Por Edésio Fernandes*
Há cerca de dez anos, Maceió tem sido o palco de uma das situações mais dramáticas da história da urbanização no Brasil: o processo de afundamento de grande parte da cidade, correspondente a cerca de cinco bairros residenciais cujos moradores — mais de 17 mil — já tiveram de abandonar suas casas. Não há dúvidas de que se trata de enorme desastre diretamente causado pelo processo histórico de extração de sal-gema pela Braskem na cidade para produção de PVC e soda cáustica. Contudo, ainda que muitos ainda insistam em naturalizá-lo, de diversas formas trata-se não apenas de um desastre industrial, mas sobretudo de crime ambiental decorrente de uma série de violações, por ação e/ou por omissão, da ordem ambiental em vigor. A escala do desastre é chocante, assim como são chocantes seus impactos e danos: de acordo com várias fontes, incluindo aquelas que já foram removidas cerca de 50.000 pessoas foram diretamente ou indiretamente afetadas — o que corresponde a toda uma cidade de porte médio no país —, mas mesmo passado todo esse tempo seus direitos ainda não foram devidamente reconhecidos pela empresa e pelo Poder Público.
Também é igualmente chocante o fato de que processo de tamanha destruição socioambiental ainda não tenha tido o reconhecimento que requer e merece da parte da opinião pública do país — e isso mesmo entre profissionais do urbanismo na esfera nacional. Há certamente um problema de falta de informação, mas lamentavelmente também há falta de interesse da parte de muitos formadores de opinião pública quanto a processos tidos como “periféricos”. O fato de que só recentemente alguns artigos de maior fôlego foram publicados em veículos de alcance nacional diz muito sobre a natureza concentrada da mídia do país, assim como sobre as condições precárias de gestão político-institucional e jurídica de desastres industriais e socioambientais no país, especialmente fora das regiões Sudeste e Sul do país [1]. A produção acadêmica sobre questão tão importante continua incipiente em Maceió e nacionalmente [2].
Fosse em outro país, dada sua escala e considerada a gravidade de suas inúmeras implicações, o desastre da Braskem estaria evidente nas manchetes nacionais, assim mobilizando a opinião pública e dentre outros efeitos promovendo de imediato uma discussão sobre como tratar jurídica e politicamente da inoperância das três esferas governamentais face a tamanhos desastres socioambientais. A usina da Braskem não explodiu como ocorreu com a usina de pesticidas em Bhopal na Índia, em 1994, mas os dois desastres devem ser comparados — inclusive quanto às diferentes reações político-institucionais e sociais, sendo que o caso indiano até hoje provoca acirradas discussões internacionais, inclusive no meio acadêmico [3].
Assim como aconteceu recentemente em Mariana e em Brumadinho, em Minas Gerais, o caso de Maceió coloca em questão os processos de mineração próxima de/em áreas urbanas ainda dominantes no Brasil, mas que ainda de modo geral se dão através de práticas antiquadas com tecnologias obsoletas e pouco controle técnico e social, situação essa que não seria admitida em diversos outros países que já re-enquadraram jurídica, política e institucionalmente as práticas da mineração predatória. Depois dos desastres — também ainda não devidamente enfrentados — em Minas Gerais e em vista de incontáveis outros desastres anunciados, já passou da hora de se repensar completa e profundamente a relação entre mineração, urbanização e meio ambiente. Em especial, cabe discutir criticamente a natureza das relações entre o Poder Público, em todas as esferas governamentais, e as empresas do setor da mineração.
Diferentemente das cidades mineiras, o processo que levou ao afundamento do solo em Maceió aconteceu por muito tempo de maneira invisível e somente se manifestou por volta de 2012, quando as primeiras rachaduras começaram a aparecer nas casas. Contudo, somente em 2018 a extensão do problema ficou escancarada, quando uma série de tremores de terra comprometeram a segurança dos bairros e inviabilizaram a permanência das comunidades. Entretanto, na falta de transparência de dados e informações, o fato é que ninguém sabe ao certo se o processo já foi completamente estancado como resultado das ações corretivas da empresa — ou se continua acontecendo de maneira ainda subterrânea e invisível, até que venha a se manifestar novamente no futuro atingindo outras áreas da cidade. Além da comparação com o mencionado caso indiano, outro paralelo possível seria com os problemas que têm sido cada vez mais gerados pela extração inadequada de água em territórios urbanos e que já tem repetidamente causado tremores de terras dentre outras implicações – por exemplo, em Sete Lagoas-MG [4].
Também veio à tona com grande vigor a péssima qualidade da governança territorial em Maceió, com instituições frágeis de controle nas esferas estadual e federal — o MPF um pouco mais ativo — e um Judiciário lento e ineficaz, a tal ponto que recentemente um grupo de moradores impetrou ação judicial na Holanda, país-sede da Braskem, na busca de um tratamento mais justo [5]. De imediato, o tratamento jurídico dos moradores e a natureza da compensação oferecida pela empresa requerem ampla reavaliação. Termos de Ajustes e Acordos já assinados necessitam passar por um amplo escrutínio.
Na esfera municipal, o tratamento dessa questão central e estruturante do território no contexto da discussão atual sobre a revisão do Plano Diretor de Maceió — oportunidade única para enfrentar algumas das causas do problema, oferecer alternativas para a população deslocada e prevenir desastres futuros — tem se dado de forma pouco transparente, quase que secreta, sem divulgação de informações e sem participação adequada das comunidades e outros atores sociais em audiências públicas e/ou através de outros processos sociopolíticos. Dada sua extensão, é fundamental que a questão seja tratada também no âmbito do proposto Plano Metropolitano de Desenvolvimento de Maceió. Em especial, não tem havido clareza nessa discussão incipiente e mal colocada quanto à questão do que será feito da enorme área desocupada na cidade como resultado da saída dos moradores, sendo que aparentemente a Braskem teria comprado a posse — mas não a propriedade do solo — de muitos dos ocupantes de terras públicas.
Há uma série de questões fundiárias, urbanísticas, ambientais e sociais a serem consideradas — incluindo o que foi feito da parcela da população que aceitou a compensação, para onde foi e como vive —, mas ainda há poucos estudos acadêmicos — locais, nacionais e internacionais — que enfrentam a gravidade da questão. Recusar a naturalização do desastre — não se trata de mero “acidente”, e nem tampouco estamos falando de “refugiados ambientais” — é fundamental para que se dê a necessária responsabilização dos agentes. Reconhecer a gravidade e a extensão do problema e identificar suas causas é crucial para que os direitos dos moradores sejam reconhecidos e para evitar desastres socioambientais dessa natureza no futuro.
Maceió e seus habitantes merecem mais e melhor, mas a luta pela reforma urbana, pela boa governança territorial e pelo Direito à Cidade na bela cidade requer o enfrentamento urgente dessa enorme cratera-chaga trágica e criminosamente criada pela má mineração e pela má gestão. Em especial, o debate sobre a questão central da responsabilidade territorial do Poder Público — além das já reconhecidas esferas de responsabilidade política, administrativa e fiscal — não pode mais ser adiado.
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Notas
[1] Ver, dentre outros, o artigo “Nas ruinas da Braskem” de Fabiola Mendonca, Carta Capital No 1212, 15 de junho de 2022, pp 16-18; ver também: https://www.brasildefato.com.br/2020/01/14/quatro-bairros-de-maceio-podem-desaparecer-por-conta-da-acao-de-mineradora
[2] Uma publicação recente de 2022 é Galindo, Abel et al (orgs) Rasgando a cortina de $ilêncios — o lado B da exploração do sal-gema de Maceió, Instituto Alagoas; ver também: http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2022/01/rastros-da-destruicao-o-crime-da-braskem-em-maceio/ e https://www.youtube.com/watch?v=zBOJbOGcBwo
[3]Ver por exemplo: https://pt.wikipedia.org/wiki/Desastre_de_Bopal
[5]Ver a propósito: https://www.reuters.com/world/americas/brazilians-take-braskem-dutch-court-over-city-cracks-2022-05-18/ e https://www.brasildefato.com.br/2022/03/22/braskem-moradores-de-bairro-que-afundou-em-maceio-cobram-ha-4-anos-reparacao-de-mineradora
*Edésio Fernandes é jurista, urbanista, mestre e doutor em Direito, professor, consultor, membro da DPU Associates do Lincoln Institute of Land Policy e da Royal Society for Arts, Manufactures and Commerce (RSA).
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 30/08/2022
Edição: Ana Alves Alencar
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