Por Paulo de Bessa Antunes e Talden Farias*
A Lei 14.250, de 25 de novembro deste ano, dispõe sobre a obrigatoriedade da eliminação controlada das bifenilas policloradas (PCBs) e seus resíduos e a descontaminação e eliminação de transformadores, capacitores e demais equipamentos considerados como contaminados por PCBs, e complementa as disposições contidas na Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos Persistentes (POPs), promulgada pelo Decreto 5.472, de 20 de junho de 2005. Ela merece ser celebrada, pois enfrenta uma séria questão que é o descarte de produtos tóxicos. Entretanto, é preciso dizer que a matéria levou incríveis 40 anos para ser regulada por lei, tornando serôdia a norma.
A característica desse tipo de poluente é o fato de ser resistente à degradação, de poder ser transportados a longas distâncias pelas forças da natureza (como água, espécies migratórias e vento) e de ser bioacumulável em organismos vivos, sendo um grande exemplo de dano ambiental que se perpetua no tempo e no espaço. Trata-se de uma substância carcinogênica, que afeta vários sistemas do corpo humano, e cujos efeitos se irradiam sobre praticamente toda a cadeia ecológica, fato que por si só denota a gravidade do tema. No Brasil, a mais visada dessas substâncias parecia ser o ascarel, um óleo resultante da mistura de PCB com hidrocarbonetos oriundos do petróleo, o que era usado como fluido isolante em materiais elétricos.
A Portaria Interministerial 19, de 29/1/1981, “considerando ser urgente e indispensável evitar a contaminação do ambiente por bifenil policlorados — PCBs (comercialmente conhecidos como Askarel, Aroclor, Clophen, Phenoclor,Kanechlor e outros), devido aos efeitos nocivos que esses compostos causam ao homem e animais” , proibiu em todo território nacional “a implantação de processos que tenham como finalidade principal a produção de bifenil policlorados — PCBs, bem como o uso e a comercialização de bifenil policlorados — PCBs, em todo o estado, puro ou em mistura, em qualquer concentração ou estado físico”. Na norma foram estabelecidos as seguintes hipóteses e prazos: 1) como fluido dielétrico nos transformadores novos, encomendados depois de seis meses da publicação da portaria; 2) como fluido dielétrico nos capacitadores novos, encomendados depois de 20 meses da publicação da portaria; 3) como aditivo para tintas, plásticos, lubrificantes e óleo de corte, fabricados a partir de 12 meses da publicação da portaria; 4) em outras aplicações, a partir de 24 meses da publicação da portaria.
A Portaria 19/1981 estabeleceu, ainda, uma regra de transição que determinava que equipamentos de sistema elétrico, em operação, que usam bifenil policlorados (PCBs), como fluido dielétrico, poderiam continuar com este dielétrico, até que fosse necessário o seu esvaziamento, após o que somente poderiam ser preenchidos com outro que não contenha PCBs. Assim, dada a época da edição da norma, há tempos não deveria haver mais equipamentos em uso que tivessem tais produtos.
Os termos da Portaria nº 19/1981 não eram claros sobre o que fazer com o PCB, deixando a decisão com os órgãos estaduais de meio ambiente. É evidente que a quantidade existente de tais equipamentos em, praticamente, toda instalação industrial preexistente a 1981, tornava impossível o armazenamento de tal quantidade de material tóxico, o que multiplicava os riscos de contaminação do ambiente.
Diante da lacuna, o MPF/RJ ajuizou uma série de ações civis públicas em face dos proprietários de capacitores e transformadores que deveriam ser substituídos para que os réus fossem condenados a destruir adequadamente o produto. As ações chegaram aos tribunais superiores, sendo certo que tanto o STJ quanto o STF mantiveram as decisões que determinavam a destruição do produto tóxico. O STF, em várias oportunidades, manteve decisões das instâncias ordinárias com vistas a determinar a destruição das bifenilas policloradas, com especial destaque para as decisões do TRF da 2ª Região.
O ministro Joaquim Barbosa, ao examinar o RE 430274/RJ, em 25/2/2010, negou seguimento ao recurso, ao citar a aumenta do acórdão recorrido:
“DIREITO CONSTITUCIONAL E DIREITO ADMINISTRATIVO. ARTIGO 225, PARÁGRAFO 1º, INCISO V, CF/88. DIREITO AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO E O CONTROLE DE SUBSTÂNCIAS QUE COMPORTEM RISCO PARA A VIDA, A QUALIDADE DE VIDA E O MEIO AMBIENTE. BIFENILAS POLICLORADAS (CONHECIDAS COMO ASKAREL) EMPREGADAS EM EQUIPAMENTOS DE INDÚSTRIA. PORTARIA INTERMINISTERIAL N. 19, DE 29.01.81. 1. Ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público em face de indústria que mantém equipamentos que utilizam da substância conhecida como ‘Bifenilas Policloradas’ (PCBs), também denominada comercialmente como Askarel, de reconhecida nocividade diante de ser altamente tóxica. 2. O Governo Federal baixou a Portaria Interministerial nº 19, em 1981, proibindo o emprego da substância como fluído dielétrico em transformadores e capacitores. O inciso III, da referida Portaria, permitiu que os equipamentos já existentes à época da edição da Portaria pudessem prosseguir até a necessidade de seu esvaziamento. Decurso de período superior a vinte anos até o ajuizamento da ação e acima de trinta anos até o julgamento do recurso. 3. Auto-aplicabilidade do inciso V, do parágrafo 1º, do artigo 225, da Constituição Federal, na tutela do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado no controle de substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente. Desnecessidade de norma legal para estabelecer mecanismos na atuação estatal. 4. Elementos de prova que demonstram a necessidade de cumprimento do item III, da Portaria, para o fim de se esvaziar os equipamentos contendo PCBs, com a incineração de toda a quantidade de substância encontrada, dos capacitores e transformadores infectados pelos PCBs, e de substituir os equipamentos que ainda utilizem PCBs. 5. Apelação conhecida a que se nega provimento, com a manutenção da r. sentença”.
Em igual sentido foi a decisão proferida no RE nº 511254/RJ, relatado pelo ministro Carlos Britto, assim como a decisão proferida no RE nº 628788/RJ, relatada pelo ministro Luis Roberto Barroso em 12/04/2016.
A Lei nº 14.250/2021 nasceu tardiamente, pois, como se viu, o Direito jurisprudencial era tranquilo em determinar a destruição do produto que, diga-se, foi banido do país em 1981 pela Portaria Interministerial 19, a qual instituiu a definição de prazos para o fim de sua utilização. Ademais, merece destaque o fato de que a lei citada objetiva materializar a aplicação da Convenção de Estocolmo sobre POPs, que foi promulgada pelo Decreto nº 5.472/2005, isto é, 16 anos e meio após a promulgação da convenção.
A Convenção POPs, em relação às bifenilas policloradas, estabelece no Anexo A, parte II, que cada uma das partes deverá:
“a) Com referência à eliminação do uso de bifenilas policloradas em equipamentos (por exemplo: transformadores, capacitores ou outros receptáculos que contenham líquidos armazenados) até 2025, sujeito a revisão pela Conferência das Partes, agir de acordo com as seguintes prioridades: 1) envidar esforços para identificar, rotular e tirar de uso equipamentos que contenham mais de 10 por cento de bifenilas policloradas e volumes superiores a cinco litros; 2) envidar esforços para identificar, rotular e tirar de uso equipamentos que contenham mais de 0,05 por cento de bifenilas policloradas e volumes superiores a cinco litros; 3) empenhar-se para identificar e tirar de uso equipamentos que contenham mais de 0,005 por cento de bifenilas policloradas e volumes superiores a 0,05 litro; b) em conformidade com as prioridades do subparágrafo a), promover as seguintes medidas para a redução de exposição e riscos, com a finalidade de controlar o uso de bifenilas policloradas: 1) utilizar somente em equipamentos intactos e a prova de vazamento e apenas em áreas onde o risco de liberação para o meio ambiente possa ser minimizado e rapidamente remediado; 2) não utilizar em equipamentos localizados em áreas associadas com a produção ou processamento de alimento ou ração; 3) quando utilizado em áreas povoadas, incluindo escolas e hospitais, adoção de todas as medidas razoáveis de proteção contra falhas elétricas que possam causar incêndios e de inspeção regular do equipamento para verificar a existência de vazamentos; c) sem prejuízo do disposto no artigo 3º parágrafo 2, assegurar que equipamentos que contenham bifenilas policloradas, conforme descrito no subparágrafo a), não sejam exportados nem importados exceto para o propósito do manejo ambientalmente saudável de resíduos; d) salvo para operações de manutenção e reparo, não permitir a recuperação, com a finalidade de reutilização em outro equipamento, de líquidos que contenham teor maior que 0,005 por cento de bifenilas policloradas; e) envidar esforços determinados visando realizar o manejo ambientalmente saudável de líquidos que contenham bifenilas policloradas e equipamentos contaminados com bifenilas policloradas, com teor de bifenilas policloradas superior a 0,005 por cento, de acordo com o artigo 6º , parágrafo 1, assim que possível, mas não após 2028, sujeito a revisão pela Conferência das Partes; f) no lugar da nota 2) na Parte I deste Anexo, esforçar-se para identificar outros artigos que contenham mais de 0,005 por cento de bifenilas policloradas (ex. revestimento de cabos, massas para calafetar com conservantes e objetos pintados) e manejá-los de acordo com o artigo 6º parágrafo 1; g) preparar, a cada cinco anos, um relatório de progresso sobre a eliminação de bifenilas policloradas e submetê-lo à Conferência das Partes em conformidade com o artigo 15; h) os relatórios descritos no subparágrafo g), quando conveniente, devem ser apreciados pela Conferência das Partes, nas revisões relacionadas às bifenilas policloradas”.
A Lei 14.250/2021, em seu artigo 3º, IV, define como destinação final ambientalmente adequada “a eliminação de PCBs e de seus resíduos por meio de processos devidamente licenciados pelos órgãos ambientais competentes que garantam o teor de PCBs inferior ao definido no inciso II do artigo 3º [1]” , o que vai no sentido das decisões judiciais mencionadas. Logo, a lei não trouxe novidade alguma, pois o Judiciário, ao interpretar o artigo 225 da Constituição Federal, entendeu que a solução somente poderia ser a destruição do produto em função de sua nocividade.
É evidente que a Convenção POPs é muito importante e deve ser cumprida e prestigiada, mas no caso específico das bifenilas policloradas os tribunais superiores brasileiros já decidiram seguidas vezes que elas deviam ser destruídas, sem alcançar a efetividade pretendida. É pena que os órgãos ambientais, as organizações não governamentais e o Ministério Público não tenham se apropriado adequadamente da jurisprudência vigente com vistas a destruir produto tão nocivo que, repita-se, foi proibido no Brasil há 40 longos anos. Infelizmente, as importantes decisões judiciais sobre o PCB não obtiveram a repercussão que decisões em temas menos relevantes obtiveram. O Poder Judiciário, como se sabe, desempenha um importante papel na construção da concretude do Direito Ambiental e das normas constitucionais relativas à matéria, sendo que, no caso em questão, o Judiciário deu interpretação adequada ao tema, como foi posteriormente confirmado pela Convenção POPs e pela própria Lei 14.250/2021.
[1] “Artigo 3º, II — resíduos de PCBs ou material contaminado por PCBs: todo material ou substância que, independentemente de seu estado físico, contenha teor de PCBs igual ou superior a 0,005% em peso ou 50 mg/kg e, no caso de materiais impermeáveis, superior a 100 mg de PCBs totais por dm² de superfície, quando o ensaio for realizado conforme norma técnica nacional ou internacional; (…)”.
*Paulo de Bessa Antunes é advogado, professor associado da UNIRIO, presidente da Comissão de Direito Ambiental do IAB, membro da Comissão Mundial de Direito Ambiental da IUCN e presidente da UBAA.
Talden Farias é advogado, professor assistente da UFPB e da UFPE, membro da Comissão de Direito Ambiental do IAB e membro da Diretoria da UBAA.
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 19/12/2021
Edição: Ana Alves Alencar
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