Por Edison Farah*
“Do fundo das imperfeições que o povo faz, vem uma força […]que pode transferir o pouso das montanhas.”
(Mário de Andrade, nota para o prefácio de Na pancada do ganzá. Os cocos, p. 419)
Mário de Andrade é o grande criador do serviço de defesa do patrimônio histórico, em São Paulo e no Brasil. Mas, parece que a ignorância absoluta sobre o assunto, está demolindo o conceito de patrimônio histórico, a obra de Mário de Andrade, e a história do DPH em nossa cidade.
O Serviço de Patrimônio Histórico detém toda a perspectiva vanguardista e revolucionária do grande patrimônio intelectual paulista, que foi e é Mário de Andrade.
Poeta, ensaísta e romancista, Mário é responsável por expor com todo o amor devido ao Brasil, e com toda evidência, nossa ancestral e tupiniquim personalidade iconoclasta, desprovida de caráter. Ler Macunaíma nos diz tanto sobre o perfil antropológico do Brasil, quanto a leitura (obrigatória) de Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre.
Mário de Andrade escrevia cartas como hoje se dirigem mensagens pelas redes sociais. Estava muito à frente de seu tempo. Em carta de 1934, dirigida a Câmara Cascudo – um de seus principais interlocutores nas questões relativas às tradições brasileiras –, Mário de Andrade comenta sua surpresa com os “perversos seres humanos que estavam me virando medalhão”, advertindo na sequência, contrariado: “Não é isso não a minha íntima realidade, […] minha realidade é muito outra, dum antiacadêmico pesquisador”. Mário era detentor da grande preciosidade da ciência: a curiosidade, aliada ao inseparável ceticismo, como forma de reconhecimento do conhecimento.
Em 1935 Mário idealizou e foi nomeado o primeiro diretor do Departamento de Cultura do Município de São Paulo.
A inovação de governança, seja no tema, seja na forma de gestão, causou enorme impacto na época. De fato, já haviam movimentos de preservação do patrimônio histórico na Europa, Norte da África, Oriente Médio, Ásia e América, decorrentes do avanço da arqueologia no início do século e da consciência nascente, face à guerra e revoluções, de se estabelecer a defesa das raízes culturais, do desenvolvimento arquitetônico e da paisagem, como integrantes do conceito de Nação.
Getúlio Vargas, atento ao movimento, decidiu seguir a governança paulistana e incumbiu Mário de Andrade de redigir o anteprojeto de criação do SPHAN (Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o atual IPHAN), inserido no DECRETO-LEI Nº 25, DE 30 DE NOVEMBRO DE 1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional.
O SPHAN, tão logo instalado, incumbiu Mário de Andrade, com a colaboração de Luiz Saia, Nuto Sant’Ana, e Germano Graeser, famoso fotógrafo, de publicar o Relatório sobre “Monumentos Arquitetônicos de Valor Histórico ou Artístico” no Estado de São Paulo. Nele, foram listadas obras arquitetônicas passíveis de tombamento pelo órgão federal.
Mário era um inovador. No entanto, sua busca incessante pelas raízes e tradições culturais brasileiras, o levaram a se aproximar das questões de preservação e valorização do patrimônio nacional. Sua ação feérica o levou a priorizar edifícios culturais nas primeiras levas de tombamento, como a Igreja Nossa Senhora do Carmo, Igreja Nossa Senhora da Boa Morte e o Convento e Santuário São Francisco; na Liberdade, a Igreja de São Gonçalo, o Convento Nossa Senhora da Luz e a Capela de São Miguel.
O segundo momento desse processo iniciado por Mário de Andrade ocorreu quarenta anos depois, com a estruturação do Departamento do Patrimônio Histórico dentro de uma Secretaria Municipal de Cultura, criada por Lei na Gestão do Prefeito Miguel Colasuonno, em 1975 retomando e atualizando o pioneiro Departamento de Cultura constituído e até então gerido por Ato do Prefeito Fabio Prado, em 1935.
Essa reorganização tem por base a necessidade de adequar a governança aos parâmetros internacionais ditados pela Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, que em 1972 definiu, em Convenção, os parâmetros e conceitos de patrimônio histórico, cultural e natural, bem como a necessidade de sua preservação. Aliás, nos anos 1960, já havia ocorrido importante ação em defesa da arqueologia, no mesmo sentido.
No momento seguinte, sob a batuta do Prefeito Olavo Setúbal, a organização se renova e dinamiza, buscando atender demandas de natureza difusa. Para tanto, em seguida, o Prefeito Mário Covas institui um organismo colegiado, visando ampliar a participação de organismos de academia e sociedade civil no processo de proteção do patrimônio cultural e ambiental, instituindo o CONPRESP.
O DPH acompanhou a renovação das demandas de conservação e preservação impostas ao Poder Público em relação aos bens culturais. A prática de proceder a inventários do patrimônio ambiental urbano encampou a cidade como uma usina viva de cultura, a ser documentada. Os inventários orientaram o desenvolvimento urbano, mantendo áreas de memória, evitando que a especulação imobiliária e os interesses econômicos prevalecessem sobre a identidade urbana em vários momentos críticos. A atividade incluiu também o próprio patrimônio arqueológico industrial, e os liames de identidade intangível.
Constituído por núcleos de Arqueologia, Documentação e Pesquisa, Valorização do Patrimônio, de Projetos de Restauro e Conservação, de Monumentos e Obras Artísticas, e pelo Núcleo de Identificação e Tombamento, o DPH acompanha todo tipo de intervenção em bens tombados e no entorno, o que inclui conjuntos urbanos, prédios e eixos históricos, praças e parques, sejam de propriedade pública ou privada. Também propõe e avalia a relevância de bens culturais, passíveis de preservação por meio de tombamento, registro, selo ou proteção arqueológica.
O DPH também interage em defesa do patrimônio cultural no Plano Diretor do Município, na Lei de Uso e Ocupação do Solo e nas Operações Urbanas.
Contudo, agora, toda essa tradição, capacidade e força pode estar sendo comprometida, com a assinatura de um decreto do Prefeito Ricardo Nunes.
Por força do decreto 62.652, publicado em 9 de agosto de 2023, o governo modificou a estrutura da Secretaria Municipal de Cultura (SMC), alterando decretos anteriores e também a distribuição de cargos comissionados.
O ponto fulcral do Decreto foi reduzir o DPH à figura de Coordenadoria, fatiando os núcleos existentes em “divisões”.
Para os que compreendem como funciona a distribuição de cargos no sistema municipal, isso equivale a reduzir a direção do DPH a um “coordenador” com nível “CDA6”, com valor remuneratório equivalente à menos da metade do que ganha, por exemplo, um Chefe de Gabinete. Já os divisionários deverão equivaler à cargos de CDA 5 para baixo. Importante observar que cada CDA equivale aproximadamente a 1.800 reais e então os cargos redistribuídos passam a ser passíveis de serem preenchidos “em comissão”, por livre provimento, e interesse político do plantonista na gestão do Executivo.
A proposta de mudança não é nova. Foi idealizada por Bruno Covas (PSDB). No entanto, a Secretaria Municipal de Cultura, à época dirigida por um gestor culto e erudito, impôs forte resistência, impedindo a mudança. Desta forma, o enfraquecimento do DPH, disfarçado em “melhoria”, não foi adiante.
Contudo, embalado por índices de aprovação de sua gestão, e envolvido até a testa no ninho do decadente tucanato paulista, que remanesce empoleirado nas araras da Prefeitura, Ricardo Nunes sentiu-se confiante o bastante para assinar o decreto e extinguir o órgão criado em 1975.
Ricardo Nunes parece querer seguir a inspiração de Jair Bolsonaro que, na Presidência da República, pensou em “paralisar” o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). No entanto, o Presidente Bolsonaro, ao nomear pessoas mais alinhadas com suas ideias, cuidou de também escolher quem teve erudição e nível cultural suficiente para não transformar o proselitismo em ato material.
Artistas e chefes de gabinete no período Bolsonaro, ainda que envoltos no clima de radicalização política, sempre respeitaram o sistema de proteção do patrimônio histórico, artístico e natural.
Já o mesmo, parece não ocorrer com Ricardo Nunes e sua secretária de cultura. Desde que tomou posse, Ricardo Nunes vem desvalorizando a cultura e o DPH onde chegou até a nomear para o cargo de diretor um indicado político que se apresentava como guru de autoajuda e não entendia nada do cargo. As manifestações culturais organizadas pela cidade, na atual gestão, pouco se diferenciam de festivais populares para plateias pagantes, com personagens, via de regra, também remunerados.
No campo do DPH, por força das circunstâncias, a direção atual é ocupada pelo arquiteto Nélson Gonçalves de Lima Júnior, preparado para o cargo, porém sem expressão junto à gestão, tanto que funcionários do setor não foram sequer ouvidos ou puderam opinar a respeito das mudanças.
A mudança do nome DPH para CPH além de sutilmente enfraquecer o órgão, o expõe à influência política de ocasião. Na SMC funcionários foram desprezados, escancarando o relacionamento difícil entre a secretária de cultura, Aline Torres, e seus comandados.
Teme-se agora que as mudanças trarão mais comissionados para ocupar cargos no novo CPH, enfraquecendo a coordenadoria e a defesa do patrimônio histórico paulistano. Aliás, o risco está expresso no artigo 9º do Decreto, que informa que “os cargos de provimento em comissão da Secretaria Municipal de Cultura constantes do Anexo III deste decreto serão destinados, na vacância, ao Quadro Específico de Cargos de Provimento em Comissão – QE”.
Um outro detalhe que não pode passar desapercebido: a publicação do decreto aconteceu na véspera de um encontro do prefeito com lideranças do mercado imobiliário, os maiores beneficiados pela revisão do Plano Diretor da Cidade e interessados em ver um DPH enfraquecido no momento em que a Prefeitura inicia o debate sobre a Lei do Zoneamento.
Porém, dado a todo o histórico do DPH…, há de se restaurar a busca de Mário de Andrade por gravar, na história, também o patrimônio imaterial. E, nesse sentido, há de se ter em mente que o Departamento do Patrimônio Histórico da Prefeitura, na sua estrutura, é, sem dúvida, por si só, um Patrimônio Cultural da Cidade de São Paulo.
*Edison Farah – Jornalista; Presidente do Instituto Bairro Vivo de Desenvolvimento Urbano e Social; Vice Presidente da Associação Viva o Centro; Vice Presidente da Associação Paulista da Imprensa.
Fonte: O autor
Publicação Ambiente Legal, 14/08/2023
Edição: Ana Alves Alencar
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