A imprensa com liberdade de emporcalhar e a necessidade de desconstruir a vítima Juliane por ela ser policial
Por Sérgio Marques*
Caso o leitor tenha o desprazer de ler a pseudomatéria da Folha de SP, cujo título é “Policial Juliane teve seus últimos momentos com bebida, PEGAÇÃO e dança”*, verá a que nível o sectarismo ideológico contamina nosso “RIP” – jornalismo brasileiro.
Possuindo o mínimo de discernimento, o leitor ficará, certamente revoltado.
Enquanto o corpo de Juliane descansa eternamente em um Cemitério do Grande ABC, a “publicação” tratou de assassiná-la pela 2ª vez.
O jornal, emporcalhado pela seletividade ideológica, atentou gravemente contra a honra de uma cidadã, policial, brutalmente assassinada.
Menosprezando a gravidade do crime praticado, ignorando os fatos para se apegar a versões claramente incongruentes, rasgando os ditames do profissionalismo e da ética jornalistica, a reportagem da Folha de São Paulo distorceu a individualidade e a intimidade da vítima, de forma preconceituosa e maledicente, como se fosse um ser lascivo que “merecesse” a presença de uma milícia talibã enviada pelo tráfico para exterminá-la. Como se a charia, e não o funk, imperasse em Paraisópolis; como se a busca de diversão fosse um crime; como se a culpa pela morte brutal, se devesse ao comportamento sensual imputado à vítima; como se não fosse justamente esse tipo de preconceito – exprimido na matéria contra Juliane, o mote da luta travada pela também negra, pobre e homossexual Vereadora Mariele, morta no Rio de Janeiro, e pelos movimentos de minorias em todo mundo – pretensamente expresso no que se pretende ser a linha editorial da própria Folha de São Paulo.
O texto, um dos piores que já li, abandona o jornalismo para aderir à pornochanchada barata, machista e preconceituosa.
Quanto à família da finada… a insensibilidade é total.
De fato, a tragédia não interessa. O importante para o hediondo escrito, é apenas destruir a reputação de uma policial militar, que sofreu muito antes de ser executada.
Freud deve explicar a motivação inconsciente embutida no texto. Talvez a sensualidade explícita e exagerada descrita na matéria, turbine algum fetiche relacionado ao fato da vítima ser policial militar.
Quanto aos criminosos… Vislumbra-se outro ato falho: tornaram-se elementos neutros no conto de terror venusiano.
Mark Twain leciona que o ser humano se distingue do animal, por sua capacidade de “corar de vergonha”. Talvez por isso, após o grave clamor surgido contra o escrito, o título da matéria, publicada “on line”, foi “aliviado” para “PM Juliane teve últimos momentos livres com bebida, beijos e dança”.
O termo “PEGAÇÃO”, chulo, vulgar, e sobretudo obsceno, desconhecido do português culto **, foi substituído pela palavra “BEIJO”.
A matéria ainda fez considerações imbecis sobre um dado estatístico grave: a maioria dos policiais militares executados, como Juliane, estava de folga.
Com certeza, o jornalista ignorante desconhece que ratazanas, hienas e criminosos, só atacam quando a presa, ou vítima, está solitária e em desvantagem. Dificilmente um marginal atacará um policial em serviço, principalmente se a intenção for a de executá-lo…
Mas a tragédia do segundo assassinato de Juliane não se esgotou na reportagem. Após emporcalhar o jornalismo brasileiro com a matéria, a reação do jornal foi ainda mais patética.
O próprio ombudsman da Folha, uma espécie de “Reclame Aqui” virtual da empresa, ouviu um editor do jornal que, não enxergando a gravidade do fato, tentou aliviar a horrível pauta, defendendo seu homólogo da desgraça sob o princípio da “liberdade de imprensa”.
Imperou o corporativismo, e restou emporcalhado o princípio da “liberdade de imprensa”, usado como papel higiênico para limpar a lambança, sem ponderação ou sinal de responsabilidade técnica.
Assim se manifestou o ombudsman:
“Impressiona que, após tantas reações, o jornal não tenha admitido que – no mínimo- passava mensagem equivocada na construção jornalística ambígua, popularesca e sexualizada com que noticiou os atos da policial antes do crime. Ao se prender às suas intenções, a Folha pecou por arrogância e distanciamento dos leitores”…
Será que a maioria das editorias responsáveis permitiria que texto como o em causa, fosse publicado? É provável que não.
Pelo menos nessa história o Ombusdsman da Folha funcionou. Já a Folha… não.
Aliás, o leitor assina a FOLHA DE SP?
É bom refletir…
Notas:
*https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/08/pm-juliane-teve-ultimos-momentos-livres-com-bebida-beijos-e-danca.shtml
**vide em Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, disponível em: http://www.academia.org.br/nossa-lingua/busca-no-vocabulario)
*Sérgio Marques é Major da Polícia Militar do Estado de São Paulo, bacharel em direito (UNIBAN), mestre em Ciências Policiais (APMBB) e pós-graduado em Política e Relações Internacionais (FESPSP), historiador militar.