Por Marco Aurélio Arrais
Serviço, o Clemente fazia qualquer que aparecesse.
De curação de bicheira em boi e cavalo, capação de porco, roçagem de pasto e derrubada de mato para plantação – era só encomendar.
Não tinha medo de trabalho. Desde pequeno, acompanhando o pai, aprendeu a trabalhar no que fosse preciso e no que a necessidade mandasse. Foi acostumado a obedecer, mas também a se fazer respeitado, pois homem que não se considera não tem valor nem merecimento.
Quando o Tonhão Bregogé vendeu a fazenda para um doutor deputado lá de Brasília, fez a recomendação de sua pessoa para trabalhar como capataz. Serviço não era muito, pois o homem não pretendia fazer criação em grande quantidade, nem tocar lavoura de vulto. As terras iam servir mesmo era para esperar valorização, pois o tal político saiu com a notícia de uma estrada, que num futuro não muito distante ia passar por ali.
Foi com um misto de apreensão e curiosidade que esperou pela mudança dos novos proprietários. Havia sido orientado para fazer a limpeza em volta da sede, já que o povo da família do patrão tinha muito medo de cobra. Sabia que esse tipo de gente sempre era de um entojo danado, cheia de cuidados e com umas exigências que na maioria das vezes, não tinham cabimento.
Teve o cuidado de capinar em volta da casa, no raio de uns vinte metros, além de roçar o pasto além da cerca no limite com o quintal, de maneira que o capim ficasse bem baixinho, sem condição de esconder bicho nenhum. O pomar foi limpo e varrido, como foi o exigido pela mulher do tal deputado.
Quando o povo chegou, daí a alguns dias, antes do feriado da Semana Santa, Clemente ficou admirado com a beleza das duas filhas do patrão. Pareciam moças de capa de revista, dessas que fazem fuxico das vidas de artistas, mas era só. Enjoadas, só aquele tanto. Se negaram até a cumprimentar os empregados, com cara de nojo. Quando queriam comer as frutas do quintal, tinham de ser lavadas com sabão, e só andavam no terreiro calçadas com umas botas de cano comprido, que iam até os joelhos. O que mais estranhou foi a maneira como elas falavam, meio com preguiça e meio chorosa, que nem mulher dama quando pede presente. O Pereirão, motorista viajado pelo Brasil inteiro, explicou que esse era o jeito da fala do povo lá na terra delas, pelos lados do estrangeiro, perto da Argentina. Mas pensando bem, devia ser também pelo sistema que tinham sido criadas, com muita adulação.
Tudo o que a mãe e as filhas queriam, tinha de ser providenciado na hora, nem que para isso tivessem de parar o serviço que estava sendo feito. A Zefinha, mulher do Luizão, fora contratada para trabalhar na casa, fazendo de tudo. Até água, quando elas tinham sede, a Zefinha levava, mesmo se estivessem sentadas no banco da cozinha, a menos de um metro da geladeira. E tinha que ser em copo bonito e na bandeja. A patroa e as filhas viviam reclamando de tudo: do calor durante o dia, da friagem da manhã, do mugido dos bois, do cacarejo das galinhas, dos latidos dos cachorros e até do canto da passarada, quando o sol começava a levantar, na barra do dia.
Quando foram embora daí uma semana, foi um sossego. O patrão disse, então, que iriam voltar no mês seguinte, e que o seu filho mais velho, que estudava numa universidade lá do Rio de Janeiro, viria com eles, para conhecer a fazenda. A patroa ordenou ao Clemente que providenciasse um cavalo manso para o rapaz montar, e que quando ele chegasse ia ficar responsável pela sua segurança, devendo atendê-lo no que fosse preciso. Ficou sem entender a cara fechada e o olhar atravessado do patrão para a madame.
No mês seguinte, como havia dito, o patrão voltou com o seu pessoal. De fato, veio junto o tal filho. Era um rapaz grande, forte, de voz grossa, que encantou as meninas filhas dos fazendeiros vizinhos, que tinham ido junto com os pais e autoridades do município, receber os novos moradores. Tem uma coisa que é igual com qualquer tipo de mulher, seja a bem criada no resguardo da casa ou a escorregada na safadeza. Não pode ver homem novo no pedaço, que ficam todas elas assanhadas. É uma cochicharia, uma conversação, um deslumbramento que não tem fim.
E as que são criadas dentro de casa, no cercado da família, então ficam sonhando com casamento, doidinhas para serem escrituradas em cartório com o sobrenome dos pretendidos.
O procedimento do rapaz foi de distância e consideração. O procedimento dele, ao ser apresentado a cada uma das mulheres presentes se curvando, pegando a mão delas pela ponta dos dedos e beijando com respeito, demonstrou ser uma pessoa de educação refinada. Todos os presentes garantiam que só tinham visto isso em filme antigo, de gente da nobreza. Só um rapaz muito competente na praticância da vassalagem feminina, teria condição de demonstrar tamanha fineza. Sério, conversou educadamente com as meninas, dando a elas um tratamento de primeira, com muita lordeza, mantendo um afastamento respeitoso. Isso fez com que fosse muito elogiado, pois é muito difícil nesse nosso tempo, encontrar um rapaz dotado de tanta cavalheirice. Cada uma das meninas foi depois para sua casa, sonhando em ter a atenção dele.
No dia seguinte, Clemente arreou o cavalo e levou-o à casa do patrão, de onde sairiam ele e o moço, para dar uma volta pela fazenda. Na hora do rapaz montar o cavalo, foi uma confusão. O sujeito não conseguia saltar para cima do arreio, e foi preciso que o capataz o ajudasse. Clemente ficou sem jeito, pois teve que botar as duas mãos na bunda do cabra, empurrando-o para cima da sela. Ele tinha medo de cair. Se pelo menos fosse uma das irmãs dele, ficaria muito contente, mas esse negócio de apalpar rabo de barbado não é coisa nem um pouco agradável.
A conversa, que devia ser sobre a propriedade, virou uma especulação danada sobre sua vida. Quis saber se era solteiro, se tinha namorada, se não tinha perigo tomar banho pelado no córrego, e se mais tarde estaria desocupado. Parecia até conversa de moça querendo arranjar namorado.
Daí em diante foi um grude danado. Por exigência do moço foi dispensado de qualquer serviço, para ficar todo o tempo à sua disposição.
Foi então que o rapaz começou a ter um comportamento diferente, tomando liberdade. Disse que poderiam ser amigos, pois tinham praticamente a mesma idade. Daí a pouco deu para fazer umas brincadeiras meio desajeitadas, como dar tapa e apertar com a mão sua bunda e pegar na sua estrovenga. Ria e dizia que era só de brincadeira, de sacanagem. Embora estranhasse esse tipo de comportamento, não deu muita importância.
Devia ser coisa de gente lá da cidade grande, onde o povo tinha um comportamento bem diferenciado.
Numa tarde durante o banho no córrego, o sujeito abraçou ele por trás, bem apertado, fungando no seu cangote, e espremendo a estrovenga lá na bunda dele. Foi um susto danado. Clemente deu um coice no vazio do desaforado, que foi parar em cima de uma moita de capim, desmanchando uma bola de carrapatinho que estava pregada lá. Este reclamou da sua reação, dizendo que era estúpido, só estava brincando, que não quis ofender. Mas quando se viu infestado dos carrapatos, começou a dar uns gritinhos finos e curtos, num “ui ui ui” inzonado, com jeito de mulher chiliquenta. Queria que o Clemente catasse os bichos pelo corpo dele, o que o peão não fez de jeito nenhum. Numa outra ocasião, depois de passar para o Clemente um filme de luta livre na televisão, propôs fazerem o mesmo. Contou que nos tempos antigos, os lutadores dum lugar chamado Grécia brigavam pelados, e que aquilo era coisa de macho. Apesar da explicação o capataz preferiu dispensar. Só de pensar em se agarrar com homem, já ficava sentindo incômodo. Quanto mais pelado!
Mas de uma coisa Clemente tinha muita vontade. De aprender a dirigir, tirar carteira de motorista profissional e virar caminhoneiro. Era uma coisa que queria desde menino, mas nunca tivera condições financeiras para isso. A escola de chofer de caminhão ficava na sede do município, a três léguas da fazenda. E não é que o patrãozinho se ofereceu para ensiná-lo a dirigir na camioneta do pai? Só que tinha de ficar em segredo entre eles. Nessa altura, o Clemente já tinha virado Quequé no tratamento dado pelo rapaz. Mas só o chamava assim quando estavam sozinhos, nunca perto das outras pessoas. Clemente pediu para ele parar com aquilo, pois ficava numa sem graceza danada, além de achar que era afrescado, mas não adiantou.
Reparou que quando não havia ninguém por perto, a voz do moço ficava um tanto adamada, macia, meio miada, de uma delicadeza sem tamanho. Falava baixinho e bem de perto, fazendo biquinho com os beiços. Ele até deu para apertar e revirar os olhos, numa piscação miúda e nojenta. Ficava sem entender que arrumação era aquela.
Começaram as aulas de direção longe da fazenda. Saíam dizendo que iam à cidade, e ficavam rodando por aquelas estradas perdidas e vazias, que não levavam a lugar nenhum. O capataz estava muito incomodado pela insistência do outro em ajudá-lo a trocar as marchas do carro. Nessa hora escorregava a mão, subia com ela pela sua perna, e se ele não golpeasse de lado, parecia que ia chegar lá na estrovenga.
No terceiro dia de aula, disse ao Clemente que parasse o carro. Ele estava errando demais a mudança das marchas. E que era hora de aprender a dar ré. Ficaram um tempão labutando com aquela alavanca de marcha, empurrando para a frente, para trás, para a direita e para a esquerda.
Segundo o moço, aquilo era necessário, pois quando o carro estivesse em movimento, não podia errar, senão estragaria a mecânica.
Uns cinquenta metros adiante na estrada, numa baixada, havia um córrego que era atravessado na rasura, pois não havia ponte.
Foi então que aconteceu! Num repente, com uma das mãos o sujeito juntou e apertou o pau lá dele. Com a outra, virou sua cabeça e tacou-lhe um beijo na boca. O susto foi tão grande, que Clemente deu uma mordida no beiço do sujeito, quase arrancando um pedaço. No sufoco, tirou um pé da embreagem, deixando o outro no acelerador. Deu um soco no meio da cara do sujeito, jogando-o contra a porta do carro. Puxou a mão que segurava sua estrovenga, libertando-se. Quando olhou, o sujeito estava com a cara cheia de sangue, que escorria da boca e do nariz quebrado, e gritava que nem mulher que pisa em sapo. Abriu a porta e saltou com o carro em movimento.
O carro acelerado como estava, foi direto para dentro do córrego. A carroceria ficou apontando para o céu, com a frente afundada na água.
Com muito custo, Clemente vazou a correnteza até chegar ao raso. Desesperado, enxaguava a boca e esfregava areia nos beiços e na língua, para desinfetar, morrendo de nojo daquilo. Foi então que entendeu que o cabra era um afemado, daqueles que desgostam de mulher. Já tinha visto o tal tipo na televisão, mas ainda não tinha topado com nenhum. Compreendeu a insistência da mãe do moço em colocá-lo junto com o filho. Ela já sabia disso, e até ajudava. A gritaria e o escândalo do outro, fez com que voltasse à realidade. Viu que além do talho no beiço de baixo e do nariz quebrado, estava com um corte grande na testa, pois tinha batido violentamente a cabeça no para-brisa da camioneta.
Saiu dali na carreira, sem rumo. Depois, se acalmando, procurou tomar rumo da fazenda vizinha, para pedir ajuda. O dono, seu Manoel, o conhecia desde menino. Ouviu a história, acolheu o rapaz e no dia seguinte foram até a delegacia. Quando chegaram, a coisa estava feia. Havia uma reclamação de tentativa de assalto e de agressão contra o moço rico. O deputado exigia a prisão imediata do bandido, para o qual ele havia dado trabalho. Dizia que felizmente o mal feito não tinha sido contra suas filhas, expostas a um grande perigo com a presença do criminoso na sua casa.
O delegado, depois que ouviu o Clemente, pessoa de seu conhecimento há muitos anos, entendeu tudo. Mesmo assim, ligou para um seu amigo policial em Brasília, que passou a ele informação sobre a pretensa vítima. Era muito conhecido por lá, tendo sido flagrado várias vezes em situação vexatória, nos estacionamentos dos shoppings, em agarramento com outros barbados da nação dele. Lá era famoso por assediar homens, além de frequentar boates onde cabra macho não ia. A influência do pai deputado sempre o livrara dos problemas que causava. Por isso havia sido mandado para o Rio de Janeiro, cidade onde poderia viver com mais liberdade, pois lá o povo não botava atenção nestas coisas.
O tal do processo criminal parou por aí, não foi tocado. Clemente achou melhor mudar-se para outra região, pois não queria nunca mais topar com ninguém da família do político.
Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”.
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