Por Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos*
A sociedade brasileira, especialmente na região sudeste, tem pago um preço caríssimo, seja financeiramente, patrimonialmente, e, com grande freqüência, com a trágica perda de vidas humanas, pelo fato de persistir em erros históricos na condução de suas relações com nossas serras tropicais úmidas naturalmente florestadas.
Servem como referências históricas claras e flagrantes da gravidade dos fenômenos de que estamos tratando os espetaculares e catastróficos episódios de múltiplos deslizamentos ocorridos, por exemplo, em 1967 na Serra das Araras, no Estado do RJ, e na Serra de Caraguatatuba, no Estado de São Paulo, que contabilizaram milhares de mortos, como também subseqüentes e recorrentes episódios semelhantes que tem resultado em lamentáveis tragédias nos estados de Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, entre outros. Claro, além das centenas de deslizamentos de caráter isolado (jornalística e popularmente mais conhecidos como “quedas de barreiras”), mas não menos desastrosos, que anualmente ocorrem de forma natural ou induzida em nossas regiões serranas.
Sem exceções, essas serras quentes, úmidas e cobertas por florestas densas têm suas encostas caracterizadas por uma grande susceptibilidade a deslizamentos (movimentos de massa) envolvendo solos e rochas. Sem dúvida, essa susceptibilidade será tanto maior quanto maior a pluviosidade local, quanto mais acidentado o relevo e maior o grau de inclinação das encostas, bem como quanto mais atuantes e dinâmicos forem ainda os processos geomorfológicos de formação do relevo.
Essa susceptibilidade a deslizamentos às vezes chega a ser tão acentuada que, ainda que esporadicamente, estes fenômenos ocorrem naturalmente, sem nenhum tipo de interferência humana, como acontece na Serra do Mar. Em outras serras a susceptibilidade a escorregamentos se revela quando de alguma forma de interferência humana, seja por mutilações do terreno através de cortes (na implantação de uma obra viária, por exemplo, ou em uma desordenada expansão urbana), seja por desmatamento, seja ainda por sobre-carregamentos promovidos por aterros ou algum tipo de instalação, como edificações, torres de energia ou telecomunicações, etc.
Por certo, a mais conhecida região brasileira serrana quente úmida densamente florestada, especialmente pela populosa área em eu se insere, é nossa Serra do Mar (com seus inúmeros nomes locais, como todas serras mais longas), estendendo-se por mais de mil quilômetros, do norte do estado do Rio de Janeiro ao estado de Santa Catarina. Com as mesmas características fisiográficas essenciais, outras serras quentes úmidas (serras tropicais ou equatoriais úmidas) similares se espalham pelo território nacional em seus domínios tropicais e equatoriais: serras da Mantiqueira, Bocaina, Baturité, Maranguape, Caparaó, Acaraí, Pacaraima, Parima, Tumucumaque, Serra Geral, e outras, além de serras de expressão geográfica mais limitada, como por exemplo, no Estado de São Paulo, a Cantareira, a serra do Itapeti, a serra do Japi.
Lícito seria também estender a validade das considerações técnicas desse artigo para outras situações de relevo, ainda que não constituam serras tropicais úmidas típicas, como por exemplo, nossas diversas Chapadas, os Aparados da Serra, e outras paisagens assemelhadas a “canyons” e “cuestas”. Estes relevos apresentam com freqüência uma encosta definida por extensos paredões rochosos verticais superiores e, particularmente a partir de suas médias altitudes para a base, “saias coluvionares” com inclinações mais suavizadas, normalmente florestadas e úmidas, que também manifestam considerável susceptibilidade a deslizamentos.
Quanto às florestas naturais de nossas serras úmidas, tanto nos domínios equatoriais quanto nos tropicais, via de regra são florestas ombrófilas densas, ou seja, florestas com um número enorme de árvores, de até dezenas de metros de altura, com copas imbricadas e contíguas e interior sombreado povoado por samambaias, bromélias, lianas, e toda sorte de epífitas.
Destacam-se como principais características das Florestas Ombrófilas Densas, em suas versões Atlântica e Amazônica:
- grande diversidade florística
- grande endemismo de espécies
- árvores maiores atingindo até dezenas de metros de altura
- corpo florestal denso com copas contíguas
- ambiente interno sombreado, abafado e úmido
- espessa serapilheira (manto de restos vegetais que recobre o solo)
- interior florestal rico em samambaias, bromélias, lianas e epífitas
- enraizamento superficial e sub-superficial intenso e denso
O clima comum às florestas ombrófilas densas de encostas caracteriza-se por altas temperaturas médias anuais (por exemplo acima de 19º na Serra do Mar e acima de 25º na Floresta Amazônica) e por uma intensa pluviosidade — a pluviosidade anual média nos domínios da Floresta Amazônica é sempre superior a 2.500 mm e em alguns trechos a Serra do Mar chega a apresentar pluviosidade anual média acima de 4.000 mm.
Vejamos agora a importância e como age a floresta na inibição de escorregamentos, lembrando que a floresta natural de encostas constitui o único, e espetacular, fator externo inibidor de escorregamentos e de processos erosivos. Esse importantíssimo e insubstituível papel é cumprido por meio dos seguintes atributos:
· impede a ação direta das gotas de chuva no solo através das copas e da serapilheira;
· impede a ação erosiva das águas de chuva por meio de raízes superficiais e da serapilheira;
· retém por molhamento de todo o edifício arbóreo parte da água da chuva que chegaria ao solo;
· dilui no tempo o acesso das chuvas ao solo;
· retira por absorção, e devolve à atmosfera por evapo-transpiração, parte da água infiltrada no solo;
· agrega, “coesiona” e retém os solos superficiais através de uma formidável malha superficial e sub-superficial de raízes.
Estudos levados a efeito em diversas florestas tropicais úmidas do planeta revelaram que a cobertura vegetal impede o acesso ao solo de até 20% do total pluviométrico precipitado. O que representa, sem dúvida, uma ordem de grandeza fantástica.
O importantíssimo papel da floresta na contenção das encostas da Serra do Mar ficou nítida e didaticamente evidenciado por ocasião dos escorregamentos generalizados que ocorreram nas encostas do Vale do Rio Mogi no final do verão 1984/1985. Verificou-se na época que, como conseqüência da intensa poluição atmosférica gerada pelo pólo industrial de Cubatão, a floresta de porte arbóreo vinha sofrendo um acelerado processo de fenecimento ao longo desse vale. Sem mesmo ter sido iniciado o processo de apodrecimento das raízes, apenas o processo de desfolhamento do estrato arbóreo provocado pela poluição foi suficiente para a quebra do equilíbrio entre os agentes resistentes e os agentes promotores de deslizamentos.
Uma outra constatação demonstra a capacidade de proteção oferecida aos solos superficiais pela floresta: mesmo em chuvas de grande intensidade, as águas das drenagens que correm da Serra para a Baixada permanecem cristalinas, sem nenhum turvamento que possa suscitar a remoção de solos por erosão.
Do ponto de vista dos processos geomorfológicos que geram os relevos serranos, pode-se dizer que com a cobertura florestal intacta esses processos têm sua intensidade extremamente reduzida, podendo ser considerados praticamente contidos, ou seja, o relevo não sofre modificações sensíveis, para a escala de tempo do Homem moderno. A partir dessa percepção, estudos geológicos e geomorfológicos permitiram concluir que nossas serras tiveram seu relevo acidentado modelado em períodos em períodos de ausência florestal, quando então os solos superficiais anteriormente formados ficavam assim expostos à erosão e aos deslizamentos. Esses fenecimentos das nossas florestas serranas coincidiam com os períodos glaciais que ao longo da história geológica atingiram o que viria a ser mais tarde o território brasileiro. Nessas situações, com drástico resfriamento do clima, a floresta reduzia-se a limitados “refúgios”, focos de sua futura expansão e recuperação quando do aquecimento e umedecimento climáticos que se seguiriam.
Por fim, um caso histórico importante de ser registrado, especialmente por revelar o risco da importação desavisada de receituário técnico desenvolvido para realidades fisiográficas diferentes daquelas que prevalecem em nosso país. Trata-se de um erro de gravíssimas conseqüências ingenuamente cometido pelos engenheiros ingleses que, a partir de 1860 conduziram a implantação na Serra do Mar da ferrovia São Paulo Railway (Santos-Jundiaí), primeira ligação ferroviária entre São Paulo e Santos. Os ingleses desenvolveram experiência técnica original junto a florestas de climas frio e temperado, em que as árvores são de praticamente uma só espécie e ocorrem relativamente separadas uma das outras, expondo-se isoladamente a ventos fortes que podem, por efeito de alavanca, tombá-las, e com isso ofender, pelo arranque das raízes, as camadas superficiais de solo. Com essa perspectiva providenciaram, como medida pretensamente voltada a evitar deslizamentos, um amplo desmatamento de larga faixa das encostas imediatamente acima da linha férrea; faixa de largura bem superior àquela apenas necessária a evitar a queda de galhos de árvores sobre os trilhos. Não se deram conta de que em climas tropicais e equatoriais as florestas apresentam uma enorme diversidade florística e enorme densidade de árvores, de tal modo que as copas conformam um único corpo arbóreo que se apóia mutuamente, impedindo que os ventos produzam o efeito alavanca que lhe poderia atingir o enraizamento e, por conseguinte, as camadas superficiais de solo. Desprotegidas da fantástica proteção promovida pela floresta tropical, essas faixas desmatadas viram-se sujeitas aos mais variados tipos de deslizamentos e processos erosivos superficiais, acarretando até hoje gravíssimos e dispendiosos problemas para a segurança do tráfego ferroviário nos trecho de serra. Esse erro infelizmente foi reproduzido mais tarde também em algumas obras da engenharia nacional em encostas serranas tropicais.
Ainda que as postulações ambientais e ecológicas sejam já plenamente suficientes para justificar uma firme e pronta decisão de proteção de nossas florestas serranas naturais, os aspectos geológicos e geotécnicos considerados nesse artigo reforçam substancialmente a importância e a urgência dessa providência. Especialmente através da criação de Parques Federais, Estaduais e Municipais, e da permanente sustentação de suas competências operacionais.
Sob um outro aspecto, e na medida que algum tipo de intervenção humana junto às regiões serranas tropicais sempre será inevitável (obras viárias, infra-estrutura de telecomunicações, dutovias, etc.), indispensável se faz promover o desenvolvimento de concepções de projeto de engenharia e de tecnologias construtivas que se inspirem na percepção da suscetibilidade das encostas a deslizamentos e no entendimento do fundamental papel das florestas na estabilidade das encostas.
*Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos – Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas, Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Diálogos Geológicos”, “Cubatão”, “Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções”, “Manual Básico para elaboração e uso da Carta Geotécnica”, “Cidades e Geologia”, Consultor em Geologia de Engenharia e Geotecnia – (santosalvaro@uo l.com.br).