Por Marco Aurélio Arrais
Corria a década dos anos 30, no século passado. Nas cidades perdidas por aqueles sertões de Goiás, as autoridades eram o prefeito, o juiz (muitas vezes itinerante), o delegado e o padre.
Normalmente, o delegado era escolhido entre os habitantes, desde que não fosse da oposição ao governo do Estado. Tinha essa autoridade poderes quase totais, e muitos inventavam de baixar normas e regulamentos de cunho cívico e moral (lá na cabeça deles).
A pequena Orizona estava há algum tempo sem delegado. Não que fosse necessário, já que a pequena cidade, de população reduzida, tinha como ocorrencias mais graves alguns bêbados no final de semana, um ou outro ladrão de galinha e, raramente, o furto de algum cavalo.
Um belo dia desce do trem de ferro, na pequena estação, um tenente da Força Pública do Estado. Vinha investido do cargo de delegado, e mostrou estar na intenção de moralizar o que não estava desmoralizado.
Na cabeça dele tinha de mostrar serviço, nem que fosse para ele mesmo, e no dia seguinte à chegada, baixou uma norma proibindo o porte de arma de fogo. A grande maioria da população não usava arma alguma, e apenas alguns moradores mais graduados e considerados faziam uso do bom e confiável revólver Smith & Wesson, calibre 38, com mais de um palmo de cano.
Meu avô, Antenor Pinheiro, era um deles. Uma vez havia exercido, temporariamente, a função de delegado, nomeado que fora por um juiz de direito itinerante, como contei no causo “O Dedo do Gatilho”, tempos atrás.
O tal tenente era um um rapaz novo que pretendia, com a ajuda da farda, demonstrar a macheza que pretendia possuir. E foi com surpresa e desagrado, que reagiu ao ser informado por um fuchiqueiro, que o seu Antenor havia dito, na frente de testemunhas, que não iria se desfazer do revólver.
Era um velho companheiro de muita confiança, ferramenta indispensável no seu ofício de ajustador. Ajustador era aquele que se prontificava a intermediar alguns litígios, como cobrança de dívidas, mal-entendidos, acertos em divisas de terras ou descabaçamento de moça donzela, além de outras situações.
Nunca deixara qualquer intervenção sem resultado satisfatório, fosse qual fosse, e era padrinho no casamento de inúmeros casais onde, graças aos seus conselhos salvara o bom nome das meninas quase desvirtuadas, além de batizar algumas crianças resultantes desses namoros mais esquentados.
A cidadezinha ficou curiosa, esperando o desenrolar dessa guerra não declarada, onde a macheza de um iria bater contra a autoridade do outro.
O tal tenente procurou se inteirar sobre a pessoa do meu avô, e como é de praxe, teve todo tipo de informação. Da maioria soube que era uma pessoa respeitada, trabalhadora e muito considerada. De alguns poucos, foi informado que o sujeito era perigoso, violento, temerário e um femeeiro afamado, que corria léguas atrás de um rabo de saia, e isso era a mais verdadeira das verdades.
Munido das informações necessárias, decidiu então providenciar o desarmanento do indigitado. Mas escolheu por incompetência, por orgulho ou por burrice, fazê-lo da maneira mais desapropriada.
Em plena luz do dia, na praça da igreja, e na presença de quase todos os moradores, abordou o cidadão que ousara lhe desobedecer.
Ao ser intimado a entregar a arma, meu avô alegou que ordem de autoridade tinha de ser escrita e assinada. Ordem de boca, se dava em casa para a mulher e os filhos, e pelo que constava o tenente nem para isso prestava, pois era solteiro.
Diante de tal desaforo, desacatado na sua autoridade e na vista de todo mundo, não teve outra atitude, a não ser se prontificar a apreender a arma do desacatante, e para isso sacou seu revólver.
Foi um pampeiro danado! Voou bala para todos os cantos. Os dois pulavam, negaceavam e tentavam acertar um ao outro, mas esvaziaram os tambores dos respectivos revólveres, sem atingir o objetivo.
Meu avô, assim que viu que estavam com ambas as armas vazias, calmamente disse ao tenente que iriam carregar as armas, e que assim que estivessem prontos continuariam até que o tenente morresse, pois ele não tinha essa intenção.
Estava ele municiando o revólver com a cabeça abaixada, a atenção voltada para essa tarefa quando, ao carregar a terceira bala, o tenente para de carregar sua arma e, traiçoeiramente, atira na sua cabeça.
A bala entra no pé do nariz, e de alguma maneira sai pela boca, quebrando alguns dentes. O impacto faz com que meu avô recue, e isso o salva dos dois outros tiros, que erram o alvo. Novamente com a arma descarregada, o militar se acovarda e corre, perseguido pelo outro, cego pela dor e pelo sangue que escorria e, entrando nos olhos, o impedia de enxergar direito, errando por isso os últimos tiros que desferiu no rival.
Como último recurso, joga a arma vazia nas costas do oponente, que grita haver sido atingido, já dentro da farmácia, sendo advertido pelo farmacêutico que era para deixar de ser frouxo, já que não havia levado tiro algum. Correu para os fundos do estabelecimento e, pulando o muro, evadiu-se do local.
Cuspindo pela rua os cacos dos dentes quebrados seu Antenor foi para casa, chegando quase junto com o doutor Joel, único médico da cidade e seu amigo.
Levado para o consultório, que era também sala de cirurgia, teve o ferimento tratado, costurado e passou muitos dias recolhido em casa, tratado pelo médico e por minha avó Julieta, que complementava a medicação com cataplasmas de ervas.
O tal tenente não mais voltou à cidade, pois a família de minha avó pretendia dar um fim nele. Além disso, perante a população ficou com a má fama de covarde e traiçoeiro, pois não teve a coragem de confrontar o oponente de maneira limpa e honrada.
Quando eu tinha uns nove anos, em 1957, ao comprar açúcar em um armazém próximo à chácara de minha avó, em Goiânia, fui abordado por dois homens, que tomavam pinga no balcão ensebado do estabelecimento. Eles me contaram essa história, então para mim desconhecida. Disseram que a vingança não havia sido feita, e que alguém da família deveria tomar as providências nesse sentido.
Chegando em casa, perguntei à minha avó Julieta sobre o ocorrido. Ela deu um sorriso triste e, passando a mão na minha cabeça, disse que era coisa que havia acontecido há muitos anos e devia ser esquecida, pois não tinha mais importância nenhuma. Que eu deveria estudar, pois aquele mundo antigo estava acabando, e no meu tempo não iria acontecer mais coisas como aquela.
Nesse último ponto, infelizmente, ela se enganou.
Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”. Cronista, é colunista do Portal Ambiente Legal.
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Amei o texto, Marco.Causos e coisas da terrinha.
Feliz ano novo!