Antenor Pinheiro e as obrigações do coronelismo no sertão goiano
Por Marco Aurélio Arrais
Meu avô materno, seu Antenor Pinheiro, antes de ser proprietário rural, exerceu na sua vida diversos ofícios. Foi dono de padaria, armazém, oficina de conserto de arreios e outros apetrechos de couro usados em montaria e equipamento de tropeiro, além de barbeiro.
Tinha total aversão a cachaça. Vendia, mas não bebia. E só vendia a garrafa lacrada, pois não admitia que nenhum cachaceiro ficasse esfregando o umbigo no balcão do estabelecimento conversando fiado, atrapalhando o atendimento e cuspindo no chão. Deixava bem claro que seu armazém não era chiqueiro, e seu funcionário não ia lavar porcaria de bêbado. Outra coisa que não suportava era jogo de baralho. Dizia que era ocupação de vagabundo.
Paralelo a essas ocupações, prestava socorro financeiro a pessoas necessitadas a troco de um jurozinho. Naqueles tempos não havia rede bancária nos rincões do cerrado.
Atendia, também, algumas situações que requeriam procedimento necessário, que ia da diplomacia a um entendimento mais rigoroso, conforme a necessidade.
Diziam que ele era um “ajustador”.
O ajustador era a pessoa encarregada de mediar situações que envolviam conflitos diversos, que iam de dívida não recebida a reposição de cercas de propriedades rurais nos limites corretos, além do apaziguamento entre famílias em época de eleição, além de mediar um caso ou outro de descabaçamento de moça donzela.
Isso quando o ofensor, comilão do vintém de moça de família, relutava em corrigir o mal feito, escriturando a vitimada em cartório do governo, com seu sobrenome. Nesse caso fazia-se acompanhar do destacamento local da Força Pública do Estado de Goiás. Se o degenerado insistisse em não ir por bem, seria conduzido à força. Aí não era certeza de que chegaria à cidade com os dois bagos comprovadores da sua macheza.
Pelo que consta, nunca deixou de ser padrinho nos casamentos em que era requisitado para ajustar.
Para corrigir a ocupação irregular de terra, sabia agir com diplomacia. A conversa com as duas partes era respeitosa, fazendo ver os direitos e limites firmados em escritura, ou o caso em que os tais limites fossem conhecidos por todos.
Fazia ver que mais valia a amizade antiga, que muitas vezes vinha dos antepassados. Relembrava fatos antigos, de ajuda mútua, que não deviam ser esquecidos pelos mais novos. Falava de antigos casamentos, de velhos compadrios. Sempre dava certo, e a cerca voltava para seu local de origem, na paz de Deus.
A coisa era mais difícil em caso de cobrança de dívida. Quase sempre o devedor não possuía os contos de réis necessários para saldar a conta. Pagava então com bens, fossem alguns alqueires de terra, cabeças de gado ou parte da produção estocada para ser negociada.
Aí então o produto era avaliado, e feitas as contas era só encostar os carros de boi e carregar com as sacas. Assim também fazia com os porcos e outros bichos miúdos. Quando o pagamento era efetuado com gado, este era juntado no curral e tocado porteira afora. Nem o credor ou o devedor escolhiam quais animais seriam levados como pagamento ou ficariam. O pagamento da dívida ia sendo contabilizada à medida que iam saindo, sendo a porteira fechada quando atingisse o valor devido.
Ocorreu que, durante um desses recebimentos, um menino de uns seis anos, vendo que seu boizinho de estimação ia ser levado, gritou que o bicho não iria. Enfrentou o pai, os irmãos mais velhos, e abraçado com o garrotinho, desafiava quem tentasse contrariá-lo. Diante da atitude firme do menino, e já que ele não era responsável pela dívida, seu Antenor ordenou a liberação do animal. Ficou admirado pela coragem, pela macheza do menininho.
Já o caso de reparação de dano por desdonzelamento ilegal, o procedimento requeria maior cuidado, pois era necessário, antes de tudo, preservar o secretismo dos procedimentos, tendo em vista a situação delicada das famílias envolvidas. Normalmente o mal feito ocorria quando das festas de quermesse, à época de São João e São Pedro, quando acontecia uma distração da mãe e das tias da menina donzela que, levada no bico pelo ofensor, abria as pernas, entre as moitas do cerrado, e permitia o usufruto daquilo que era guardado e protegido com todo desvelo, mais pelos familiares que por ela, dona da preciosidade.
Certa feita seu Antenor foi chamado para acertar um dessas situações de desonramento. As famílias eram conhecidas, de longa convivência. A ciosa estava começando a azedar, pois a menina não contava para os pais na época correta do acontecido. A barriga marcava já uns dois meses, passando da hora de regularizar a situação, pois se demorasse mais, daria assunto para falatório.
No dia do ocorrido, o pai e os irmãos da prejudicada estavam fora, tratando de apartação do gado num retiro afastado. Em casa, só a mãe e a filha nos seus quinze anos, quando chegou o filho do fazendeiro vizinho, rapaz de seus dezenove anos, dizendo que vinha a visita.
Já tinham reparado que os dois estavam de namoro, pois nas festas e nas missas, ficavam de longe, trocando olhares e sorrisos mal disfarçados, mas tudo dentro de uma distância regulamentar e no respeito devido.
A menina se prontificou a fazer um café, mas viu que não havia nenhum grão torrado na lata. Diante disso, todo prestativo, o moço ofereceu-se para torrar o café nas chamas do fogão à lenha, o que foi aceito pela dona da casa, que enquanto isso, iria amassar um biscoito de polvilho.
O café era torrado num cômodo fora da casa, por causa da fumaça que poderia impregnar tudo com o cheiro. E foi quando o trem aconteceu! A torra do café durou o tempo suficiente para que a moça facilitasse outra torra, as dos vinténs lá dela. Como conseguiram fazer as duas coisas ao mesmo tempo, nunca foi esclarecido. Meu avô, homem praticante há longa data de bate-coxas clandestinos, nunca conseguiu desvendar o processo utilizado para conciliar esses dois serviços que exigiam atenção, cuidado e competência.
No fim, quem levou bronca maior foi a mãe da menina, pela sua distração. Mas tudo foi esquecido, depois da escrituração da moça em cartório e da festa, que durou todo um fim de semana e custou a vida de um boi, três porcos, vinte galinhas, mais duas sacas de arroz, uma de feijão e um saco de farinha de mandioca, além de todo o estoque de foguete do armazém da vila, fora o estrondo de muitos tiros de calibre 38 e 44, despejadas das bocas dos revólveres e carabinas dos membros das duas famílias.
Uma festa linda, bem goiana!
Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”.
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