É preciso separar as coisas para divisar a verdadeira injustiça
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedr*
A imagem de crianças engaioladas, sob a guarda de funcionários arrogantes, chocou o mundo e manchou uma política de combate à imigração ilegal que poderia resultar positivamente no governo Trump.
Trump revogou a medida. Porém o estigma decorrente de um procedimento administrativo imbecil serviu para confundir as coisas e prejudicar a necessária visão que se deve ter do problema.
De fato, é preciso separar as coisas, delimitar a controvérsia, até mesmo para divisar o que constitui verdadeiramente injustiça.
O cenário atual das crises humanitárias
Crises humanitárias constituem demandas agudas de natureza difusa, intrinsecamente conflituosas. Essa conflituosidade é de tal ordem que, qualquer que seja a reação ou tutela prestada por um governo nacional ao conflito humanitário gerado no estrangeiro, esta ocorrência constituirá base para uma nova espécie de conflito.
Esse ciclo tem sido observado em praticamente todos os continentes. Diz respeito às disfunções no trato internacional às ondas de migração provocadas por crises econômicas ou instabilidades de ordem social. Impactos provocados pela fuga de milhares ou milhões de refugiados provindos de zonas conflagradas, regimes ditatoriais, perseguições étnico-religiosas ou desastres naturais.(*1)
A meca natural dessa massa de indivíduos em busca de novas oportunidades, é sempre o ocidente livre, democrático e economicamente pujante. Por óbvio que essa orientação gera crise nos países destinatários ou territorialmente impactados pelo fluxo.
Essa crise ganha maior evidência quanto mais vigorosa a democracia praticada no Estado prestante e, maior for a incompatibilidade do fluxo migratório com a legislação em vigor no território hospedeiro.
Esse fenômeno é muito complexo e absolutamente assimétrico. Difere e muito dos fluxos migratórios ocorridos entre meados do século XIX e século XX, quando os continentes americanos e Oceania tornaram-se mecas dos imigrantes oriundos dos países europeus e asiáticos mergulhados em crises e conflagrações.
A nascente economia nos novos continentes demandava a nova força de trabalho, os territórios vazios clamavam por ocupação e toda perspectiva era promissora. A velha Europa não era destino e, sim, origem de grande parte das emigrações.
Não é o que ocorre, infelizmente, hoje.
Hoje, todas as economias, novas e velhas, incluso as mais desenvolvidas, administram conflitos internos relacionados à exclusão e ao desemprego. Por outro lado, a semente da violência que gerou o fluxo, também migra, causando risco à Ordem Pública nos territórios hospedeiros.
Vale dizer: no teatro das migrações humanas, a esperança permanece, mas o script, os atores e o cenário mudaram totalmente.
Delimitando a controvérsia
É nesse quadro que se deve observar a crise humanitária enfrentada hoje nos Estados Unidos com relação ao enfrentamento do fluxo de imigrantes ilegais.
Essa crise possui dois lados distintos.
Um lado corresponde a atitude do governo do Presidente Donald Trump, de superar a “Síndrome de Chamberlain”, que contaminou por muito tempo a política externa norte-americana – em especial no governo Obama, e ainda contamina a diplomacia europeia. Essa síndrome prejudicou ações mais efetivas das potências democráticas, voltadas diretamente à raiz do problema: a barbárie étnico-religiosa instalada nos territórios de origem dos refugiados. Prejudicou também o estabelecimento de uma linha de governança internacional que preservasse os valores ocidentais face à crise étnico-religiosa-cultural trazida pelo fluxo. (*2)
O outro lado, foi a adoção de uma política nacional de firme controle territorial interno e efetivo combate à imigração ilegal ocorrente na fronteira com o México.
O descontrole migratório ocorrente na fronteira com o México é uma herança maldita de décadas de omissão. Uma ferida que foi tornando-se crônica, justamente por não ter as gestões anteriores dos EUA, e também do México, adotado medidas de controle territorial efetivas, embora o fluxo de imigrantes ilegais introduzidos pela fronteira seca e ultraporosa entre os dois países, estivesse crescendo exponencialmente a olhos vistos.
O fluxo e migratório ilegal na fronteira mexicana, embora abrigue reflexos dos flagelos humanitários ocorridos em outros continentes, com estes definitivamente não se confunde. Em sua maioria esmagadora é composto de latino-americanos que não mais enxergam perspectivas econômicas em seus países de origem, especialmente os Mexicanos – premidos pela crise econômica e pelo descontrole territorial ocasionado pelo crime organizado.
A invasão de “ilegais” protagonizada na fronteira mexicana, em especial na região árida do Estado do Texas, é fenômeno que não se compara à impressionante onda de refugiados provindos dos conflitos ocorrentes no oriente médio e próximo, ou norte da África em direção à Europa. Também não se compara ao fenômeno dos refugiados venezuelanos que fogem do terror liberticida, da fome, do lixo bolivariano, com destino à Colômbia e Brasil.
O que ocorre no sul dos EUA é um fenômeno criminológico. O tráfico de seres humanos é controlado pelos cartéis da droga, conta com o beneplácito de vários governos latino-americanos que não cuidam da segurança e dos sonhos de seus cidadãos. Foi estimulado por uma imperdoável dose de omissão do próprio governo americano.
As hordas de ilegais constituem atividade econômica lucrativa para os chamados “coiotes”. O tráfico humano é organizado por agências de viagem coligadas à rede de corrupção. A supervisão do sistema é feita pelos cartéis da droga. Todos se aproveitam do desespero e das limitações de seres humanos desiludidos com o país em que vivem, atraídos pelo sonho de uma vida melhor na terra da liberdade e das oportunidades
Uma coisa é uma coisa…
O fenômeno foi por décadas solenemente ignorado pela inteligência governamental norte-americana, e seus aspectos criminológicos foram dissimulados pela vitimização social e pelo proselitismo denuncista de enxergar a discriminação em qualquer ação repressiva, nos últimos vinte anos.
Assim, não se deve ver a questão com as lentes riscadas do discurso fácil politicamente correto. Uma coisa é uma coisa… e outra coisa pode ser algo completamente diferente.
Não há como confundir refugiados de guerra, flagelados em fuga de regimes ditatoriais, ou massa de desesperados expulsos de suas regiões por conta de desastres étnico-climáticos, com o fenômeno da invasão contínua e maciça de estrangeiros que penetram ilegalmente o território soberano dos EUA pela fronteira com o México, por livre escolha, em busca de oportunidades de trabalho e sustento.
É preciso iluminar o problema tirando-o da sombra do proselitismo populista. Não se trata de uma questão humanitária, como é a dos refugiados na Europa, embora guardem semelhança no que tange ao choque cultural refletido no tecido social dos países receptores.
Refugiados são premidos por circunstâncias de força maior, que condicionam sua decisão de migrar. São retidos, têm seus pedidos de refúgio analisados e então podem vir a ser acolhidos.
Já o imigrante é aquele cidadão estrangeiro que entra voluntariamente no país com o objetivo de residir ou trabalhar. Este, para permanecer legalmente dentro do território escolhido, deve seguir as “leis de imigração” estabelecidas no país de destino.
Os que imigram voluntariamente de forma clandestina, portanto fora do regime legal ao qual deveriam se submeter, são por definição infratores. Podem ser presos, processados, sentenciados e deportados. Podem, também, obter o visto. É assim nos EUA e em várias partes do mundo, incluso no Brasil.
Não pode, portanto, haver espaço para reações proselitistas carregadas de hipocrisia. Principalmente aquelas que visam comparar uma reação circunstancial de um governo democraticamente eleito – ainda que odiosa e desumana, com desumanidades perenes praticadas por governos totalitários, que praticam idiossincrasias liberticidas como forma de política de Estado.
O problema das crianças engaioladas
Posto isso, é preciso tratar de forma contextual o conflito oriundo da segregação de pais e filhos, que foi praticada pela autoridade norte americana e, agora, devidamente revogada pelo governo Trump, após fortes protestos.
A política de segregação por meio de gaiolas, nesse sentido, foi desumana sob qualquer ângulo.
O problema decorreu de um entendimento torto quanto ao cumprimento da norma legal. Uma vez efetuada a prisão de imigrantes ilegais, os maiores de idade respondem pela infração. Os menores que com eles estavam, porém, não respondem e, também não poderiam seguir com os maiores para uma prisão, pois isso seria estender a restrição administrativa e criminal a um inimputável inocente.
Desde os anos 90, na gestão de Clinton, crianças são separadas dos pais e remetidas a abrigos especiais, com a devida assistência, até que parentes se habilitem a recolhê-las ou os pais se liberem da detenção. Quando retidos administrativamente, para extradição sumária, sequer eram separadas.
O problema é que a escala foi crescendo de forma exponencial, com um recuo apenas momentâneo no início do governo Obama. Talvez por conta dessa dificuldade de atender à demanda, se tenha tido a ideia infeliz de montar as gaiolas, expondo crianças a todo tipo de trauma e humilhação.
A estupidez, por óbvio, não poderia autorizar que se ignorasse os direitos humanos e a própria lei americana. Nada há que autorize engaiolar crianças como em um campo de concentração de Guantánamo – que por si só já corresponde a outra ilegalidade…
Esse problema da segregação ostensiva, por outro lado, parece ter sido pontual. Ocorreu no Texas, com relação aos ilegais capturados na fronteira mexicana. Gerou, no entanto, uma enorme polêmica e revelou uma indesculpável perversão.
Em vez de acolher o menor, e até mesmo encaminhá-lo a um familiar responsável, os idiotas do governo americano resolveram engaiolá-los, fazendo a festa dos que se opõem à política trumpista e causando a revolta em todo aquele que possui características humanas…
O engaiolamento, por si só, já é um crime contra a humanidade, não por conta da separação, mas por claramente atentar contra a dignidade da pessoa humana.
Trump, que a princípio ensaiara resistir aos protestos, finalmente cedeu e revogou a medida, permitindo que as crianças permaneçam retidas juntamente com seus pais, por um prazo determinado em tese não superior a vinte dias.
Trump – medida revogada após pressão interna e externa
Superado o episódio, resta o problema
Mas, ainda assim, há questões a serem examinadas.
Os Estados Unidos saíram da Comissão de Direitos Humanos da ONU e não subscreveram a Convenção Internacional dos Direitos da Criança.
Nos EUA, as crianças ficam submetidas ao exercício do pátrio poder. Os pais é que devem zelar pelos filhos. O Estado comparece apenas excepcionalmente.
Nesta perspectiva, torna-se de suma importância entender o senso comum ianque, instrumentalizado por Trump. O senso comum não admite que um cidadão leve consigo menores de idade quando a meta é entrar ilegalmente em um país. O senso comum vê o ato como exposição a risco indesculpável, especialmente quando essa aventura envolve o território norte-americano.
A irresponsabilidade, portanto, não estaria apenas na condenável segregação das crianças e, sim, deve ser também atribuída aos pais relapsos e ao fenômeno criminológico que contamina toda a questão.
A segregação não inocentou o governo americano. O tratamento irresponsável oferecido por este às crianças engaioladas gerou atritos internacionais inimagináveis e quase jogou a imagem dos EUA na latrina da história.
Porém, os EUA são uma democracia. As políticas públicas mudam e podem ser avaliadas e reavaliadas.
Trump revogou a norma, mas terá à frente o desafio de conferir celeridade à política de combate ao fluxo imigratório ilegal, sem incorrer na saída fácil da segregação.
Notas:
*1 – PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro – “Clima + Conflito Étnico = Guerra” , in Blog The Eagle View, 2016 – in https://www.theeagleview.com.br/2016/08/clima-conflito-etnico-guerra.html – visto em 21/junho/2018;
*2 – PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro – “A Nau dos Insensatos e a Síndrome de Chamberlain”, in Blog The Eagle View, 2015 – in https://www.theeagleview.com.br/2015/04/a-nau-dos-insensatos-e-sindrome-de.html – visto em 21/junho/2018.
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados, integra o Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, membro da Comissão de Infraestrutura e Sustentabilidade e da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção São Paulo (OAB/SP). É Vice-Presidente da Associação Paulista de Iimprensa – API, editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e editor do blog The Eagle View.
Fonte: The Eagle View