Por Ricardo Viveiros*
O cardeal emérito de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, completaria 100 anos de vida neste 14 de setembro de 2021. Uma existência dedicada ao verdadeiro sacerdócio: amor ao próximo.
Dom Paulo foi uma das mais respeitadas autoridades em direitos humanos, no Brasil e no Mundo. Para ele nada era mais importante do que o exercício pleno da liberdade.
E foi com sua fé inabalável que, em 1973, criou a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Mais do que um organismo da Igreja Católica, um permanente olhar sobre a vida. Um instrumento para defender a justiça, promover a paz, baseado no respeito à democracia — em especial, naqueles tempos duros da ditadura, um valor a ser reconquistado. A liberdade sempre foi um sagrado direito para o bom pastor Paulo Evaristo, o cardeal Arns.
As cicatrizes dos regimes de opressão sofridos pelos países da América Latina, em especial o Brasil, estão não apenas nos corações e mentes dos que lutaram por você, por mim, por nós. São marcas também nos milhões de excluídos deixados pela falta de desenvolvimento em mais de duas décadas de opressão. Triste herança que, até hoje, não teve solução. Porque persiste, embora concretos avanços, a indignidade da falta de saúde, educação, trabalho, segurança, moradia, cultura. Dom Paulo sempre teve um olhar amigo para com aqueles que, respeitosamente, chamava de “pequeninos”.
A batina de dom Paulo trazia, entranhada no tecido, a poeira imunda das prisões onde foram torturados aqueles que defendiam a liberdade. Porque não houve gemido que ele não tenha ouvido, se fizesse presente e levasse conforto. E sempre de maneira corajosa, exigisse respeito.
Sua imagem, voz, gestos são inesquecíveis para aqueles que, como eu, mereceram sua mão sobre a cabeça nos momentos mais sofridos, quando do injusto castigo imposto pelos ladrões da liberdade. É impressionante como ele soube, em nome de Deus, fazer com que os carcereiros e torturadores aceitassem suas ponderações em favor de todos, dos crentes de qualquer religião e até dos ateus, sem discriminar ninguém.
São muitos os episódios que recordam sua fraternidade: na pastoral do migrante no Glicério; com as mães solteiras na Pró-Matre; nos cárceres do DOPS na Rua Piauí; nas favelas das zonas Sul e Leste; nas unidades da FEBEM; nos corredores da PUC-SP; nos estúdios da Rádio América; nas páginas do “O São Paulo”; nos movimentos populares; nos estádios de futebol em meio à barulhenta torcida do seu Corinthians — porque, até nisso, seu sentimento estava sintonizado com o povo. Dom Paulo não estabelecia fronteiras entre as religiões, foram inúmeras suas ações positivas em perfeita harmonia e integração com líderes evangélicos, judaicos, budistas, hinduístas, muçulmanos, espíritas. O importante para ele era a fé.
Ora pequeno, gestos contidos, voz doce. Ora grande, gestos firmes, voz determinada. Dom Paulo foi sempre corajoso, solidário, lúcido, informado, consciente dos problemas e defensor e possíveis soluções. O guerreiro continua vivo! O pastor, o mestre, o jornalista, o escritor, o ativista — o homem de fé, de esperança, de respeito ao semelhante tornou-se eterno símbolo de amor ao próximo.
Um ser humano completo para quem viver foi sempre participar. Uma lição de vida, um exemplo, um cidadão brasileiro a ser — por inquestionável merecimento —, reverenciado e jamais esquecido.
Publicado originalmente em O Estadão.
*Ricardo Viveiros é jornalista, escritor e professor. Doutor em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e autor de vários livros, entre os quais Justiça Seja Feita, A Vila que Descobriu o Brasil e Pelos Caminhos da Educação.
Fonte: o autor
Publicação Ambiente Legal, 14/09/2021
Edição: Ana A. Alencar
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