Um conto sem dó
Por Marco Aurélio Arrais
Uns quinze anos atrás, fui visitar uns parentes por parte de minha mãe, na área rural da cidade de Orizona, em Goiás. Para o almoço, foi preparada uma galinha ao molho de açafrão com quiabo, colhido nos pés que cresciam ao lado da cerca do chiqueiro, onde alguns leitões eram engordados. Sobremesa era doce de ovos, que sempre foi o meu preferido desde menino.
Por aqueles lados a comida é farta. Um ou outro chegante, mesmo sem avisar, sempre tem lugar à mesa. Se não couber, se agacha num canto da sala ou da cozinha, com um pratão cheio parecendo uma montanha, equilibrado na ponta dos dedos.
Nesse dia, pouco antes de ser servido o almoço, ouvimos o ruído do tropel de um cavalo. Era uma visita, que chegava com a certeza de ser bem recebida, como é corrente no interior de Goiás.
O cumprimento foi o “Bão?” típico da gente goiana, com a pronúncia da letra “a” um pouco cantada
Depois das apresentações o visitante, de nome Leovegildo, senhor de seus mais de noventa anos, disse ter conhecido meu avô Antenor. Teceu elogios à família, com quem mantinha laços de amizade desde criança. Sempre que podia, e quando o reumatismo permitia, saía em visita aos velhos conhecidos. A idade avançada não o impedia de montar seu animal e percorrer alguns quilômetros nessas suas andanças.
Trajava uma calça de tecido de algodão, feito no velho tear doméstico, usado por sua família desde os tempos de sua avó. Camisa social abotoada nos punhos e no pescoço. Botina nos pés, sem meias, e um chapéu de aba grande no alto da cabeça.
Depois do café servido após o almoço, pediu licença e se dispôs a contar um acontecido dos tempos de sua meninice, tendo como protagonista meu avô Antenor Pinheiro.
Meu avô nasceu em Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, e foi para Goiás como feitor da empresa que construiu a estrada de ferro que, saindo de Araguari, em Minas, rasgou o sertão goiano.
Chegando em Campo Formoso, antigo nome de Orizona, foi fisgado pela beleza de minha avó, Julieta, uma menina de uns dezesseis anos, órfã de pai, mas criada com todos os cuidados devidos. A menina, apesar da pouca idade era responsável e prendada. Ajudava em todos os serviços da casa. Cozinhava, lavava a roupa e cuidava dos irmãos menores com responsabilidade e carinho.
O moço Antenor era um negro simpático, trabalhador e honesto. Era proprietário de uma chácara, coisa rara para um homem solteiro. Possuía animal de montaria, algumas cabeças de gado e num mangueiro, alguns porcos.
Voltando ao caso do seu Leovegildo, passo a narrar o ocorrido, tentando não esquecer ou alterar em nada do que me foi contado.
Minha avó tinha um irmão de nome Sérgio, que era escrivão na chefatura de polícia da cidade. O delegado, que respondia por mais duas outras cidades da vizinhança, estava quase sempre ausente. O meu tio-avô Sérgio, como segunda autoridade policial, substituía o titular nessas ocasiões.
Em cidades pequenas como aquela, a população rala e simples comportava-se como se fosse uma família. Todo mundo sabia de tudo sobre todos. Mas isso não quer dizer que não se respeitavam, era apenas uma maneira de cuidarem uns dos outros, sem atrevimento nem intromissão.
Numa dessas ocasiões, do trem de ferro que chegara de Araguari, numa tarde de sábado, desceu um rapaz de mais ou menos uns vinte anos. Trouxe com ele um cavalo bem tratado, equipado com arreio coberto de desenhos feitos com ferro em brasa. Eram flores, pássaros e relâmpagos. Argolas e correntes de aço cromado, que ornamentavam o equipamento de montaria, brilhavam e de longe chamavam a atenção.
Depois de se hospedar na pensão da cidade, arreou o animal. Bem vestido, com roupa, botas e chapéu de qualidade, que demonstravam ser filho de gente rica, era em tudo desigual das pessoas da cidade.
Deu umas voltas nas poucas ruas, exibindo o animal e se exibindo, fazendo pouco dos matutos que observavam aquela arrumação, sem entender qual era a intenção do estranho. Como logo anoiteceu, e as ruas sem iluminação ficaram vazias, dirigiu-se à pensão para passar a noite.
No domingo a missa era às oito horas. Às sete e meia o sacristão, tocando o sino, chamou os fiéis. As famílias dirigiram-se à igreja. As mulheres munidas dos terços e véus, e os homens dentro dos seus melhores trajes.
Inesperadamente, num tropel escandaloso, um cavalo surge na esquina praça, quase atropelando as pessoas. Montado nele o mineiro visitante, num comportamento insultuoso, provocador e irresponsável. O povo foi espalhado que nem bando de galinhas atacadas por cachorro. Ficaram jogados na rua empoeirada terços, véus, velas, breviários e até uma dentadura, que depois foi devolvida à dona.
Numa demonstração de desrespeito o cabra safado, além de empinar o cavalo em cima das pessoas, parou diante das moças donzelas, encolhidas de medo. Puxando as rédeas, tacou as esporas no sovaco do animal, e virando o cu do bicho no rumo das meninas, fez com que peidasse umas três vezes.
Da chefatura, vizinha da igreja, o cabo comandante da tropa composta por quatro soldados da valorosa Força Pública goiana, viu o reboliço e deu ordem de ataque. Na mira de dois fuzis e um revólver foi obrigado a descer do animal. Assim que pisou no chão, tomou uma coronhada nos peitos, que o fez rolar na poeira, emporcalhando a roupa vistosa.
Mandaram chamar o escrivão para tomar as providências. Depois de pensar um pouco, viu que se prendesse o sujeito, teria o trabalho de alimentá-lo, além de deixar um dos soldados de castigo dia e noite por conta dele. Achou melhor tomar uma medida que trouxesse para o município economia de dinheiro, e nenhuma obrigação para eles.
O atrevido foi amarrado nas grades da cadeia, e levou uma surra de relho, que levantou vergões da grossura de um dedo no couro dele. No local foi aplicado urina com sal, para desinfetar e, ao mesmo tempo, ajudar na recuperação. O dinheiro que o sujeito trazia foi devidamente recolhido à Coletoria, para pagamento da multa imposta, tanto pela cavalgação perigosa, como pela imoralidade praticada. Mais uma outra multa foi considerada, para cobrir as despesas da hospedagem do cavalo no curral municipal, para onde iam os animais apreendidos.
Depois de todas essas providências, o rapaz foi colocado, junto com seu cavalo, no primeiro trem e deportado para a cidade dele.
Tinha passado uns dois meses do acontecido, quando na pequena estação desceram do trem, que vinha de Minas, dois homens. Dirigiram-se à pensão e alugaram um quarto. A proprietária tentou entabular conversa com eles, mas demonstraram ser de poucas palavras. No dia seguinte, durante o café um deles, aproveitando o momento, perguntou a ela se o escrivão da chefatura se chamava Sérgio.
Estranhando a pergunta, respondeu que sim. Os dois trocaram um olhar que não prometia boa coisa. Acontece que o escrivão estava adoentado, e com o delegado ausente, o juiz de direito da cidade, que também era itinerante, havia convidado o meu avô Antenor para que assumisse, provisoriamente, a chefatura. Isso porque era uma pessoa querida e respeitada, além de ser enérgico e destemido.
A dona da pensão, chamando o filho dela, ordenou que fosse à chefatura informar sobre o acontecido. Meu avô, depois de confabular com o cunhado adoentado tranquilizou-o, prometendo resolver a situação.
Reuniu a tropa, deu instruções, e era noite alta quando foram até a pensão. A dona, já avisada, os aguardava. Informou que vira armas no quarto dos forasteiros, quando fora fazer a limpeza e remover os pinicos usados.
Um dos soldados foi colocado na janela do quarto, para que ninguém pudesse sair por ali. Os outros, junto com meu avô foram direto à porta, e a arrombaram. A taramela voou longe quando a porta abriu, e os dois, enquadrados nas bocas de fuzis e revólveres, não tiveram como reagir.
Pés e mãos amarrados, foram colocados deitados no fundo de uma carroça e saíram noite adentro. Depois de algum tempo, a carroça parou e foram descidos.
Junto a uma cerca, no meio do cerrado iluminado por uma lua cheia, foram interrogados a respeito das intenções quanto à pessoa do escrivão.
No começo, tentaram algumas desculpas, mas com a ponta de um punhal de uns dois palmos no pé do pescoço, resolveram confessar.
Afirmaram terem sido contratados pelo fazendeiro, pai do moço bagunceiro, para matar o escrivão que ordenara a surra no filho dele. O ofício deles lá em Minas era esse, de fazer matação de gente. Disseram também que até tinham recebido parte do dinheiro combinado pelo serviço, e que não poderiam voltar sem finalizar o trabalho.
Então o seu Antenor perguntou a eles, se atiravam com o revólver na mão esquerda ou na direita. A resposta dos dois foi que era na mão direita.
Pediu que movimentassem o dedo indicador, como se estivessem puxando o gatilho da arma.
Satisfeito, ordenou ao cabo que colocasse o dedo indicador do primeiro sobre o mourão da cerca. Era um pau de aroeira, meio grosso e bem lavrado na parte de cima. O cabo do chicote que meu avô sempre trazia preso ao pulso, era encastoado com uma cabeça de cachorro feita de ferro, do tamanho de um punho fechado. Batendo com ele no dedo do matador, foi esmagando os ossos até reduzir tudo a uma massa sangrenta e flácida. Quando terminou, ordenou que movimentasse o dedo do gatilho novamente. O cabra, gemendo de dor, soluçando de medo, levantou a mão e tentou mover aquela tira de carne esmagada, dependurada igual a um trapo.
O segundo, quando viu que sua vez tinha chegado, começou a chorar, implorando que não fizesse aquilo, que deixasse que fosse embora. Não adiantou. Seu dedo foi levado à força para cima do mourão, sendo esmagado com o cabo do chicote. Quando acabou, deu a mesma ordem, e novamente repetiu-se a cena do trapo de carne dependurado.
O seu Leovegildo disse os dois foram levados à estação, pela manhã, com as mãos enfaixadas. Ficaram imprestáveis para o exercício da profissão. O fazendeiro, pai do moço desrespeitador parece que entendeu o recado e aquietou-se. E a paz voltou a reinar na pequena cidade.
Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”.
.
Adorei seu conto, Marco.
Continue nos presenteando com eles.
Parabéns.
Parabéns Marcão , seus contos me emocionam…. Contam a história dos goianos, que vc me ensinou admirar….
Marcão!
Sua crônica “O Dedo do Gatilho” é simplesmente demais e, pra quem lhe conhece fica explicado que do DNA do seu Antenor, o neto herdou também o destemor e senso de justiça.
Se ainda não foi, é preciso ir logo para as colunas de cultura e história de nossos periódicos locais, pois faz jus.
Ótimo causo.
Quantos causos ainda há de contar…
Abraços