder erigir barreira dessa espécie que impeça a municipalidade de retomar o serviço (AgRg SS 1.021-SC, relator Min. Nilson Naves – DJ de 26.05.2003 / AgRg SS 1.307-PR, relator Min. Edson Vidigal – DJ de 06.12.2004 e AgRg SLS 1.406-RS, relator Min. Ari Pargendler – DJ de 22.06.2011). Não fosse a ação judicial, o ingresso do capital privado restaria obstruído pela desproporcional proteção patrimonial instituída em favor das empresas públicas, o que é inconstitucional.
Sistemas Baseados na Natureza
Há um ponto infelizmente não abordado no marco legal aprovado: a ampliação do horizonte de rotas tecnológicas disponíveis para a prestação dos serviços públicos de tratamento para abastecimento de água, esgotamento sanitário e drenagem urbana, incluindo soluções baseadas na natureza.
Soluções baseadas na Natureza, tecnicamente referenciadas como SbN, são tecnologias aplicadas, inspiradas e apoiadas pela natureza. Usam ou simulam processos naturais para o aperfeiçoamento da gestão da água e de resíduos, promovendo benefícios ambientais, sociais e econômicos, além de contribuir para a resiliência de ambientes urbanos, rurais e costeiros.
As soluções baseadas na natureza constituem rota tecnológica para a gestão da água e têm como objetivo minorar os impactos ambientais provenientes das atividades antrópicas, por meio do tratamento e purificação das águas de abastecimento ou de esgotamento. Previnem o desabastecimento e contribuem decisivamente para a drenagem, agindo de forma a desacelerar fluxos e reduzir os picos de enchentes, prevenindo o impacto das secas (UNESCO).
Segundo o Coordenador e Diretor do Programa Mundial de Avaliação dos Recursos Hídricos (WWAP, na sigla em inglês) da UNESCO, Stefan Uhlenbrook:
“Há três principais objetivos que podemos atingir com as soluções baseadas na natureza. Um deles é aumentar a disponibilidade de água, tanto para o consumo como para a agricultura e a indústria, outro objetivo é aumentar a qualidade da água, que está se degradando devido a uma série de atividades humanas. O último é reduzir os riscos associados à água, como as secas e enchentes. Todos são objetivos de gestão da água que podem ser atingidos com soluções baseadas na natureza e infraestrutura verde”.*
As soluções baseadas na natureza devem também ser sempre consideradas no planejamento público, como parte integrante da preocupação para com o componente ambiental, atendendo a dois princípios gerais constantes na Declaração do Rio de Janeiro Para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, da Conferência das Nações Unidas de 1992, que rezam:
“Princípio 4: A fim de atingir o desenvolvimento sustentável, a proteção do ambiente deverá constituir parte integrante do processo de desenvolvimento e não poderá se considerar em forma isolada.
Princípio 9: Os Estados deveriam cooperar no fortalecimento de seu próprio poder para de atingir o desenvolvimento sustentável, aumentando o saber científico mediante o intercâmbio de conhecimentos científicos e tecnológicos, e intensificando o desenvolvimento, a adaptação, a difusão e a transferência de tecnologias.”
Bastaria acrescentar referências à alternativa em dois pontos do PL, para integrar o sistema no rol de possibilidade concretas de purificação e tratamento, para além do já consagrado uso nos processos de recuperação de corpos hídricos.
De fato, o texto aprovado cita três vezes o termo “obras”, mas passa ao largo quando o assunto são soluções baseadas na natureza. Prevê que as estruturas de saneamento sejam feitas por meio de obras de engenharia quando há outros sistemas de remediação biológica. É uma lógica que parou na primeira metade do século XX e que prioriza as obras faraônicas.
Ademais, unificado o sistema de saneamento básico pela reengenharia normativa, nada une mais o sistema de preservação dos recursos hídricos com o de saneamento, que essa alternativa tecnológica baseada na natureza.
Assim, o assunto da engenharia verde haverá de merecer um PL próprio, embora – reconheça-se, não esteja proibido no diploma legal aprovado, voltado prioritariamente para a engenharia cinza.
Prazos prorrogados
Os prazos para a disposição final adequada de rejeitos foram mais uma vez prorrogados, adoradas as medidas prévias previstas na cadeia de gestão dos resíduos, constante no art. 9º da Lei 12.305/2010, ou seja, impõe-se a adoção de ações prévias de reuso, reciclagem e recuperação de resíduos, para que apenas os rejeitos sigam para aterros sanitários licenciados.
Para cidades com menos de 50 mil habitantes, que representam 73% dos municípios do país, o prazo para regularização foi estendido para agosto de 2024. Já as capitais terão até 2021 para buscar enquadramento.
Em verdade, essa insistência em apor prazos na lei, só faz a alegria do promotor de justiça da esquina, pois em um regime federativo assimétrico como o brasileiro, as diferenças regionais, disparidades econômicas e hábitos culturais torna impossível uma implementação uniforme em busca de metas similares no mesmo período de tempo. Basta observar como o modelo europeu luta, até hoje, para estabelecer prazos muito diferentes para cada país que adere ao sistema de gestão de resíduos da comunidade.
Conclusão
O marco legal do saneamento, enfim, assume um caráter de regulação da economia que há muito vínhamos preconizando para o Brasil.
O ambiente de regulação é expressão da permeabilidade do Estado moderno aos instrumentos de participação social, resolução dedicada de conflitos socio-econômicos complexos. Essa complexidade advém da progressiva simbiose entre dois processos aparentemente díspares, mas que se complementam no contexto da globalização e da economia de mercado: o controle social sobre o uso dos recursos ambientais e econômicos pari passu com a privatização da gestão e apropriação dos mesmos recursos.**
Essa compreensão é essencial para entender o quão importante é a regulação como polo de atratividade de investimento para ciclos econômicos impulsionados pela ação da autoridade, como é o caso do saneamento básico.
Por outro lado, escrevi nos idos de 2013 que:
“Minha primeira sugestão é, de imediato, revigorar a ANA, como instrumento de planejamento estratégico, econômico e de regulação de usos.
Para tanto, é necessário que o Sistema Nacional de Recursos Hídricos – SNRH, se descole do Sistema Nacional de Meio Ambiente – SISNAMA.
A ANA deve ser resgatada. Ela precisa sair do divã do analista natureba, hoje frequentado pelo Ministério do Meio Ambiente – sempre em crise com seus dois filhos diletos e siameses: IBAMA e ICMBio.
O problema não está nos quadros, nas informações, instrumentos e recursos. Está, sim, na definição de rumos do sistema.
Enquanto o SNRH – Sistema Nacional de Recursos Hídricos, for mantido refém do discurso natureba, preservacionista e biocêntrico, que ainda contamina o Sistema Nacional de Meio Ambiente (e há muito mérito na luta da atual ministra em reduzir essa contaminação no organismo que dirige), ele não seguirá seu destino de se integrar ao esforço de desenvolvimento nacional. Continuará exercendo um papel secundário, cartorial, de emissor de reservações e outorgas.
O próprio Conselho Nacional de Recursos Hídricos sofre com essa crise de identidade. Não demanda sua agência e não é por ela devidamente demandado. O CNRH não integra seus planos ao planejamento estratégico e econômico dos organismos que efetivamente usam o recurso e, com isso, limita-se a “colher dados” e “gerar conflitos” ao invés de resolvê-los.
Estaria muito melhor o SNRH se fosse deslocado, como um todo, para o MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA, fato que iria conferir funcionalidade estratégica ao organismo, sem perda de qualidade ambiental.”***
Parece que o Estado Brasileiro, finalmente, ouviu o conselho.
Vamos agora tratar de arregaçar as mangas e trabalhar muito duro para implementar os novos parâmetros, pois o sistema dependerá deles para, finalmente, crescer, germinar e universalizar.
Como disse anos atrás, no primeiro artigo que citei acima:
“Ignorância, incompetência, preconceito ideológico, oportunismo e corrupção contaminam o saneamento público no Brasil.
O saneamento básico nacional, portanto, precisa ser saneado estruturalmente, para que só então se processe uma correta implementação do marco legal – que, literalmente, ainda não saiu do papel.
Enquanto isso, a falta de saneamento continua a atingir toda a população brasileira, sua saúde, seu trabalho, sua renda e sua educação.
Atinge, portanto, a saúde e desenvolvimento econômico do país.
O saneamento básico no Brasil precisa se tornar uma realidade limpa e saudável para todos os brasileiros, e não o esgoto a céu aberto de fatos lamentáveis, que hoje presenciamos.”
Com o novo marco, o cavalo está passando selado pela undécima vez! Se não montarmos agora, atolaremos definitivamente no mar de lixo, cobertos de dejetos.
A hora é agora!
Notas:
1- PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro – “Saneamento, Produtividade e Renda”, in Blog The Eagle View, 28março2014, in https://www.theeagleview.com.br/2014/03/saneamento-produtividade-e-renda.html
a- OTRANTO, Maria Inês – “Crianças no Lixo” – in Notícias de Valinhos, Ano 20, 8 de novembro de 2013, in http://noticiasdevalinhos.blogspot.com/2013/11/criancas-no-lixo.html
2- Banco Mundial – “Gerenciamento de Resíduos Sólidos – Relatório de Diagnósticos e Modelagem”, Novembro2009, coordenação Paul Procee, autoria: /consórcio MPDZ (Machado Meyer, Pinheiro Pedro, Destra, Z3M – coordenação Antonio Fernando Pinheiro Pedro).
3- Presidência da República – Secretaria de Assuntos Estratégicos-SAE e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD – “Normas e Diretrizes para a Disposição Final de Rejeitos e, Quando Couber, de Resíduos” – consultor: Antonio Fernando Pinheiro Pedro, 2014.
* RELATÓRIO MUNDIAL DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE DESENVOLVIMENTO DOS RECURSOS HÍDRICOS 2018
**PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro – O Resgate do Ambiente de Regulação, in Blog The Eagle View, 19Agosto2015, in https://www.theeagleview.com.br/2015/08/o-resgate-do-ambiente-de-regulacao.html
***PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro – Gestão de Recursos Hídricos – Novas Reflexões Estratégicas, in Blog The Eagle View, 7Maio2013, in https://www.theeagleview.com.br/2013/05/gestao-de-recursos-hidricos-novas.html
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View”. É Consultor Jurídico da Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos – ABREN, consultor do Banco Mundial, sendo responsável pelo consórcio que elaborou a análise da Gestão dos Resíduos Sólidos Urbanos no Brasil, em 2009, para o governo do Brasil e consultor do PNUD, no estudo para a Presidência da República sobre normas e diretrizes para a disposição de rejeitos, em 2014. Foi integrante da equipe que elaborou o plano de transição do que deveria ter sido a gestão ambiental para o governo Bolsonaro.
Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal, 28/06/2020
Edição: Ana A. Alencar
Dr Antônio Pedro, parabéns pelo artigo, fico muito animada com o novo instrumento de lei, era meu sonho ver o fim da máfia do lixo.
Perdoe minha ignorância legislativa, após o provável veto da presidência da república, qual a previsão e que caminho essa PL deverá seguir até ser aprovada? E o que deve acontecer com municípios que estão agora elaborando o plano de saneamento básico baseado na legislação presente? O caso de Salvador, por exemplo.
Val, os vetos são apreciados pelo congresso, que poderá derrubá-los ou não. Os Planos devem prosseguir, logicamente adaptados ao novo marco.