O Pacto Pela Governabilidade pode nos livrar da jurisprudência do medo que nos desestabiliza a cada dia
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
“Sempre achei que um dos mais graves problemas dos subdesenvolvidos é a sua incompetência na descoberta dos verdadeiros inimigos.”
Roberto Campos
Neste artigo procuro, a partir de uma crise dentre as várias ocorridas entre instituições e quadros da república, apontar os arquétipos mitológicos que envolvem a atual crise política brasileira, informar a razão porque entendo constituir o bolsonarismo um perigo para a República, ressaltar as disfunções que acometem o STF e o Congresso e concitar a todos à tarefa hercúlea de articular um pacto pela governabilidade do Brasil.
O que já está ruim, piora
Como diz o dito popular, nada é tão ruim que não possa piorar. Mas no caso brasileiro, a crise institucional ganhou aspecto mitológico, inversamente proporcional à envergadura dos personagens greco-romanos que compõem a mitologia.
O caso paradigmático é a crise institucional (dentre várias), entre o Supremo Tribunal e a chefia do Executivo Federal, em torno de uma estapafúrdia consulta formulado pelo PDT – Partido Democrático Trabalhista ao STF, sobre o “alcance do art. 142 da Constituição Federal e o papel das forças armadas”.
A consulta do partido que compõe a ala esquerda do parlamento nacional, notoriamente insubsistente, gerou uma decisão absurda do supremo sodalício e produziu uma reação ainda mais despropositada do executivo.
Senão vejamos:
O PDT, partido que faz linha auxiliar do lulopetismo, numa provocação explícita ao Presidente da República e às instituições militares, “consultou” a cúpula do Poder Judiciário sobre o alcance do art. 142 da Constituição Federal na definição do papel das Forças Armadas.
Não trouxe o PDT à corte qualquer questão ou conflito concreto relativo à aplicação da norma constitucional. Fez uma consulta “em tese”, com base no “ouvir dizer”, como se a suprema corte do país fosse órgão que emitisse pareceres administrativos hipotéticos – como a Advocacia Geral da União ou a Procuradoria Geral da República, em casos afetos a cada um desses órgãos.
Distribuída a peça no STF ao Ministro Fux, o magistrado, inacreditavelmente, ao invés de repelir a peça por inconsistência ou remetê-la ao plenário para analisar sua admissibilidade, proferiu “decisão liminar” e monocrática – como se consulta demandasse juízo de tutela.
Na decisão disse o óbvio: que Forças Armadas não são um poder constituído – portanto não constituem “poder moderador”, e tal atributo não se encontra previsto constitucionalmente desde a Constituição do Império.
Fux, porém, de forma isolada, decidiu ir além e “esclarecer” o alcance da Constituição. Passou a emitir conceitos políticos sobre o funcionamento das instituições de maneira geral, em especial das Forças Armadas, ditando regras de forma professoral. Uma verdadeira miniatura de Licurgo – o legislador espartano da antiga Grécia.
A Jurisprudência do Medo
Assim agiu o supremo ministro, para “prevenir”… “em tese”, uma “ação moderadora” das Forças Armadas. Obstruiu, com isso, de forma oblíqua, o exercício efetivo do dever de intervenção para manutenção da ordem – que as Forças Armadas de fato e direito possuem.
Fux ousou ignorar a história, os ditames da Teoria de Estado aplicada, a funcionalidade inescapável das instituições de defesa nacional, os elementos de soberania… para suprimir algo que de fato as FFAA possuem – e já exerceram no passado, na República, várias vezes! E não o fazem de forma escoteira – pois o Estado Moderno encontra-se lotado de exemplos na história comparada mundo afora.
Como se não houvesse uma crise de governabilidade, com choque constante entre o Poder Judiciário e Poder Executivo, o Supremo Ministro reiterou a efetividade da tutela judicial sobre a governança do país, rotulando qualquer ação divergente como golpe. Algo que Freud denominaria como “sintomático”.
Fux, com sua decisão estrambólica, firmou uma jurisprudência do medo. Mais uma dentre outras que expressa ou dissimuladamente o sodalício, na pior judicatura de sua história, têm excretado para desalento dos que se esforçam por viver em um Estado Democrático de Direito no Brasil.
Mas, como dito, o ruim ainda pode ficar pior.
Diante da decisão do “Licurgo de Brasília”, resolveram o Presidente Bolsonaro, o Vice Mourão e o Ministro da Defesa Fernando Azevedo, fazer as vezes de um neo-triunvirato romano. Assinaram Nota Conjunta para informar que “decisões judiciais absurdas não se cumprem” e que “Forças Armadas não fazem intervenção para a tomada do poder”.
Como não poderia deixar de ser, a Nota Conjunta emitiu sinais trocados junto à opinião pública. Elevou a temperatura – já bastante elevada, das tensões interinstitucionais na República.
A jurisprudência do medo consolida uma espiral de desinteligências interinstitucionais que, uma hora ou outra, poderá interromper o processo de maturidade do regime democrático.
É hora, pois, de ligar a sirene de alerta e reunir os melhores quadros da República, num esforço em prol de um Pacto pela Governabilidade.
A base mitológica na psicologia da crise
Arquétipos constituem um eixo comportamental instalado profundamente no inconsciente coletivo das civilizações. Determinam valores ancestrais, comportamentos, modelos e protótipos, expressos na filosofia, na psicologia e nas narrativas que marcam as impressões de nossa história. Não por outro motivo importa, e muito, identificar os arquétipos que imprimem o rumo da crise que ora analisamos.
Fato: Fux não é Licurgo, e o trio do Planalto não se equipara nem de longe a Pompeu, César e Crasso. Não protagonizam qualquer feito histórico e, sim, um embate de egos, demonstrando ignorância dos mais comezinhos princípios de Teoria do Estado.
No entanto, saindo da história medíocre para a mitologia greco-romana, vislumbramos um embate teratológico entre dois fenômenos institucionais:
A – Um Supremo Tribunal Federal que não decide de forma colegiada, e quando busca a “colegialidade”, gera crises, recalques e tergiversações. Não raro se presta a “revisar” decisões pacificadas – quando envolvem próceres da república (para o bem e para o mal), quando não se presta a servir de via transversa para partidos minoritários realizarem o que não obtém regularmente no parlamento. Dessa forma, substitui a função de resolver conflitos pela de gerá-los, e, com isso, destruir a governabilidade – fazendo-o por meio de decisões monocráticas ou extraídas de suas onze cabeças, tal qual a Hidra de Lerna; e
B – Um Presidente da República que se perde no próprio proselitismo. Trata de exercer a governabilidade delegando-a, de fato, a um gabinete moderador formado pelos seus ministros militares palacianos – mas não raro boicota a ação moderadora delegada emitindo sinais trocados, gerando com isso picos de instabilidade, por meio dos pronunciamentos e gestos, replicados por seus filhos e demais apaniguados ideológicos – tal qual Janus, o Deus Romano dos caminhos, cujo crânio possui duas caras.
Como dito, a psicologia explica essa relação comportamental com a mitologia. Ela é fruto da sabedoria humana em relacionar os mitos com os estágios mais profundos de nossa mente, que ainda ditam nossas reações apesar do tempo.
Um país no divã
Arquétipos mitológicos são conteúdos mentais do inconsciente coletivo, que agem como instintos psicológicos de um povo, segundo Carl Jung. E essa distorção mitológica serve de referência para a tragédia brasileira, cujo roteiro já estava traçado na derrocada final do lulopetismo – no processo de crise institucional que redundou no impeachment de Dilma Rousseff.
Dilma soçobrou sob o peso do maior quadro de corrupção sistêmica jamais visto antes na história mundial – resultado trágico das escolhas do populismo encabeçado por Lula – um visceral demiurgo – caracterizado por Platão como um artesão divino, um princípio organizador do universo que, sem criar de fato a realidade, modela e organiza a matéria caótica preexistente através da imitação de modelos eternos e perfeitos. Essa forma geradora de ilusões, encarnou no Lula, personificado pela etimologia do termo – demios significando “do povo” e ourgos, significando “trabalhador”. Tulcidides, relatando a guerra do Peloponeso expressa o sentido de “trabalhador para o povo”, usada em toda a península, com exceção de Esparta, como sinônimo de um alto magistrado.
O arquétipo populista, no entanto, agora torna a se repetir à direita, sob o pretexto da “restauração”, e nos cobra o alto preço da perda da liberdade, da destruição da cultura, da regressão na educação, da destruição do meio ambiente, do império da mediocridade e do risco de recidiva da corrupção em versão rastaquera. O novo demiurgo, encarnado no “Janus” do Planalto – reafirma o vaticínio marxista de que a história se repete em forma de tragédia na primeira vez e, na segunda, como farsa.
Por óbvio a transição de demiurgos não ocorre de forma isolada. Os monstros mitológicos se unem às ménades bacantes numa orgia decadente que destrói os demais poderes da República.
O país está, de fato, no divã. E parece não se tratar mais de uma questão psicológica e, sim, psiquiátrica. Necessita firme intervenção e remédios tarja preta.
Hércules, Titãs e a politeia
Personagens mitológicos demandam esforço hercúleo para serem compreendidos e administrados para o bem comum.
Como Hércules nos seus doze trabalhos, é necessário firme determinação de quadros mais preparados e experientes de nossa república, para nos livrarmos do ciclo vicioso das provocações, dissimulações, tergiversações e bravatas – que incitam badernas e quarteladas.
É preciso por fim à sucessão de tragédias e farsas instalada no país desde a queda do Império… e agravadas pelo populismo.
Esse esforço passa pelo reconhecimento dos fatos, pelo choque de realidade, pela assunção de responsabilidades. Essa assunção corajosa representa o novo trabalho de Hércules em terras tupiniquins.
É fato que há uma crise de liderança no planalto central. O presidente Bolsonaro reduz seu tamanho a cada dia, incapaz de conferir uma direção ao governo.
O peso da tragédia da pandemia, agravada pelo desgoverno, soma-se ao desastre da falta de planejamento em todos os setores, da economia sempre à reboque do rentismo bárbaro, da desconstrução da imagem internacional e da volta aos velhos e trágicos índices de violência. Como naquele velho filme de Bill Murray, acordamos todos os dias no mesmo “Dia da Marmota”… e não aprendemos nada com isso.
Também é fato que o ciclotímico presidente emite reiterados sinais trocados junto às hostes bolsonaristas. Incapaz de governar o barco para além das crises, justifica a inação pela obstrução do sistema. Afogado na ausência de talento para a governança, busca a tábua de salvação clamando pelo silêncio dos que testemunham o seu fracasso.
Assim, de forma patética, o bolsonarismo acena para o artigo 142 da Constituição – como se este tivesse vida própria, fora do conjunto de normas que constituem a República.
Por outro lado, é fato, ainda, que o dispositivo bolivariano não foi desmantelado em Brasília. Que a oposição sistemática dentro e fora do Congresso Nacional, passou a fazer uso do ativismo judicial e da artilharia de imprensa como forças auxiliares na sua guerrilha em prol da ingovernabilidade do país. A lawfare é importante arma no Estado de Direito, contra o Estado de Direito, mormente quando confunde direito com “direita”.
Assim, a oposição bolivariana busca fazer uso de todos os recônditos que tratou de aparelhar na jusburocracia, no chamado deep state, da cúpula do judiciário nacional ao fiscal da esquina, para desmontar qualquer tentativa de se instituir governança na Administração Federal.
Igualmente, é fato que, se há uma ação intervencionista para além do proselitismo, esta ação concreta parte do poder judiciário – que passou a interferir em toda e qualquer seara da organização e cumprimento do Poder Executivo. Muitas vezes, o STF tem saído do estrito terreno da legalidade para incorrer na clara tentativa de reorientar ideologicamente a governança.
Aliás, a interferência não para no executivo. Já ocorre também no processo legislativo – como se o Poder Encarregado de aplicar a lei aos conflitos… passasse a escolher qual lei irá aplicar e qual deixará de observar…
A confusão parece similar ao ataque dos Titãs ao Olimpo ou, pior, Olimpo dominado pelos Titãs… descendo a encosta para atacar a politeia.
Ante o caos, para evitar que a “Nova Ordem” fascista se imponha, compete à polis, aos cidadãos, se organizarem para enfrentar o ogro burocrático ensandecido por por seus conflitos intestinos.
Postos os problemas, resta a demanda por um esforço hercúleo dos brasileiros para buscar resolvê-los. Mas, primeiro, é preciso reconhecer que o quadro de onde emanaram, foi pintado há tempos.
A tarefa demanda liderança capaz
Parece que não saímos do epílogo do impeachment de 2016.
Naquela época, escrevi o seguinte texto que reproduzo em parte por retratar a presente crise:
“Sob os escombros do lulopetismo, afogados no mar de lama e destruídos pela judicialização absoluta da política nacional, jazem os corpos da Nova República de 1985 e da Constituição de 1988.
O Lulopetismo foi apeado do Poder, porém não saiu de cena. Permanece moribundo, sustentado por militantes sem rumo, colado ao fantasma do regime iniciado em 1985 e que gerou a Constituição de 1988.
O próximo inimigo será justamente o guardião dessa zumbilândia normativa: a jusburocracia instalada no Poder Judiciário e aboletada nas carreiras jurídicas de Estado, nos demais poderes da República…
Com o fim da “Nova República”, a Constituição Federal de 1988 dá seu último suspiro. Reduzida a um “Livro de Colorir” nas mãos da pior judicatura da história do país (com as exceções de praxe), a Constituição de 1988 tem servido de “escada” para arroubos cada vez mais descontrolados de um Poder Judiciário intoxicado pelo protagonismo, pelo ativismo e, sobretudo, pelo corporativismo.”
(…)
“Essa gangorra só acabará com uma ruptura institucional, e se com esta, nova constituição sobrevir. Quem viver, verá.
De fato, para que haja uma reforma de Estado efetiva, será preciso “desconstitucionalizar” privilégios, que impedem as mais banais medidas de saneamento administrativo.
Para tanto, a reengenharia de Estado – essencial para a governança no Brasil, irá enfrentar o pior inimigo: o estamento jusburocrático.
Não será uma batalha genérica. Será seletiva.
A burocracia paquidérmica que onera o povo brasileiro, sem lhe dar absolutamente nada em troca, dorme tranquila sobre o entulho normativo gerado pela moribunda Constituição de 1988. O guardião dessa zumbilândia normativa é a jusburocracia, instalada no Poder Judiciário e aboletada nas várias carreiras jurídicas de Estado dos demais poderes da República…
No corpo do Estado, as carreiras jurídicas – diletas filhas da Constituição de 1988 (plena de direitos e vazia de obrigações), constituem o câncer virulento e invasivo. A tudo travam, a tudo emperram, a tudo judicializam e nada realizam.
Em contrapartida, oneram gravemente a folha de pagamento da Administração Pública concedendo a seus quadros os maiores privilégios.
Não há dúvida: a jusburocracia será o próximo inimigo. Inimigo formidável – porque constitui um problema que obrigatoriamente deve fazer parte da solução.
Na Nova República, advogados públicos, procuradores, promotores e juízes ganharam autonomia plena. Porém, ao invés de controlar a máquina no varejo, passaram a provocar a judicialização de todas as coisas, no atacado.
Paradoxalmente, sob o pretexto de aperfeiçoar o regime democrático, instituíram a ditadura da caneta.
A ditadura da caneta judicializa atos, fatos, pessoas e coisas, institui o parecerismo – vício que a tudo trava e nada realiza, incentiva o fiscalismo e gera conflitos ao invés de resolvê-los.
Anotem:
Na iminência da crise apertar para todos, as carreiras jurídicas de Estado irão travar o jogo das reformas, objetivando manter todos os seus privilégios.
Para que a falecida Nova República não remanesça vagando como um zumbi sem rumo, o regime de transição, com Temer ou pós-Temer, terá que impor absoluto controle social sobre as instituições de controle do Estado.
Dificilmente Temer terá estatura para a tarefa, mas deverá conduzir o processo de resgate das carreiras técnicas de Estado, demolindo os privilégios absurdos conferidos às carreiras jurídicas públicas.
O grande desafio será reformar o judiciário e impor hierarquia e disciplina ao organismo do Ministério Público – o radical livre que, se por um lado oxigena a Administração Pública, por outro oxida e destrói suas funcionalidades…
Vencida batalha pelo Palácio do Planalto, o próximo alvo da mobilização da sociedade brasileira não será o Congresso Nacional mas, sim, o Palácio da Justiça…” (*)
O texto fala por si, como a própria constituição também o faz, para o bem e para o mal.
Elegemos Jair Bolsonaro presidente da República, com a promessa de que resolveríamos exatamente essa questão.
Reúne ele condições para assumir a tarefa? Creio que não.
Bolsonaro demonstra, a cada dia, não reunir qualquer condição para impor o absoluto e necessário comando republicano sobre as estruturas de controle do Estado.
Pelo contrário, os rompantes caudilhescos do Capitão mostram à evidência ser ele um indivíduo reativo, que sobrepõe sentimentos pessoais a interesses nacionais e é incapaz de se submeter a qualquer controle republicano. Sua entourage de seguidores eleva o frágil ego do líder, que se perde em bravatas e foge completamente do foco das obrigações para com o Poder.
Não controla a própria língua, que dirá a República.
Se houve um benefício imenso nessa pandemia de Covid-19, foi o fato do vírus ter exposto a farsa das lideranças populistas mundo afora, em especial a bolsonarista.
O vírus revelou quão despreparado é o chefe do governo federal para lidar com uma crise complexa – e o tamanho minúsculo de seus interesses em relação aos interesses da Nação.
Porque me desiludi
Frequentemente sou cobrado em relação ao apoio que dei à eleição do presidente Bolsonaro e à contribuição que dei na equipe de transição e no primeiro ano de governo.
Porém, fui acometido pela desilusão, e embora houvessem sinais identificados desde o início, o fator decisivo veio com o comportamento lamentável do líder em face da pandemia.
Isso tornou-se cristalino para mim, no momento em que li – no início da campanha negacionista da pandemia, uma daquelas postagens fétidas do “Gabinete do Ódio”, informando que “Bolsonaro era um gênio, por permanecer na crítica às restrições e deixar os governadores se desgastarem sozinhos junto ao eleitorado, aplicando as medidas de quarentena”.
O raciocínio, distribuído como um troféu pela central bolsonarista e reproduzido em larga escala pelos seguidores da seita, deixava evidente que a “crise da saúde” iria se agravar por conta de uma proposital omissão do governante, visando atribuir a responsabilidade da pandemia a terceiros para tirar vantagem do processo com as necessárias medidas de defesa e recuperação econômica, que a seriam articuladas no período.
Ali, naquele momento, lendo a bravata do líder e testemunhando os insultos distribuídos pelos seguidores do homem… inclusive contra médicos e cientistas verdadeiramente empenhados no combate à pandemia, me veio a epifania.
Como numa iluminação, percebi que o governante era indigno do país que o elegera. Um personagem minúsculo ante a magnitude da crise.
Descobri que Bolsonaro iria buscar se esconder – como de fato está – atrás da farda dos militares, atrás da toga dos magistrados, atrás dos três ministros técnicos que gerenciam as finanças, a agricultura e a logística nacional, deixando a eles o desgaste da busca por alguma governança – exatamente como fez e faz com os governadores, em relação à pandemia. Fugiria das suas obrigações para se dedicar à pantomima irresponsável dos factoides, bravatas e incitações á desobediência civil.
E foi exatamente o que Bolsonaro fez… e trata de continuar a fazer.
Me vi diante de um governante sem qualquer compromisso com a governança e com as instituições da república.
Que fique claro. A resolução da crise entre poderes, o desmonte do dispositivo bolivariano que ainda age em Brasília, o combate à cultura do fracasso e ao marxismo cultural, a desregulamentação da vida privada, a sanitização da vida pública, o combate duro ao crime organizado, a intolerância em face do loteamento de cargos e á corrupção, e o resgate da vontade nacional pela reforma das instituições – tarefas para as quais elegemos Bolsonaro, continuam prioridades de Estado.
Porém, no meu entender, essas tarefas não serão cumpridas sob a fraca liderança bolsonarista. Em verdade, o bolsonarismo nada constrói, pois está empenhado apenas em destruir.
Tenho memória. Ouvi em Brasília, diversas vezes, que não haveria espaço para o populismo. Mas o que vejo hoje é exatamente isso. E isso irá piorar, nas condições atuais, se buscarmos uma ruptura institucional. Caso a ruptura se fizer sob a liderança nociva do atual presidente – estaremos fadados a sucumbir ante o pior.
A manipulação política das forças de segurança e a aliança com o lixo partidário que hoje se desenha nas nomeações intestinas do governo bolsonaro, fora a nada dissimulada aliança com o Centrão, transforma o governo federal em uma república de jagunços, em um regime de suspeitos.
O Presidente foi eleito – inclusive com o meu voto e de quase sessenta milhões de brasileiros. Tem, portanto, legitimidade e detém um mandato popular para administrar o país. Essa legitimidade, no entanto, demanda contínua afirmação. No entanto, transbordou para muito além da capacidade efetiva de liderança de Bolsonaro, que encolhe a cada dia.
O governo federal, porém, não se esgota na figura minúscula do presidente. Aliás, o governo federal conta ainda com meu apoio. Mas a Síndrome de Janus que acomete o governo me permite também separar o rosto dos quadros que produzem, do rosto do líder que desfaz.
Assim, resta a Bolsonaro cuidar de manter uma boa e equilibrada equipe no seu entorno, se quiser ainda resguardar a legitimidade que lhe resta.
Para resgatar a credibilidade, ainda que num momento de improvável iluminação, será preciso retomar a necessária humildade para tanto. Se Bolsonaro, por algum milagre, assim proceder, evitará um desastre. Mas tudo leva a crer que não o fará. Ele não consegue enxergar para além do próprio nariz.
Observando o quadro como um todo, verifica-se que o atual conjunto de relações que Bolsonaro construiu não mantém o barco da república acima das ondas da insegurança jurídica e institucional. O barco irá afundar se o que aí está tentar impor sua vontade idiossincrática na base da força.
O que é preciso fazer
Que o que aí está não nos serve, já sabemos há décadas!
Que estamos no limite da ruptura, sabemos há anos!
Que chegamos próximo do insuportável, percebemos há meses!
Porém, também precisamos reconhecer que o que agora nos governa, não nos levará onde queremos.
Portanto, de forma alguma, devemos sacrificar nossa democracia na aposta em Bolsonaro. Mas não permitiremos que o governo volte ás mãos dos responsáveis históricos pela tragédia: os jacobinos populistas à esquerda e à direita, o establishment e sua estrutura jusburocrática parasita.
A saída está na articulação. Na busca por uma via alternativa ao populismo, na reunião mais que urgente dos verdadeiros democratas brasileiros. Na mobilização dos que possuem condições de buscar apresentar um novo plano de ação para o país.
É preciso um novo Pacto Pela Governabilidade. Uma articulação que submeta, pela transparência e pelo diálogo, lideranças e instituições ao compromisso inadiável pela busca concreta por uma saída justa para o Brasil.
O Pacto Pela Governabilidade pode nos livrar da espiral das bravatas populistas e da jurisprudência do medo, que nos desestabiliza a cada dia.
É preciso também anotar outro aspecto importante:
A crise de governabilidade não é apenas brasileira. Ela se encontra em maior e menor grau em vários países, incluso nos EUA.
Há um conflito em curso, um choque entre valores nacionais e interesses globalistas. A perda de referências por força do populismo – outrossim, entrega o ambiente político a ideologias liberticidas e reações radicais.
A gangorra eleitoral pendeu em vários países na direção dos governos conservadores, justamente para por fim à essa instabilidade de valores. No entanto, o fantasma populista afetou os rumos do conservadorismo, fazendo-o flertar perigosamente com o nazi fascismo.
Os democratas, que lutam pela democracia e pela soberania de seus países, que defendem o pluralismo e a livre iniciativa, jamais deverão ser confundidos com a direita protofascista – que oportunisticamente tratou de se infiltrar no meio conservador para tirar proveito da Lei e Ordem. Esse populismo travestido age em prol de uma nova ordem baseada no ódio e na discriminação.
A guerra contra o globalismo, portanto, não se confunde com a recusa à globalização. O combate ao marxismo cultural não corresponde à defesa da ignorância.
Nos EUA, está claro que a juventude já percebeu a confusão e está reagindo. As forças armadas da maior potência mundial, também compreenderam o problema – tanto que o estamento institucional busca tomar distância do embuste populista que consumiu o poder de Donald Trump. A maior potência do mundo respira novos ares, em prol dos velhos valores do pluralismo, da tolerância, da democracia. Tudo indica que o processo de depuração ali continuará.
O advogado e vice-presidente da Associação Comercial de Pernambuco, Antonio Fabrício Guedes Alcoforado, acrescenta, para efeito de comparação, nas redes sociais que:
“Quando você compara a realidade brasileira com o que existe nos EUA. Lá a Suprema Corte fala nos autos, de forma discreta sobre temas constitucionais relevantes de uma Constituição, bastante objetiva de poucos Artigos, parágrafos e Emendas. Outra questão que é fundamental, é o fato de que nos EUA existem 2 partidos, um governa o outro faz oposição e a maioria vence. No Brasil, com 40 partidos fica, quase impossível, a governabilidade, exceto se houver o famoso toma lá da cá.”
E por aqui, no Brasil: Vamos acordar quando?
Uma das lideranças mais importantes no apoio ao governo federal, o Deputado Federal General Eliézer Girão Monteiro, subiu o tom no seu twitter, afirmando que:
“As FFAA são destinadas à defesa da Pátria, à garantia dos Poderes Constituídos e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. É o que está escrito. Se um dos Poderes afrontar a democracia, a lei e a ordem, cabe às FFAA serem empregadas contra quem afrontar, não importa quem seja.”
O General Paulo Chagas, referência política do oficialato na reserva e um símbolo da cavalaria do exército, menciona em sua página no Facebook, a respeito dessa crise que:
“Daí a importância de as FFAA estarem afastadas mas não ausentes da vida política do Estado, porquanto, caso cheguemos à situação de desmando onde a anarquia generalizada indefine o poder de mando, caberá a elas o restabelecimento da lei e da ordem.
Assim, nada é mais justo e lógico que as FFAA se mantenham em condições de exercer o papel que, na melhor constituição da nossa história, era atribuido ao Imperador – o Poder Moderador -, cuja função era, também, de prevenir as situações como a de anomia, cuja gravidade e possibilidade de ocorrência é, aparentemente, ignorada pelos Supremos Juízes, tanto quanto foi pela inteligência dos prolixos constituintes, promotores do ambiente pós moral que se seguiu ao Regime Militar.
Portanto, é certo dizer que a CF/88 não contempla explicitamente este papel às FFAA, mas é licito, lógico, inteligente e patriótico entender que lhes cabe a função de prevenir, alertar e evitar o estado de anarquia que a vaidade e a irresponsabilidade das autoridades que ultrapassam os limites dos seus poderes estão a promover.”
Em recente artigo sobre esse mesmo episódio – da decisão do Licurgo e da nota do Triunvirato, ou da Hidra de Lerna contra Janus, disse o velho político constituinte e advogado Vivaldo Barbosa, nas redes sociais :
“É preciso sobriedade das altas autoridades para que a República não se abale e as funções de todos fluam de maneira natural. Faltam maturidade, superioridade, grandeza.
Tristes tempos, tristes atores.”
Faço minhas as palavras de Vivaldo, respeitando as ponderações dos generais Girão e Chagas.
Concito a todos os que lerem este artigo, a refletir com racionalidade sobre o momento presente e a necessidade de buscarmos uma saída com a máxima elevação, pensando não apenas em nós, mas no futuro de nossos filhos e da democracia que nos comanda.
Vale a pena ler a ponderação do General de Exército Maynard Santa Rosa, autor de interessante artigo onde também faz referência arquetípica na política romana.
Diz Santa Rosa:
“Houve uma rejeição velada à presença de militares em atividade governamental, entre 1990 e 2019, como produto politicamente correto do paradigma da submissão à “sociedade civil organizada”.
Atualmente, a mão-de-obra militar tem sido empregada para compensar a inexistência de quadros partidários do governo. Convém lembrar que, na reserva, o militar é autônomo como pessoa física. Porém, quando na ativa, a farda representa a Instituição perante o público. O envolvimento de militar da ativa em atividade política compromete a imagem institucional.
A conjuntura mostra um perigoso conflito nas relações entre os Poderes da República coincidente com a crise global da saúde pública. Na hipótese de se chegar ao comprometimento da lei e da ordem, resta o remédio do Art. 142 da Constituição Federal, e o acatamento das Forças Armadas pela opinião pública será essencial na pacificação. Afinal, é no inconsciente coletivo do povo que reside a fé no braço forte e a confiança na mão amiga. ” (**)
Vamos lutar contra os verdadeiros inimigos da pátria, não contra as instituições permanentes que eventualmente estejam submetidas a eles.
Se continuarmos a permitir que a Hidra de Lerna e a cabeça de Janus tracem um novo e teratológico embate mitológico sobre nossas cabeças, continuaremos regidos por uma jurisprudência do medo, que nos retirará qualquer perspectiva digna e nos relegará ao limbo.
Tratemos de articular um novo Pacto Pela Governabilidade.
Nota:
* PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro – “Acabou! É o fim da ‘Nova República’, de 1985”, in Blog The Eagle View, 11maio2016, in https://www.theeagleview.com.br/2016/05/acabou-e-o-fim-da-nova-republica-de-1985.html
** Santa Rosa, Maynard Marques de – “O Arquétipo Cincinato”, in Blog The Eagle View, 3junho2020, in https://www.theeagleview.com.br/2020/06/o-arquetipo-cincinato.html
leia também:
PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro – “A Síndrome de Janus no Governo Bolsonaro”, in Blog The Eagle View, 23abril2020, in https://www.theeagleview.com.br/2020/04/a-sindrome-de-janus-no-governo-bolsonaro.html
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. É Editor-Chefe dos Portais Ambiente Legal, Dazibao e responsável pelo blog The Eagle View. Twitter: @Pinheiro_Pedro. LinkedIn: http://www.linkedin.com/in/pinheiropedro
Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal, 02/05/2021; 2020
Edição: Ana A. Alencar
Os artigos publicados não expressam necessariamente a opinião da revista, mas servem para informação e reflexão.