Data, que foi criada para destacar o protagonismo negro na abolição da escravatura e questionar a imagem de ‘redentora’ da filha de D. Pedro II, pode se tornar feriado nacional. Discussão está na Câmara dos Deputados
Por Leonne Gabriel
“Existe uma história do negro sem o Brasil, o que não existe é uma história do Brasil sem o negro”. Essa frase é do fotógrafo e ativista Januário Garcia, que nos deixou em junho de 2021. Em poucas palavras, Januário traz à tona a decisiva autoria da população negra na construção da história do nosso país. Foi a partir de uma motivação como essa que, em 1971, um grupo de jovens negros universitários no Sul do país questionou o protagonismo da princesa Isabel na libertação dos negros e reforçou que a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, foi uma abolição incompleta. Até então a filha mais velha do imperador Pedro II era vista como “redentora”, e o papel de destaque dos negros na luta abolicionista era invisibilizado. É nesse contexto que o 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, surge como contestação ao 13 de maio.
O dia 20 de novembro está no calendário de cinco estados e mais de mil municípios brasileiros, de acordo com a Agência Senado, está no calendário escolar da educação básica desde 2003 e, em 2011, a celebração foi instituída em decreto presidencial como Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. E, agora, está bem perto de se tornar um feriado nacional. O Senado já aprovou a medida neste ano, e o tema está em análise na Câmara dos Deputados. O relator do PL 482/2017, senador Paulo Paim (PT-RS), está empenhado em fazer com que a Câmara reconheça a importância desse marco histórico.
“Em pronunciamento, fiz um apelo para que a Câmara vote com urgência esse projeto, que tornará o Dia da Consciência Negra feriado nacional. É uma homenagem a Zumbi? É! Mas também é um dia de reflexão do povo brasileiro contra todo tipo de preconceito. Lá nos Estados Unidos aconteceu, e há um feriado nacional em homenagem a Martin Luther King. É importante a pressão popular para aprovação no Congresso Nacional. A batida do tambor tem que ser ouvida”, declarou o senador.
E essa batida vem de longe. É preciso buscar nos porões da história para entender que a famosa data surgiu a partir de um esforço de pesquisa do Grupo Palmares do Rio Grande do Sul. A ideia inicial foi identificar um novo marco que compreendesse a luta e o protagonismo dos negros no processo de abolição da escravatura. O advogado Antônio Carlos Côrtes, integrante da formação original do Grupo Palmares, esteve nas intensas reuniões para elaboração da proposta de contestação ao 13 de maio e explica que a ideia nasceu do livro “Quilombo dos Palmares”, do escritor Edson Carneiro.
“Eu descobri na biblioteca pública do estado do Rio Grande do Sul, o livro “Quilombo dos Palmares”, do Edson. Nesse livro, procurei a data de nascimento de Zumbi, mas não foi possível. Daí, encontrei o dia da morte. Levei esse livro ao grupo integrado por Ilmo Silva, Vilmar Nunes, Luiz Paulo Alcir Santos, Jorge Antonio dos Santos e Oliveira Ferreira da Silveira”, contou o advogado.
O Grupo Palmares elaborou a primeira proposta em 1971 e trouxe a data em que Zumbi dos Palmares foi morto, 20 de novembro de 1695, como novo marco para falar sobre a luta e a resistência da população negra no Brasil. Zumbi foi um dos importantes líderes do Quilombo dos Palmares, localizado na Serra da Barriga, em Alagoas. Tal lugar talvez tenha sido o maior reduto de resistência à escravidão do período colonial. Segundo a historiadora Beatriz Nascimento, Palmares tinha uma organização semelhante aos modelos de Kilombos de Angola, tanto que seu segundo nome era Angola-Janga. A ideia de quilombo alimentou o sonho de liberdade de milhares de escravizados, às vezes, até mais do que o discurso abolicionista.
A proposta defendida pelos jovens gaúchos ganhou fôlego no final da década de 1970 quando foi assumida pelo Movimento Negro Unificado (MNU), de São Paulo. Durante uma das reuniões da organização negra, segundo o jornalista Carlos Alberto Medeiros, o ativista Paulo Roberto dos Santos sugere com o nome Dia da Consciência Negra inspirado na frase “this is the day of black awareness”, do reverendo Jesse Jackson, no documentário “Wattstax” (1973).
“A expressão Dia Nacional da Consciência Negra aparece numa das primeiras reuniões do Movimento Negro Unificado de São Paulo por sugestão do militante Paulo Roberto dos Santos inspirado numa frase proferida pelo reverendo Jesse Jackson, grande liderança do movimento negro afro-americano, num documentário cujo tema era um festival de música negra realizado em Los Angeles, em 1972. Ele faz um discurso muito marcante e em um determinado momento diz “this is the day of black awareness” traduzido seria “este é o dia da consciência negra”, lembrou o jornalista, que é um dos criadores do Cultne, maior acervo digital de cultura negra da América Latina.
Palmares contra a ditadura
Com o batismo do dia da morte de Zumbi como Dia da Consciência Negra, o 20 de novembro foi consagrado como marco na luta e na resistência ao racismo. Mas essa história tem seus labirintos, e os jovens universitários precisaram de muita astúcia e organização para chegarmos ao resultado que temos hoje. Nos anos 1970, o Brasil estava em plena ditadura militar e o regime reprimia sistematicamente movimentos sociais. Nesse conexto complicado, o Grupo Palmares precisou encontrar brechas para avançar com a pauta antirracista.
“A estratégia do grupo era manter ocultos dois integrantes porque caso a ditadura eliminasse os outros quatro, eles dariam seguimento a essa célula de cultura. Então, deram a cara para bater eu, Ilmo Silva, Vilmar Nunes e Oliveira Ferreira da Silveira”, destaca Côrtes.
Uma das figuras que “deram a cara para bater” foi o poeta e ativista Oliveira Silveira, homenageado em 2021 na exposição “Palmares não é só um, são milhares” em referência aos 50 anos do dia 20 de novembro, promovida pelo Museu Antropológico do Rio Grande do Sul (MARS). As lutas de Silveira e de tantos outros que caminharam juntos não deixam morrer a esperança de um mundo sem discriminação racial. A pedagoga Naiara Silveira fala com muito carinho sobre a memória do seu pai, Oliveira Silveira.
“O meu pai é minha inspiração, a mola que me impulsiona todo tempo a não desistir, porque ele foi persistente. Acreditava na importância do negro na sociedade e abriu caminhos, quebrou barreiras e rompeu os muros da discriminação e da invisibilidade. Eu ainda quero que Porto Alegre tenha um lugar para receber o seu acervo que é de grande importância. Aqui nasceu o 20 de novembro!”, reforçou Naiara, filha de Oliveira Silveira, um dos criadores do conceito do 20 de novembro.
*Leonne Gabriel é graduado em Comunicação Social jornalismo e publicidade e propaganda com ênfase em Tecnologias e Mídias Digitais na PUC-Rio. Atualmente integra o time de jornalismo do Canal Futura como apresentador. É ganhador do Prêmio ANF de Jornalismo 2019 na categoria melhor reportagem de educação e do Prêmio Ubuntu de Cultura 2019 na categoria jornalista revelação.
Fonte: Projeto Colabora
Publicação Ambiente Legal, 20/11/2023
Edição: Ana Alves Alencar
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