Por Inês Virgínia Soares e Talden Farias*
O marco de surgimento do Direito Ambiental no Brasil é a Lei 6.938/81, que dispôs sobre a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) e criou o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), sendo a partir daí que a defesa do meio ambiente começou a ser considerada uma finalidade em si mesma. Em vista disso, a autonomia científica da matéria começou a ser reconhecida, com a gradual afirmação doutrinária, jurisprudencial e legislativa dos seus instrumentos, princípios, objetivos e objeto. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que dedicou um capítulo inteiro ao meio ambiente, além de várias referências diretas e indiretas ao tema ao longo do seu texto, a consagração do Direito Ambiental passou a ser inquestionável.
Essa afirmação do Direito Ambiental é caracterizada pela amplitude de objeto e pela busca pela maior efetividade possível. A respeito da primeira característica apontada, é praticamente uma unanimidade na doutrina especializada e na jurisprudência a divisão do conceito jurídico de meio ambiente em meio ambiente natural, artificial, cultural e do trabalho [1]. Realmente, dizem respeito à matéria tantos e tão variados assuntos, a exemplo de agricultura, água, arqueologia e paleontologia, bens culturais materiais e imateriais, construção civil, energia, fauna, flora, indústria, mineração, paisagem, patrimônio genético, pecuária, populações tradicionais, propriedade intelectual, transporte etc., que fica difícil encontrar alguém que domine, com excelência, todos os seus itens. Já a segunda característica é relevada pela condição de direito fundamental da pessoa humana e pelo sistema de tríplice responsabilização jurídica, segundo o qual cada ato lesivo ao meio ambiente deverá ser responsabilizado de forma simultânea e independente nas esferas administrativa, cível e criminal. Há de se ressaltar também os princípios do Direito Ambiental, como prevenção, precaução e poluidor-pagador, que têm tido um papel importante no combate aos danos ambientais.
A partir da Lei 6.938/81 foi possível estruturar um sistema de proteção ambiental no qual a relação entre atividade econômica e meio ambiente passa a ser regulada por normas que estabelecem mecanismos e obrigações para empreendedores e poder público. A possibilidade de participação direta da sociedade na defesa do meio ambiente e dos bens ambientais autonomamente considerados (ecológicos, culturais, paisagísticos etc.) também assume maior consistência, principalmente em razão dos instrumentos legais previstos. O licenciamento, os estudos e o zoneamento ambiental devem contemplar a visão mais ampla possível da questão, de forma a levar em consideração os bens ambientais, entre os quais os bens culturais materiais e imateriais a serem impactados direta ou indiretamente. A justificativa para a reunião de bens ecológicos e culturais num só conceito jurídico se fortaleceu, por fazer todo o sentido. A transversalidade e a ligação dos dois temas (ambiental e cultural) atingiu o sistema jurídico de proteção aos valores e bens essenciais para viver com dignidade em um ambiente sadio. Não se pode esquecer que o conceito de poluição, previsto no inciso II do artigo 3º da lei, já envolvia o bem-estar da população, o adequado desenvolvimento das atividades sociais e as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente.
A lei ambiental do último quartel do século 20 reflete e incorpora, localmente, a consolidação de diálogos e reflexões travados especialmente depois do fim da Segunda Guerra Mundial, quando houve um movimento internacional, liderado pela Unesco, que passou a trabalhar para, em um consenso global, produzir normas destinadas à preservação, à promoção, à proteção e à manutenção da qualidade de vida em um cenário de desenvolvimento e de sustentabilidade.
Ainda na primeira metade do século 20, o Decreto-Lei 25/1937, conhecido como Lei do Tombamento, organizou a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional e disciplinou o instituto do tombamento, que tinha como foco o patrimônio material imóvel e móvel. Na verdade, a defesa do patrimônio histórico, cultural e artístico do país já se fez presente em todas as Constituições Federais desde 1934. O inciso III do artigo 10 dessa carta fixou a competência concorrente da União e dos estados para proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico, podendo impedir a evasão de obras de arte. A de 1937 se preocupou com a defesa dos monumentos históricos, artísticos e naturais, bem como das paisagens e locais notáveis, no artigo 134. A de 1946 protegia no artigo 175 as obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico, bem como os monumentos naturais, as paisagens e os locais dotados de particular beleza. A de 1967 dispôs no parágrafo único do artigo 172 sobre a defesa do patrimônio histórico, cultural e paisagístico (a Emenda Constitucional nº 1/1969, que foi outorgada pelo regime militar de 1964 com o intuito de modificar a Lei Fundamental anterior, manteve o enfoque anterior, não trazendo qualquer inovação a respeito do assunto). O próprio conceito de função social da propriedade, previsto em algumas dessas cartas, a saber, a de 1934, a de 1946, a de 1967 e a 1969, respectivamente, tinha um enfoque predominantemente econômico e sanitário, podendo ser aplicado ao patrimônio cultural, mas não ao meio ambiente, porque juridicamente esse valor não estava posto. A preocupação com o patrimônio arqueológico e paleontológico também figura nas constituições brasileiras do século 20, o que permitiu a edição das legislações específicas em décadas anteriores às promulgadas em matéria ambiental.
A Constituição de 1988 ampliou e deu novo status à proteção jurídica dos bens culturais, a qual foi cristalizada no capítulo da ordem social, em especial pelos dispositivos que versam sobre direitos culturais (artigo 215), patrimônio cultural (artigo 216) e meio ambiente (artigo 225). Mas a tendência de trazer a garantia do direito ao patrimônio cultural para a constituição não foi uma exclusividade brasileira: muito pelo contrário, trata-se de um movimento mundial, como bem lembra José Adércio Sampaio Leite:
“Um inventário das Constituições em vigor, notadamente aquelas que foram produto de manifestações constituintes mais recentes, mostra a tendência de recuperar ou revalorizar a cultura como estrato de convivência democrática. Há primeiramente a ênfase na afirmação identitária do povo ou da nação, seguida da perspectiva intergeracional e solidarista da existência, salvaguarda e uso sustentado do patrimônio cultural” [2].
Em continuidade ao trecho transcrito, o jurista lista dezenas (ou centenas) de dispositivos de Constituições mundo afora sobre direitos e bens culturais: de Montenegro à Colômbia, de Angola a Belarus, da Índia à Estônia. Com isso, o autor demonstra que a preocupação com os bens culturais e a valorização da identidade cultural são temas da humanidade, afetos à fraternidade e que representam um elo de ligação entre os povos, além de veicularem valores essenciais para a vivência da democracia pluralista:
“O direito do patrimônio cultural, em seus diversos aspectos, como se pode dela concluir (da lista de países), integra o sistema de direitos fundamentais e abre janelas de comunicação entre a esfera estatal, social e supraestatal para sua efetiva proteção. O substrato axiológico da fraternidade alivia as tensões nacionalistas originárias de referida proteção, tanto quanto submete a cultura ao centro de uma democracia pluralista e, por assim ser, defensora dos valores e cultura minoritárias. Os potenciais conflitos decorrentes dessa inserção integram o próprio núcleo de sentido e práxis da democracia, requerendo, para seu distensionamento evolutivo, um diálogo permanente de atores e fontes de conhecimento e produção cultural, sob o denominador mínimo e comum do direito. No fundo ou ao final, deve ter-se em mente a interrelação dos seres humanos, de suas projeções de cultura como testemunhos vivos da luta histórica de (re)produzir-se, desde agora, pelo menos, de modo sustentado” [3].
Nessa perspectiva, nota-se a predominância da visão de que somente é possível proteger o meio ambiente das agressões e garantir a diversidade cultural por meio da antecipação de medidas que evitem ou minimizem danos futuros, e ainda desconhecidos, por meio da comunicação interdisciplinar e da utilização de medidas baseadas nos princípios da prevenção e da precaução. E a jurisprudência nacional também tem caminhado no sentido de valorização desses princípios.
O sistema normativo de proteção do patrimônio cultural no Brasil é integrado pela Constituição Federal e pela legislação específica sobre o patrimônio cultural no plano federal: Decreto-Lei 25/37 — sobre tombamento; Decreto-Lei 4.146/42 — que dispõe sobre a proteção dos depósitos fossilíferos; Lei 3.924/61 — sobre patrimônio arqueológico; Lei 7.542/86 — sobre patrimônio subaquático; Lei 12.343/10 — Lei do Plano Nacional de Cultura/PNC; Lei 13.018/14 — Lei da Política de Cultura Viva (PNCV); Lei 11.904/09 — que instituiu o Estatuto dos Museus; Lei 11.906/09 — que criou o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), além de decretos presidenciais, portarias (inter)ministeriais e portarias do Iphan; nos planos estaduais e municipais, pelas resoluções e deliberações dos conselhos nacionais, estaduais e municipais que versem sobre patrimônio cultural; e por todo o sistema jurídico ambiental, especialmente a Lei nº 6.938/81 — Lei de Política Nacional de Meio Ambiente, pela Lei Complementar nº 140/2011, que regulamenta os incisos III, VI, VII e parágrafo único do artigo 23 da Constituição Federal, versando sobre a cooperação entre os entes federativos a respeito das competências em matéria ambiental e patrimônio cultural, especialmente no licenciamento ambiental, e a Lei nº 9.605/1998 — Lei de Crimes e de Infrações Administrativas Ambientais, as Resoluções Conoma (em especial, as Resoluções 001/86 e 237/97) e pelo sistema processual que ampara a defesa dos direitos difusos e coletivos.
Dessa forma, embora hoje faça parte do Direito Ambiental brasileiro, a proteção do patrimônio cultural começou a se dar muito antes da afirmação da própria discussão ambiental, o que implica dizer que esse ramo da ciência jurídica se apropriou e ressignificou temas que já se faziam presentes no ordenamento jurídico nacional. A aproximação do Direito Ambiental com o direito ao patrimônio cultural parece ter trazido inúmeras vantagens a este, que passou a contar com um arcabouço normativo e jurisprudencial mais arrojado. Nesse diapasão, é possível citar, na responsabilização civil, a responsabilidade objetiva, a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica (inclusive, com a aplicação da teoria menor), a responsabilidade solidária e a teoria do risco integral e, mais recentemente, a imprescritibilidade. Já na responsabilização criminal seria possível destacar as normas penais em branco, os tipos penais em aberto, os crimes de perigo e a responsabilidade criminal das pessoas jurídicas, sem necessariamente a aplicação da teoria da dupla imputação. Vale lembrar que a Lei nº 9.605/98 possui uma seção específica para os crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural, sem falar que alguns dos outros tipos penais podem ser aplicados à matéria. Já o sistema de responsabilização civil ambiental da Lei nº 6.938/1981 passou a ser imposto à proteção do patrimônio cultural, especialmente a partir da edição da Lei nº 7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública).
Todavia, na responsabilização administrativa (isto é, na aplicação de multas administrativas simples, diárias, embargos, demolições, apreensões etc.) ,essa simbiose entre proteção ambiental e dos bens culturais não se constatou, uma vez que o sistema utilizado pelos órgãos de defesa do patrimônio cultural é o previsto nas normas específicas sobre patrimônio cultural, como, por exemplo, no Decreto-Lei 25/1937, na Lei 3.924/61 — sobre patrimônio arqueológico e em portarias e instruções normativas do Iphan. Já os órgãos ambientais normalmente fazem uso do Decreto 6.514/2008, que dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente e estabelece o processo administrativo federal para apuração dessas infrações. Por força do §1º do artigo 70 da Lei 9.605/1998 (a qual fundamenta o aludido decreto) essas sanções administrativas só podem ser aplicadas pelos órgãos integrantes do Sisnama, cuja composição está prevista no artigo 6º da Lei 6.938/1981, sendo a única exceção a Capitania dos Portos. Ou seja: na prática, há uma cisão entre as matérias ambiental e de patrimônio cultural para fins de responsabilização administrativa, pela impossibilidade de utilização do Decreto 6.514/2008. Tal descompasso, num sistema jurídico que, em geral, acolhe os bens culturais como ambientais, é um aspecto que merece ser aprofundado e discutido com mais detalhe.
Por enquanto, vale destacar que, na esfera administrativa, houve uma espécie de captura da proteção dos bens culturais materiais (e até imateriais) pelos instrumentos e princípios previstos na PNMA, especialmente quando os empreendimentos são submetidos a processos de licenciamento ambiental, foi um arranjo se mostrou relativamente funcional no sistema protetivo brasileiro. A despeito disso, é preciso aperfeiçoar a intervenção das instituições culturais nos casos de empreendimentos e serviços que causem impactos ambientais mais relevantes, pois, apesar do esforço de alinhamento dos órgãos culturais ao licenciamento ambiental por meio da Instrução Normativa Iphan 001/2015 e da Portaria 375/2018 (que instituiu a Política de Patrimônio Cultural Material — PPCM), ainda há muitas lacunas nesse sistema, mormente quando a forma, o momento e os desdobramentos dessa participação.
No atual cenário brasileiro, o que existe é o acolhimento dos bens culturais pela PNMA, com a possibilidade de participação das instituições culturais em instâncias decisórias ambientais, mas sem a aplicação das sanções administrativas ambientais desempenhadas no âmbito do Sisnama. Isso significa que a acolhida do patrimônio cultural, pelo Direito Ambiental, apesar de bastante positiva nas esferas cível e criminal, requer aprimoramento do sistema de responsabilidade administrativa pelas instituições culturais, para que a interseção entre bens ecológicos e culturais resulte numa atuação administrativa harmoniosa e mais efetiva.
[1] O Supremo Tribunal Federal decidiu que “a incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a ‘defesa do meio ambiente’ (CF, artigo 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral” (ADI-MC 3540, relator ministro José Celso de Mello Filho).
[2] LEITE, José Adércio Sampaio, O constitucionalismo democrático e cultural (ou constitucionalismo da fraternidade), in Bens Culturais e Direitos Humanos, Inês Virginia Prado Soares e Sandra Cureau (org), São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2015, p. 37-57, p. 49-50.
[3] Ob.cit. p. 50.
*Inês Virgínia Soares é desembargadora no TRF-3, doutora em Direito pela PUC-SP, pós-doutora em Estudos da Violência pela USP, autora de publicações nas áreas de Patrimônio Cultural e Direitos Humanos e colíder do Grupo de Pesquisa Arqueologia da Resistência.
Talden Farias é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPE e da UFPB; doutor em Direito da Cidade pela UERJ com estágio de doutoramento sanduíche junto à Universidade de Paris 1 – Pantheón-Sorbonne (bolsa CAPES/COFECUB); autor de “Competência Administrativa Ambiental” (Lumen Juris, 2020) e “Licenciamento ambiental” (7. ed. Fórum, 2019), e organizador de “Direito ambiental brasileiro” (2. ed. RT, 2021).
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 26/01/2022
Edição: Ana Alves Alencar
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