Procuradores da República viram a mesa, ajuízam ação de 155 bilhões contra poluidores e impugnam acordão de 24 bi, firmado entre empresas e governo.
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Sem atentar para o detalhe das circunstâncias, empresas poluidoras firmaram acordo bilionário e, agora, correm o risco de arcar com indenizações dezenas de vezes maiores, pedidas em ação ajuizada pelo MPF
Imprevisão de uns, prudência de outros
Sem ter assinado o “Acordão” entre União, estados e poluidores, a Procuradoria da República ajuizou ação para total reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem da Samarco
Prudente, e já escaldado por outros episódios (como o do rompimento da barragem de Cataguases, em 2003), o Ministério Público Federal (MPF), quando ocorreu o desastre de Mariana- MG, formou uma Força-Tarefa que investigou causas e efeitos do rompimento da barragem da Samarco.
Em que pese todos os encontros e desencontros decorrentes da confusão institucional surgida após o desastre da Lama da Samarco, o Ministério Público continuou impassível, analisando e adotando medidas pontuais com relação ao fato.
Os procuradores da república não se impressionaram com o “acordão” firmado entre União Federal, estados de Minas e Espírito Santo, ministério público de minas e empresas poluidoras. Não integraram a primeira ação civil pública e muito menos firmaram o famoso “acordão” de 24 bilhões de reais.
Procuradores experientes e participantes de outros casos similares, como José Adércio Sampaio e Eduardo Santos Oliveira, deveriam ter servido de parâmetro para aferição do comportamento do mais importante órgão ministerial do país. Desconsiderar esse fator, foi fatal.
Esse detalhe deveria ter servido de alerta para as empresas poluidoras. Porém, na pressa, as empresas revelaram imprudência similar aos entes estatais que buscavam com elas um acordo.
Da mesma forma que revelaram possuir péssima governança, a mineradora Samarco e suas controladoras demonstraram não terem efetuado análise de riscos institucionais.
Assim, firmaram um acordo e… ao que tudo indica, poderão ter de “pagar duas vezes”, pois o Ministério Público Federal ingressou com outra ação civil pública…
A Ação Civil Pública do MPF
Com pedido de liminar, o MPF (com apoio do MP do Espírito Santo), ajuizou ação contra as empresas Samarco Mineração S.A, Vale S/A e BHP Billiton Brasil Ltda, e contra a União e os Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo para que sejam obrigados a reparar integralmente os danos sociais, econômicos e ambientais causados pelo rompimento da barragem de Mariana.
Também são réus na ação a Agência Nacional de Águas (ANA), o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBIO), a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Instituto Estadual de Florestas (IEF), o Instituto Mineiro de Gestão de Águas (IGAM), a Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM), o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais(IEPHA-MG), o Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (IEMA), a Agência Estadual de Recursos Hídricos (AGERH) e o Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo (IDAF).
Indenização estratosférica
O valor preliminar de reparação, pedido na ação, é de R$ 155 bilhões.
O parâmetro utilizado para balizar o pedido foi o custeio da reparação dos danos provocados pelo desastre da Deepwater Horizon – operada pela British Petroleum, ocorrido no Golfo do México em 2010, que ocasionou o vazamento de cerca de 4,9 milhões de barris de óleo, impactando 180.000 km² de águas marinhas e matando 11 pessoas.
Para os procuradores da república subscritores da ação, “não parece crível, nem técnica, nem moralmente, que o valor do meio ambiente humano, cultural e ambiental no Brasil seja inferior ao de outros países”.
Por se tratar, todavia, de um valor estimado, o MPF requereu seja realizado diagnóstico e valoração dos danos por meio de equipe técnica independente, de modo a definir os valores e o cronograma de execução das ações de reparação, recuperação e indenização socioambientais.
Pedido quilométrico
O pedido ajuizado tem 359 páginas. Anexo ao pedido, o MPF protocolou mais de 10 mil páginas de laudos técnicos, relatórios de inspeção e depoimentos, instruindo a inicial.
O MPF formulou mais de 200 pedidos. Em caráter liminar, postulou, entre outros, que as empresas Samarco, Vale e BHP, de forma solidária, depositem em um fundo privado próprio, “sob gestão e fiscalização de auditoria independente”, o valor inicial de R$ 7,7 bilhões, correspondente a 5% da valoração mínima dos danos, e apresentem “garantias idôneas” à plena reparação dos prejuízos.
A ação pediu várias medidas emergenciais de natureza socioambiental e socioeconômica, destinadas a minorar o drama causado pelo desastre nas populações atingidas.
Pediu também medidas destinadas à garantia de segurança das estruturas remanescentes no Complexo de Germano, de modo a evitar novos rompimentos e ainda mais perdas de vidas humanas.
Requereu a contenção efetiva dos rejeitos, que continuam a ser carreados de Fundão e lançados na Bacia do Rio Doce e no Oceano Atlântico.
O MPF pretende, também, a proibição imediata da pesca ao longo do rio Doce e da área costeira afetada.
Foram requeridas ações emergenciais para recuperação da flora, da fauna e do patrimônio histórico-cultural, paisagístico e arqueológico.
Medidas de compensação
O rompimento da barragem da SAMARCO inviabilizou o abastecimento de água e comprometeu o saneamento básico nos municípios banhados pelo Rio Doce.
O caso de Governador Valadares é mencionado expressamente. Nas semanas que se seguiram ao rompimento da Barragem, a cidade sofreu crise de desabastecimento de água, com saques de caminhões de água pela população.
Por isso, requereu o MPF que os réus sejam condenados, solidariamente, a adotar medidas de compensação em valor a ser definido pericialmente, mas não inferior a R$ 4,1 bilhões – para garantir realização de obras necessárias aos sistemas de saneamento básico nos municípios afetados ao logo do rio Doce, de acordo com indicação técnica no plano de recuperação ambiental dos municípios.
A indenização deve incluir investimentos no abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e drenagem de águas pluviais.
“Trata-se de medida de recuperação e melhoramento do meio ambiente artificial que é fundamento necessário para a melhoria do meio ambiente natural da bacia hidrográfica afetada”, segundo informou o MPF.
Garantias, ativos e lucros
Cabe, ainda, segundo o pedido, às empresas-rés, manter depósito líquido e corrente mínimo de R$ 2 bilhões ou, após definido o cronograma físico e financeiro de reparação, de 100% dos gastos previstos para cada período de 12 meses – o que for maior.
Como forma de garantia adicional à reparação dos danos, o MPF pediu, liminarmente, a vedação de oneração ou alienação de bens do ativo fixo não circulante e a proibição de distribuição de lucros da Samarco, Vale e BHP – inclusive na forma de dividendos, quando for o caso, e juros sobre capital próprio, devendo ser determinado o bloqueio judicial dos valores deles provenientes.
O MPF também requereu a aplicação de sanções previstas na legislação ambiental às poluidoras, de modo a suspender os financiamentos e incentivos governamentais a elas concedidos, decretando-se, imediatamente, o vencimento antecipado de todas as operações de crédito que contemplem tais benefícios.
A ideia é, praticamente, liquidar com a operação.
Danos socioambientais
O rompimento da barragem de Fundão provocou destruição ao longo de toda a bacia do rio Doce, chegando ao mar, no município de Linhares/ES.
Houve perdas de vidas humanas, poluição e contaminação de recursos hídricos (córrego Santarém, rio Gualaxo do Norte, rio do Carmo, rio Doce e seus afluentes, regiões estuarina, costeira e marinha), do solo, do ar e do meio ambiente cultural.
O desastre comprometeu a economia regional e destruiu agricultura, pecuária, comércio, serviços e atividade pesqueira em toda a bacia hidrográfica, além da infraestrutura pública e privada nas cidades afetadas.
Os municípios também tiveram prejuízos, tanto os decorrentes da diminuição na arrecadação tributária, como os relacionados às ações emergenciais realizadas para mitigar os efeitos do desastre sobre a população atingida, e ainda à perda de receita de alguns serviços, como o de abastecimento de água, esgotamento sanitário e produção de energia elétrica.
Em razão disso, o MPF pediu a condenação dos réus para que seja reconhecida a existência da obrigação das empresas de reparar os danos morais e patrimoniais dos afetados, para que se viabilize o posterior ajuizamento de ação de cumprimento pelos interessados. As empresas também devem ressarcir todos os gastos públicos feitos com recursos humanos, materiais, logísticos e outros que se fizeram e venham a ser necessários em razão do rompimento da barragem de rejeitos de Fundão, feitos pelos entes públicos.
Dano moral coletivo
O MPF requereu reparação de dano moral coletivo.
O pedido entende ter ocorrido o dano na medida em que os atos infirmados causaram prejuízos que transcenderam os valores ambientais passíveis de serem restaurados, mitigados ou compensados materialmente.
Assim, “a indenização deve levar em conta os lucros cessantes ambientais, que são decorrentes do período de espera para o cumprimento da obrigação de reconstituir, em que a coletividade é privada de desfrutar do meio ambiente equilibrado”.
Para calcular essa indenização, o MPF pede que seja considerada a extensão e gravidade do dano, o tempo decorrido entre o dano e recuperação ou compensação ambiental e o caráter pedagógico da indenização.
Os valores devem ser destinados à tutela de direitos coletivos vinculados à área impactada.
O MPF também pede que as empresas sejam condenadas destinar, compensativamente, aportes suficientes em apoio e fortalecimento das unidades de conservação existentes na Bacia do Rio Doce.
Povos indígenas
A ação destaca que, para os povos indígenas, como os Krenak, que habitam a região de Resplendor/MG, a relação com o rio Doce não é apenas física, mas cultural e espiritual. Ressalta também a gravidade dos impactos vivenciados pelos povos indígenas Tupiniquim e Guarani, bem como pelos quilombolas, ribeirinhos e pescadores artesanais, que tiveram a imediata perda do recurso natural central para sua alimentação, reprodução cultural e fonte de renda.
Em relação aos povos indígenas e comunidades tradicionais atingidos, o MPF pediu a condenação de todos os réus na obrigação de promover, após realização de consulta livre e informada a esses povos e comunidades, nos termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) –, a recuperação ambiental de suas terras e indenização pelos danos socioculturais e humanos sofridos. A União deve concluir o processo de demarcação do território de Sete Salões, contíguo à terra indígena, o que é uma antiga demanda do povo Krenak, e as empresas, como medida compensatória, devem ressarcir os gastos da União na conclusão do processo.
Impugnação ao “acordão” entre União, estados e poluidores
O MPF requereu a impugnação do acordo da União, Minas Gerais, Espírito Santo e empresas. De fato, o autor da ação entende que o Termo de Ajustamento e de Transação celebrado entre o Poder Público e as empresas Samarco, Vale e BHP “não tutela de forma integral, adequada e suficiente os direitos coletivos afetados, violando preceitos constitucionais como o princípio democrático e o princípio do poluidor-pagador”.
Para a Força-Tarefa, o acordo não contou com nenhuma participação efetiva dos atingidos nas negociações e limitou os aportes de recursos por parte das empresas para a adoção de medidas reparatórias e compensatórias. Além disso, concedeu-se injustificadamente tratamento beneficiado à Vale e à BHP Billiton, vulnerando a garantia de responsabilização solidária.
O acordo, segundo o MPF, também desconsiderou a garantia de responsabilidade solidária do próprio poder público para a reparação do dano, não tendo sido sequer estabelecidos mecanismos jurídicos capazes de garantir a efetividade do cumprimento das obrigações assumidas pelas empresas, o que “transformou o ajustamento em algo próximo de uma carta de intenções”.
Responsabilidade do Poder Público pelo dano ambiental
Para o MPF, a tragédia em Mariana demonstrou que as autoridades públicas foram omissas ou negligentes, desde a emissão da licença ambiental, que autorizou o exercício da operação da barragem, até a sua execução.
Segundo o pedido, “é patente a omissão da União e do Estado de Minas Gerais, por meio de seus órgãos e entidades ambientais e minerário, em fiscalizar a segurança da barragem de rejeitos de Fundão. Há responsabilidades primárias, decorrentes dessa omissão, e responsabilidades subsidiárias, incidentes no caso de descumprimento das obrigações por parte das empresas”.
O autor entende que a União e os Estados devem “responder pela omissão, com atuações que a supram plenamente”, e, sobretudo, “devem controlar efetivamente as ações de planejamento e da execução das medidas de reparação integral do meio ambiente, não podendo terceirizar essa responsabilidade, tipicamente de Estado, para as empresas poluidoras”. O MPF, por óbvio, entende que essa “terceirização” foi uma das responsáveis pela tragédia.
Obrigações devem incidir também sobre a União e o ICMBio, para que sejam condenados a concluir, em no máximo um ano, o processo de criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável da Foz do Rio Doce, no Espírito Santo, e, em no máximo três anos, adotar as medidas necessárias à criação de unidade de conservação para proteção dos vales dos rios Gualaxo do Norte e Carmo, na região situada entre a barragem de Fundão e o reservatório de Candonga, em Minas Gerais, que foram praticamente destruídos pela onda de rejeitos de Fundão.
Governança Corporativa e dependência econômica
Visando implementar a Política Nacional de Resíduos Sólidos, o MPF requereu a destinação ambientalmente adequada dos resíduos de mineração, através da introdução dos rejeitos que venham a ser retirados da área afetada em outra atividade econômica, por meio de sua transformação em produtos utilizados na construção civil, como areia, argila, cimento, tijolos, blocos e outros, utilizando-se tecnologias desenvolvidas por universidades brasileiras, para se evitar a necessidade de criação de novas barragens ou pilhas de rejeitos.
De fato, a tragédia de Mariana revelou uma série de falhas de planejamento, de controle e gestão dos riscos que podem ter contribuído decisivamente para sua ocorrência. As empresas não teriam cumprido suas obrigações sociambientais, conforme determina a legislação brasileira.
Com vistas a prevenir que as empresas continuem a operar com os mesmos problemas, submetendo a população a desastres da mesma espécie, o MPF requer a realização de auditoria independente que avalie a governança corporativa das empresas e determine os ajustes e conformidades necessários, devendo dar publicidade aos seus relatórios e recomendações.
O MPF pediu, ainda, que a União e os Estados de MG e do ES sejam condenados a adotar estratégias para o desenvolvimento de outras atividades econômicas na região, diminuindo sua dependência à indústria minerária e estimulando o surgimento de novas indústrias na região.
Para tanto, a ação requereu o estabelecimento de linhas de crédito produtivo, apoio técnico ao desenvolvimento do plano de diversificação econômica da região de Germano e o fomento a novas indústrias e serviços, para atendimento de demandas provenientes das áreas atingidas.
Breve análise
A Ação do Ministério Público Federal guarda, evidentemente, alguns exageros retóricos, no entanto, é patente a legitimidade para ajuizar o pedido.
De fato, como consta em matéria já publicada, a articulação da AGU com os estados, que resultou na Ação Civil Pública da União, Minas e Espírito Santo contra a mineradora e suas controladoras, começou com um palpite dado em um jantar de confraternização. No qual o interlocutor indicou ao então Advogado Geral da União sobre a importância do governo federal tomar a iniciativa.
Dali…a coisa seguiu em frente, sem mais palpites.
Porém, a pressa governamental em garantir um acordo, a má leitura da oportunidade realizada pela mineradora e suas controladoras e a preocupação dos estados (em especial o estado mineiro) em sair da alça de mira dos respectivos ministérios públicos,para se ombrearem a essas instituições no polo ativo da relação, resultou em um acordão articulado SEM BASE MATERIAL.
De fato, faltou apuração criteriosa dos danos ambientais. E a limitação de valores, sem delimitação dos danos… pode desautorizar o primeiro acordo.
Pesou, e muito, a não inclusão do Ministério Público Federal na articulação do acordão. O MPF é autor legitimado par ajuizar ação civil pública e, agora, o faz, requerendo inclusive a impugnação do acordão.
Graças ao presidente FHC…e sua “incrível” visão de longo alcance, o efeito “erga omnes” originalmente conferido à ACP foi reduzido, por conta de medida provisória já convertida em lei, ainda nas gestões tucanas.
Resultado: a limitação, agora, transformou-se em uma porta aberta para a pretensão dos Procuradores da República vingar.
Como se dizia antigamente: o apressado…come cru e o mau pagador… pagará duas vezes.
Há exageros no pedido. Porém, a modulação competirá ao judiciário… já que o autor não o fez.
Porém, trata-se de um típico caso de “8 ou 80”, sendo que, no meio, temos um exemplo de governança corporativa “para vomitar”…
Como diria um capiau já falecido, esse caso teve, e ainda tem, “gravata demais… e bota na lama de menos”…
Para ler a íntegra da ACP e conferir em detalhes todos os pedidos feitos pelo MPF, clique aqui.
ACP nº 23863-07.2016.4.01.3800
Fonte: Sala de Imprensa do MPF
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