Por Marco Aurélio Arrais*
A multidão tomava várias quadras da avenida. Haviam escolhido a camisa amarela da vitoriosa seleção brasileira de futebol como símbolo. As armas de combate eram as muitas panelas e colheres de aço inoxidável, que orquestravam os gritos de ódio contra aquele partido corrupto que torrara o dinheiro dos impostos que pagavam, para sustentar uma multidão de vagabundos, dando-lhes cestas básicas e ajuda financeira como prêmio por mandarem seus filhos para as escolas públicas. Escolas essas que eram mantidas com o dinheiro deles, verdadeiros sustentáculos do país.
Mas não ficava só nisso. Estavam enchendo as universidades com a gentalha, utilizando um sistema de cotas tão nojento quanto aqueles que dele se beneficiavam. Exatamente aquele povinho miúdo que sobrevivia graças ao emprego que eles, donos do capital financeiro, gente bem nascida, branca e enraizada nas tradições seculares de uma sociedade exclusivista, segregacionista e racista, proporcionavam em suas cozinhas e lavanderias. Atrás dos cabos das enxadas nos seus latifúndios ou no chão de suas fábricas.
Essa patuléia ignorante, preta, feia e sem modos agora se achava no direito de frequentar aeroportos. Nas viagens aéreas ocupavam assentos junto aos deles incomodando com a sua presença, seu modo de falar, suas maneiras toscas e seu cheiro insuportável.
Seus filhos bem-nascidos eram obrigados a conviver com essa massa de negros, mulatos, pardos e mamelucos beneficiados pelo sistema imoral e protecionista das tais cotas. O mercado de trabalho estava sendo invadido por legiões de despreparados que tomariam os empregos que sempre fora deles e de seus filhos por mérito, direito e tradição.
A ocupação desse gadinho miúdo, desse povinho que reproduz como roedores deveria ser, como sempre fora, como prestadores de “pequenos serviços”. Desde sempre serviram como faxineiros, porteiros, garis e lixeiros. Nas casas da elite e classe média alta eram domésticas, babás, motoristas e jardineiros. Mecânicos nas oficinas, ambulantes nas calçadas. Moradores de rua debaixo das pontes, viadutos e marquises.
Ou serviriam aos grandes chefes dos cartéis de drogas que travestidos em grandes empresários, finos executivos, cidadãos de alto nível e sofisticação, encastelados em condomínios luxuosos e altos cargos públicos ajudavam a mandar no país.
Atuariam então como gerentes das bocas de fumo e pó, aviões e mulas, milicianos e integrantes do exército armado que patrulha e domina o território perdido ou cedido pelo Estado impotente, desmoralizado, conivente ou associado.
Teriam ainda a opção de entrar para a polícia ou forças armadas, como membros da tropa, soldados rasos. Mas nunca cursar as escolas formadoras dos futuros generais, postos estes destinado aos oriundos da classe que naturalmente produz comandantes, não comandados. Além do mais, seus rebentos não iriam se misturar à tropa de linha, lugar dos negros, dos mestiços, dos despossuídos, dos excluídos.
Ele estava em meio à multidão. Gritava a favor da democracia, da propriedade, dos valores cristãos, da moral. Sentia-se integrado, reconhecido, respeitado e considerado. Durante vários dias havia participado de reuniões, ajudando a preparar faixas e cartazes com palavras de ordem a favor da liberdade, do capital e dos valores da família tradicional.
Nas reuniões em casas de vários desses organizadores fora bem recebido e sentia-se tão importante como um deles. Nas pausas para o “brunch”, como aprendera a denominar a merenda, comera junto com outros colaboradores como ele, nas mesas em cantos de cozinhas que tinham o tamanho de casas.
Não perceberam que não tinham lugar nas confortáveis poltronas das enormes salas, nas elegantes mesas das salas de jantar onde ficavam os dirigentes do movimento.
Sentia, na sua ingenuidade, que o consideravam um igual, e até deram a ele a responsabilidade de distribuir panfletos nas ruas e postá-lo na linha de frente, como pessoa de coragem e confiança para qualquer eventual confronto com os da ralé.
Defendia a religião, a crença no Senhor Jesus, como ensinara o pastor da igreja que frequentava. Aprendera que era sagrado o direito à propriedade sem qualquer reserva, embora nada possuísse. Acreditava que quem estava naquela luta seria um dia lembrado por Deus, que faria cair dos céus a tão esperada e desejada chuva de prosperidade. Sonhava em ter sua casa, seu carro e ter uma mulher como aquelas que viam em meio à multidão que sabiam seu nome, sorriam para ele e pegavam na sua mão ao fazerem correntes de oração, pedindo as bênçãos desse Deus que sempre mantinha sua preferência naqueles poucos por Ele escolhidos.
Junto com eles rezava pelo fim daquela política maldita que dava comida de graça à gentalha desocupada, implorando pela implantação de um sistema onde a meritocracia fosse implantada. Não sabia bem o significado dessa palavra meio difícil de pronunciar, mas devia ser coisa boa. Gritou em apoio à extinção desses programas sociais, que eram na realidade coisa de governantes comunistas e ateus. Havia aprendido muito nos últimos dias e sentia-se outra pessoa. Bem informada, engrandecida, reconhecida.
Haviam prometido a ele usarem suas influências para que pudesse financiar um carro. Seria um empreendedor, dono de seu negócio ao tornar-se um transportador UBER. Esse era seu sonho. Antevia um futuro próspero, grandioso, onde livre de patrões e sindicatos inúteis, rumaria a uma gloriosa independência financeira. Para ele, era um trabalho de alto nível, pois muitos que o exerciam possuíam diplomas universitários. Eram engenheiros, advogados, administradores. Haviam preferido esse trabalho decerto por ser muito compensador, e ele sonhava em ser mais um desses profissionais de elite.
No início da noite, com um sentimento de vitória, de orgulho, de dever cumprido voltou para casa.
Dentro do ônibus, era o único vestido de amarelo ouro, a cor dos poderosos. Todo os outros trajavam macacões de operários, roupas simples das empregadas domésticas, uniformes de escolas públicas ou os trajes puídos e gastos dos desclassificados, dos desempregados, dos desesperançados e dos esquecidos pelo Deus dos justos e abençoados. Enojado, procurara um espaço que o mantivesse afastado e resguardado de manter contato físico com aquela massa desprezível.
Cheio de orgulho chegou ao cômodo que alugava. Cansado, pegou sua toalha desbotada pelo uso e um pedaço de sabão. Enfiou os pés num chinelo velho e sentou-se no comprido banco de madeira já ocupado por outros iguais, numa espera conformada.
Com os olhos cheio das imagens do dia aguardou, pacientemente, sua vez de utilizar o único banheiro coletivo que servia aos moradores do cortiço.
*Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”.
Fonte: o autor
Publicação Ambiente Legal, 25/02/2022
Edição: Ana Alves Alencar
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