Governo resolve estabelecer novas regras para os acordos setoriais
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
CORI – Comitê Orientador para Implementação de Sistemas de Logística Reversa do Governo Federal, aprovou a Deliberação nº 11, de 25 de setembro de 2017, disciplinando a implementação dos sistemas de logística reversa e estabelecendo abrangências municipal, estadual e federal.
Com isso, assumiu finalmente o ambiente de regulação inserindo neste a economia circular inerente à gestão econômica dos resíduos sólidos.
Vendo uma ideia sair do papel
A economia do lixo representa um imenso oceano ainda desconhecido no Brasil – e por falta de uma agência reguladora, a economia do setor torna-se um mar lotado de tubarões, barracudas e traíras…
A verdade é que no negócio dos resíduos sólidos brasileiros, o que há de mais limpo… é o lixo.
Quando fui contratado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, via PNUD (Programa da ONU para o Desenvolvimento) me deparei com um ambiente governamental e empresarial absolutamente ignorante a respeito da Economia Circular. Poucos anos antes, quando a Lei Federal de Resíduos Sólidos ainda estava em processo de votação na Câmara Federal, já havia constatado esse fato – quando liderei o consórcio contratado para elaborar os estudos do Banco Mundial sobre Resíduos Sólidos Urbanos no Brasil.
O ambiente econômico no Brasil, além de defasado economicamente, estava contaminado por interesses absurdamente mesquinhos, de ordem ideológica – como era o caso da ideia “luddista” (renomeada como “lulista”) de perenizar a miséria dos catadores com a adoção da mão de obra semi-escravizada das cooperativas – facilitando o populismo na gestão ambiental e a corrupção dos “esquemas” de convênio com cooperativas de serviços na Administração Pública.
O termo “luddismo” vêm da revolta dos operários britânicos contra as máquinas a vapor, no início do Século XIX. Mas parece que essa revolta contra a mecanização ainda vigora no Brasil – com o apoio de engravatados da jusburocracia, ignorantes de como funciona a circularidade econômica do setor. Graças ao “luddismo”, a burocracia esquerdista optou por criar uma categoria profissional de miseráveis ao invés de extingui-la, impedindo a absorção de mão de obra nos processos econômicos mais avançados e criando (como de fato ainda cria) obstáculos à necessária mecanização e automação da segregação dos materiais na coleta pública de resíduos.
Outra questão por mim observada, era a indisfarçável má vontade do empresariado em adotar a logística reversa, não só por não entender a economia circular, mas também por compreender que a logística reversa iria interferir nos cartéis de embalagens e alterar o jogo de poder nas associações de classe. A responsabilidade pós consumo, de fato, demanda uma regulação econômica indesejada em um setor da economia que era (e ainda é) uma grande válvula de escape para a lavagem de dinheiro.
Como resultado desses focos de resistência, o trabalho realizado pelo Banco Mundial até hoje não saiu do papel – devido à pressão dos próprios estamentos financeiros do governo brasileiro.
Quanto ao trabalho efetuado para a Presidência da República, relativo à diferenciação conceitual, jurídica e econômica de rejeitos e resíduos – e seu efeito na gestão economia circular e no licenciamento ambiental, seguiu adiante na Administração Federal e foi absorvido pelo Plano Nacional de Resíduos Sólidos (que, por sua vez, permanecia no papel).
Porém, o mal não dura para sempre e, agora, observo que parte do meu trabalho finalmente emergiu das profundezas da burocracia em forma de regulamentação do CORI – Comitê Orientador para Implementação de Sistemas de Logística Reversa – organismo que em meu estudo para o governo apontei expressamente como um sucedâneo para a agência reguladora da economia circular (que por interesses inconfessáveis não havia sido instituída na Política Nacional de Resíduos Sólidos).
A importância regulatória do CORI e o regime de responsabilidades na cadeia de gestão
O CORI foi instituído pelo Decreto Federal nº 7.404/2010, que regulamenta a PNRS, com a finalidade de orientar, entre outras atribuições tipicamente regulatórias, a implementação de sistemas de logística reversa.
O Cori é presidido pelo Ministério do Meio Ambiente. Participam do Cori outros quatro ministérios: Ministério de Desenvolvimento Indústria e Comércio Exterior – MDIC, Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – Mapa, Ministério da Fazenda – MF e Ministério da Saúde – MS.
Se por um lado a Lei de Política Nacional de Resíduos Sólidos representou uma ruptura da relação
tradicional da sociedade com o lixo por ela gerado, o marco legal, por outro lado, não contemplou um maior detalhamento da complexa operacionalização espacial, setorial, operacional, econômico e financeira desta ruptura. E esta ruptura, visando a nova economia circular, só poderia se dar em um ambiente de regulação. Daí a importância de haver um organismo que impusesse normas e orientasse o sistema. Nisto reside a importância do CORI assumir esse papel.
A logística reversa constitui uma grande conquista inserida na Lei Federal nº 12.305/2010 – Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS).
Ao contrário do modelo europeu, no qual praticamente se assenta, a política de resíduos tupiniquim rejeitou o conceito de “responsabilidade alargada” – que atribuía ao gerador uma responsabilidade por todo o ciclo econômico do resíduo, para estabelecer o conceito de “responsabilidade compartilhada”, abrangendo pelo ciclo de vida dos produtos e inserindo neles, também, a disposição do lixo doméstico pelo consumidor.
A sutileza produziu enorme entrave na aplicação da economia circular, pois diluiu, em princípio, a responsabilidade da indústria e do comércio – os ciclos da produção e distribuição – com relação à internalização dos custos da responsabilidade pós-consumo. Essa diluição permitiu que o terceiro ciclo, o consumo, fosse praticamente jogado no colo da gestão pública, sem obrigação de haver conexão na destinação dos resíduos e disposição final dos rejeitos das embalagens e outros produtos recicláveis colhidos pelo serviço público de coleta e destinação do lixo doméstico.
Assim, no âmbito da responsabilidade compartilhada até então, fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes estruturaram sistemas de logística reversa, destinados a assegurar o retorno de produtos e embalagens após o descarte pelo consumidor ao setor empresarial, para subsequente destinação final ambientalmente adequada. Porém puderam eleger as vias de recolha e reciclagem, segregando praticamente dessa circularidade os serviços públicos de coleta e destinação.
Rompido agora o preconceito quanto ao ambiente de regulação – preconceito esse claríssimo no período lulopetista, e inexistindo uma agência reguladora expressa, cumpriu ao CORI agir nesse sentido, cobrindo a lacuna e corrigindo as falhas de articulação, impondo uma regulação no mercado de internalização de custos ambientais e valorizando os resíduos e a reciclagem.
A importância da Deliberação CORI 11/2017
Agora, o CORI aprovou a Deliberação nº 11, de 25 de setembro de 2017, disciplinando a implementação dos sistemas de logística reversa e estabelecendo abrangências municipal, estadual e federal.
Esse fato normativo QUEBRA A PREVALÊNCIA DOS CARTÉIS dos grandes geradores de embalagens (indústria de bebidas, por exemplo) e obriga os atores privados da economia circular a admitir GOVERNOS MUNICIPAIS – e concessionárias dos serviços públicos, na MESA DE NEGOCIAÇÃO DOS ACORDOS SETORIAIS.
A Deliberação CORI 11/2017 estipula diretrizes gerais da implementação dos sistemas de logística reversa e estabelece a interação entre logística reversa e planos de gerenciamento de resíduos. Para tanto, reconhece finalmente a necessidade de inserção das ENTIDADES GESTORAS DE RESÍDUOS, outra figura ausente na Lei de Política Nacional de Resíduos Sólidos, destinando-as à operar os sistemas de logística reversa.
Outra ação importante contida na resolução é o efeito vinculante dos acordos setoriais, estipulando metas, cronogramas e acompanhamento da implementação dos sistemas de logística reversa, assim como divulgação deles – algo que torna a entidade gestora um organismo para muito além da “corretora de resíduos” pretendida pelas associações de classe nos acordos setoriais “para inglês ver” até aqui firmadas junto ao governo federal e alguns governos estaduais.
A deliberação do CORI fere de morte a dissimulação que estava contida já no questionável Edital de Chamamento 02/2012 do Ministério de Meio Ambiente – urdido em ritmo de Copa do Mundo e Olimpíadas, alterado em 2015, sobre o qual se basearam os acordos setoriais ora em vigor.
De fato, os acordos setoriais, de eletroeletrônicos e de embalagens em especial, excluíram os municípios, restringindo a articulação de responsabilidades ao setor privado e cooperativas de catadores. Por isso mesmo, não definiram a remuneração dos municípios ao desempenharem atividades de logística reversa, como se o recolhimento da fração seca dos resíduos, de responsabilidade estendida presumida do setor privado, como gerador do produto, permanecesse adstrita aos pontos de entrega voluntária e ao colhido pelas cooperativas de catadores ou entidades de reciclagem de material eletroeletrônico.
A pergunta, aposta antes da iniciativa regulatória mais incisiva do CORI, era: “E quem vai pagar a conta? Quem estabelece e fiscaliza o cumprimento de metas de coleta e reciclagem de embalagens? Onde estará declarado a quantidade e qualidade do total anual de embalagens despejadas no mercado brasileiro?”
Não está expresso, mas é patente que no bojo do atendimento à nova regra do CORI, os catadores, por exemplo, deixam de ser uma “solução obrigatória” para ser uma parte da solução. Afinal, reciclagem e logística reversa de verdade, requerem investimento, automação, tecnologia e regras claras de mercado, alem de políticas publicas modernas e eficientes.
Os acordos setoriais em curso no ambiente nacional nada dizem, não se comprometem com nada, não estabelecem medida alguma de eficácia ou real sustentabilidade, não se espelham em nada de experimentado e sustentável no mundo. Verdadeiras firulas jurídicas, ultrapassam a vergonha nacional para constituírem verdadeira maquiagem verde.
Regulado o mercado, a partir da nova resolução, patente que as metas do acordo, face ao volume de material coletado e destinado pelos serviços públicos Brasil afora, revelarão o caráter “cosmético” do que foi até agora firmado.
Com a admissão das entidades gestoras, os acordos setoriais não mais poderão “regularizar” a atividade de empresas e organismos que fazem as vezes de “feitores” de catador ou cooperativas de trabalhadores da reciclagem, como antigamente se denominavam aqueles que cuidavam da mão de obra escrava nas fazendas.
Os acordos setoriais em vigor desconhecem a diversidade brasileira de pequenos municípios, priorizam apenas algumas capitais, pecam pela ausência de critérios claros e pouca representatividade e não estabelecem qualquer diálogo econômico ou política de preços para mercados diversos, considerando o trabalho de coleta e destinação efetuado pelos municípios. Por isso mesmo precisam mudar.
Teor da Deliberação 11/2017 do CORI
Entre os principais aspectos da Deliberação CORI nº 11/2017, destacam-se os seguintes:
I- Os acordos setoriais firmados com a União para a implementação da logística reversa deverão pressupor abrangência nacional efetiva, salvo disposição em contrário, devendo prever , portanto, formas eficazes para atender à totalidade da população do país – leia-se, integração com os serviços públicos de saneamento municipais;
II- Os geradores dos resíduos que, nos termos do artigo 20 da PNRS, obrigados a elaborar plano de gerenciamento de resíduos sólidos (PGRS) deverão incluir nos planos os procedimentos adotados para a destinação final ambientalmente adequada dos produtos e das embalagens sujeitos à logística reversa;
III- O setor empresarial poderá (na verdade deverá) instituir entidades gestoras dotadas de personalidade jurídica própria com o objetivo de implementar os sistemas de logística reversa, podendo tais entidades atuar diretamente, com meios próprios, ou por meio de terceiros contratados para tanto;
IV- Devem ser estabelecidas metas progressivas, com cronogramas realistas, que contenham a previsão de evolução de sua implementação, inclusive com prazos diferentes para implementação em todo o território nacional de modo a contemplar particularidades regionais, expansão por etapas, até que abranjam a totalidade do território. Essas metas serão fixadas com base em critérios quantitativos, qualitativos e regionais;
V- Os acordos de logística reversa terão efeito vinculante similar às convenções coletivas – algo similar ao previsto no vetusto sistema de defesa do consumidor (e não implementado). Assim, os acordos setoriais firmados com a União terão força vinculante, obrigando fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, ainda que não signatários do instrumento. Estes serão obrigados a implementar e operacionalizar sistemas de logística reversa com as mesmas obrigações imputadas aos signatários e aderentes.
Haverá, para cada sistema de logística reversa, acompanhamento de performance, para tanto devendo ser instituído grupo de acompanhamento composto por representantes do setor empresarial e da entidade gestora respectiva, se houver. Relatórios deverão ser elaborados e divulgados, constando avaliação anual de desempenho, sem prejuízo da realização de campanhas educativas para promover o descarte ambientalmente adequado dos produtos e das embalagens sujeitos à logística reversa.
Os sistemas de logística reversa atualmente existentes deverão, por ocasião de sua próxima revisão ou aditamento, adequar-se aos termos da Deliberação CORI nº 11/2017. Porém, será possível que os sistemas atuais sofram pressão dos municípios e do ministério público para saírem do papel e assumirem a realidade econômica nacional – o que só será possível admitindo-se o ambiente de regulação que agora se forma com a resolução 11/2017.
Muito bom ver um trabalho sair do papel e ganhar a efetividade normativa…
O próximo lance, sem dúvida, é mensurar as obrigações para com a destinação dos resíduos, calculando-se o balanço de massa na produção. Mas isso… é assunto para outro artigo, baseado em outro estuda que já tivemos a oportunidade de realizar.
Bem vindos todos ao ambiente de regulação na economia circular brasileira.
Fonte: The Eagle View
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Atuou como consultor do Banco Mundial nos estudos e análises sobre a gestão dos resíduos sólidos urbanos no Brasil. Como consultor do PNUD junto à Presidência da República, elaborou os estudos visando implementar os conceitos legais de resíduo e rejeito, estabelecendo os critérios jurídicos de segregação e licenciamento dos processos na cadeia de gestão dos resíduos prevista na PNRS. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, das Comissões de Política Criminal e de Infraestrutura e Sustentabilidade da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/SP. É membro do Conselho Consultivo da União Brasileira de Advocacia Ambiental, Vice-Presidente Jurídico da Associação Paulista de Imprensa – API, Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
Gostaria de parabenizá-lo pelo excelente artigo, porem restou um esclarecimento e quanto aos resíduos eletroeletrônicos a deliberação se aplica?? Com a exclusão dos municípios quem fará a gestão??Continua igual ao setor privado?