De ferramenta de saneamento, o compliance tornou-se um apêndice burocrático e arbitrário
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
O compliance foi originalmente desenvolvido como ferramenta de governança para a prevenção de riscos legais e corrupção. No entanto, cresceu reativamente, e de tal forma que transformou-se em uma indústria de formulários. O produto dessa atividade pode, hoje, se dividir em entraves burocráticos e palpites sobre a vida alheia.
Origem e desvirtuamento
Os sistemas de compliance originaram-se nos organismos financeiros, visando proteger os bancos de clientes envolvidos em atividades ilícitas – cujas movimentações financeiras ocorriam sem origem legal definida (lavagem de dinheiro). O mecanismo, então, foi exportado para a proteção das empresas, visando prevenir danos processuais decorrentes da legislação anticorrupção, em especial após o esforço norte americano de combate à lavagem de dinheiro e à corrupção na primeira década deste século.
Nos últimos anos, houve um incremento dos contratos de concessão, contratos de empreitada e de operação de projetos públicos de infraestrutura. Esses projetos, construídos financeiramente com verba pública ou proveniente de programas de parceria público-privados, ampliaram o risco de ocorrências de episódios de corrupção.
As “indústrias da corrupção”, identificadas pelos agentes públicos, aqui e lá fora, demandaram intensificação de programas e metodologias de compliance – ou seja, de adequação contínua de suas atividades aos marcos legais em vigor.
No entanto, o que devia ser uma grande solução, tornou-se um problema.
A atividade de compliance, por alguns desses mistérios teratológicos da governança corporativa, não se desenvolveu como ferramenta integrada às atividades-fim das empresas. Deixou de ser uma atividade integrada, trabalhada gerencial e juridicamente, para constituir um organismo independente, estranho ao corpo das empresas – um “freio de mão” extremamente burocrático.
Foi a partir dessa disfunção que surgiu o “compliance de formulário” – uma atividade economicamente estéril, que não agrega valor nem para a empresa e nem para a sociedade.
São ouvidorias que não ouvem ninguém, auditorias que palpitam subjetivamente, formulários redundantes e mal formulados, análises de contratações invasivas, que se imiscuem na vida privada e na atividade cívica de funcionários e fornecedores e fórmulas procedimentais regrando relações comerciais e institucionais entre agentes públicos e privados, mais complexas que o manual de procedimentos, honras e continências das forças armadas…
O mais impressionante são os custos somados dessa “indústria”. Sejam econômicos, sejam relacionais, costumam superar dezenas de vezes o potencial de riscos de corrupção que visam combater.
Aberratio Ictus
Ao ignorar as relações sociais, o lado humano, o histórico de relacionamento e o bom nome das pessoas, o “compliance de formulário” reduziu-se a um esquema invasivo de palpites sobre a vida alheia, pretextando ser isso “análise de risco”.
Essa combinação de formulários redundantes e palpites subjetivos provoca danos morais, materiais e inconstitucionalidades.
O risco constante é de aberratio ictus – erro de curso, ou de execução: visa os corruptos mas atinge os cidadãos de bem.
No compliance de formulário esse erro é evidente. Não raro, pesquisas invasivas e análises levianas ferem direitos e garantias fundamentais de parceiros negociais, funcionários, prestadores de serviços e fornecedores, “culpando a todos por suspeita”.
Um grande exemplo do “freio de mão” corporativo no compliance de formulário é a perseguição obssessiva aos chamados PEPs – indívíduos politicamente expostos.
O patrimônio de uma vida dedicada à causa pública, as atividades políticas e sociais e o exercício da cidadania, são classificados levianamente e tratados como atividades potencialmente de risco de corrupção, como se a cidadania por definição corrompesse.
Na busca por evidências de corrupção o compliance de formulário se imiscui na intimidade, crenças e filiações dos cidadãos “criminalizando” a vida pública de pessoas ilibadas. Parentescos com funcionários públicos também contam – seja o parente um ministro do Supremo Tribunal Federal ou a professora aposentada em Santana do Parnaíba…
Fosse o compliance desenvolvido no Estado do Amapá, onde 92% da população exerce atividade funcional – a empresa-vítima da análise de compliance cessaria toda e qualquer atividade…
Visando prevenir uma atividade criminosa, o compliance incorre na prática de outro delito. Pratica criminosamente a discriminação, segrega corporativamente quem exerce atividades civis em sindicatos, partidos, associações de classe, ordens profissionais, conselhos participativos, igrejas, etc. Fere de morte a Constituição da República.
A exemplo de outras “santas inquisições” que ocorrem na tragédia que está se tornando a vida cotidiana no Brasil, o compliance reprime inadvertidamente o exercício da cidadania.
No mesmo sentido, dirigentes e funcionários de empresas contaminadas por essa doença burocrática que é o compliance de formulário, têm sido “instruídos” a não desenvolver relações com gestores políticos. Agem como se a Administração Pública fosse um ente criminoso e o funcionalismo público uma doença…
Na verdade, isso tudo revela um fato trágico – diz respeito à falha na formação do cidadão e do profissional. Falta cultura, estudo, vivência, maturidade e conhecimento de Teoria do Estado – algo que também se observa nas novas hostes de controle atuantes na própria Administração Pública.
Assim, o “compliance de formulário” premia os alienados – aqueles que não possuem qualquer histórico de cidadania – geralmente os mais propensos a agir mal, porque nada têm a perder…
Alienação e inocuidade
O efeito dessa distorção é funesto. Causa danos morais e revela-se ineficaz na prevenção de imoralidades e falcatruas.
Nessa atividade absolutamente entrópica, o administrador assume o risco de selecionar justamente os sociopatas – aqueles que não se relacionam com ninguém, não agem em prol do interesse público, não se expõe a risco e não se interessam pelas pessoas, a não ser eles próprios, dissimuladamente…
O problema não atinge apenas contratados, mas, também, os que palpitam nas contratações. A entropia do compliance de formulário atrai para o setor os persecutores da vida alheia, chatos de todo tipo, pessoas com problemas – gente infeliz, especializada em ferir os outros e produzir frustrações.
Há, ainda, toda a “cadeia produtiva” do compliance de formulário, que a exemplo dos gastos públicos com sua nababesca jusburocracia, já consome grande parte do orçamento nas empresas privadas. Assim, além dos custosos departamentos internos, seguem-se as consultorias especializadas, escritórios de investigação interna e externa, checagem e cópias de arquivos, leitura de e-mails, verificação de contas de hoteis, restaurantes, telefones, empresas de auditoria, de investigação, escritórios de advocacia, etc…
Isso pode desmoralizar a verdadeira atividade de compliance integrada, comum a qualquer empresa honesta e praticada desde priscas eras, antes que a reatividade à corrupção a transformasse nesse apêndice custoso e burocrático.
Caminha assim, o compliance, para tornar-se um instrumento inócuo quanto à sua finalidade.
A armadilha do não compliance
Nem se venha com a manjada pergunta: “se você acha o compliance caro, tente o não compliance para ver…” Por óbvio, é um falso dilema.
Ninguém advoga aqui a desonestidade ou ausência de compliance. Pelo contrário, o que se pretende resgatar com esse artigo crítico é a inteligência perdida na implementação burra que se está fazendo da ferramenta.
Na forma como hoje é aplicado, o compliance de formulário só beneficia quem o pratica. Perdem a lei, a cidadania, a empresa e o mercado.
Há que se reformular, portanto, e rápido, conceitos hoje propagados aos quatro ventos, no que tange a compliance – e que nada são que mera metaburocracia…
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, da Comissão Infraestrutura e Sustentabilidade da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/SP. É membro do Conselho Consultivo da União Brasileira de Advocacia Ambiental, Vice-Presidente Jurídico da Associação Paulista de Imprensa – API, Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.