Ou
Como o projeto da Usina de Santa Isabel provocou danos ambientais, sem sair do papel
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
A Usina hidrelétrica de Santa Isabel – projetada para aproveitamento do imenso volume hídrico do Rio Araguaia, tornou-se mais um exemplo da doentia megalomania público-privada nacional.
Sem sair do papel, o projeto faraônico, no entanto, deixou um rastro de degradação ambiental.
Como isso foi possível? Simples: bastou seguir o “manual brasileiro do que não se deve fazer em matéria de governança corporativa – pública e privada”.
ROTEIRO DE UM DESASTRE PREVISÍVEL
Idealizado ainda na década de 80, no século passado, o projeto da UHE Santa Isabel foi leiloado e adquirido por investidores privados, em plena crise do apagão de 2001, ocorrida no início deste século.
O contrato foi firmado sem a devida análise de viabilidade ambiental. Por conseguinte, o projeto atolou, de cara, no licenciamento ambiental.
Após a primeira negativa do IBAMA, os empreendedores concessionários insistiram na aventura burocrática. Voltaram à carga, intentando um novo procedimento de licença ambiental e, com isso, estenderam o drama até não terem mais como viabilizar a obra.
Então, em 2013, o elefante branco foi devolvido à União Federal pelos investidores.
O detentor do projeto era o consórcio Gesai, formado por BHP Billiton, Vale, Camargo Corrêa, Alcoa e Votorantim. Ao devolver a concessão, o consórcio alegou desequilíbrio econômico financeiro do contrato.
O presidente do consórcio, Celso Castilho, informou à agência Reuters que “houve um consenso no sentido de que devolvêssemos a concessão, porque não tivemos sucesso na recomposição de prazo da concessão e na modificação do pagamento da UBP”.
Os empreendedores pediam que o prazo de concessão da usina, de 35 anos, passasse a contar a partir do recebimento da licença ambiental. Além disso, pediam e readequação do pagamento devido pelo aproveitamento do potencial hídrico da usina, a UBP – Uso do Bem Público.
Um drama em duas temporadas.
Na primeira, ocorreu a privatização do projeto – após duas décadas de indefinição de rumos, nas mãos do governo federal, seguido do indeferimento da licença ambiental requerida. Na segunda, ocorre o desastre financeiro. Esta, a saga da Hidrelétrica de Santa Isabel…
Porém, não foi esse o único prejuízo provocado pela empreitada funesta. O dano ambiental ocorrido durante todo o tempo da novela, ao contrário do projeto da usina, saiu do papel e afetou a região.
Segundo o jornal O Estado de São Paulo, estudos ambientais constantes do projeto da usina demostraram que, no período entre 1988 e 2008, a pastagem no local aumentou 55% e as formações de florestas caíram 30,5%. Vale dizer, o mesmo cuidado que a burocracia procurou demonstrar na avaliação ambiental do projeto, não ocorreu na própria conservação da área.
Se tivesse saído do papel, a usina estaria produzindo 1.087 megawatts (MW) desde 2007 – o que daria importante alívio ao sistema elétrico, que vive sob intensa crise hídrica e financeira, com vários projetos atrasados.
Posta a história, vale a pena aprender com ela.
PRESSA E PREJUÍZO
A história de Santa Isabel começou em novembro de 2001, durante o maior racionamento de energia do País.
Pressuroso por responder à sociedade, após o desastre regulatório que ocasionara à política energética brasileira, o governo tucano de FHC tirou da cartola uma série de projetos de geração e transmissão de energia, seja no campo hidrelétrico, seja no da termeletricidade.
Como se sabe hoje, o violino tucano, tocado para “conferir brilho” ao apagão, foi um desastre completo. No entanto, à época, sua sonoridade “cool” atraiu hordas de investidores, iludidos com a possibilidade de gerar energia (e lucros) por meio de contratos de concessão, desprovidos de critério acompanhados de autorizações descuidadas. Essa toada valia para empreendimentos de todo tamanho, em território nacional.
Grandes empresas do setor de mineração, com experiência em autogeração de energia, formaram o consórcio Gesai, que entrou de cabeça na toada tucana e arrematou a concessão da UHE Santa Isabel, por 35 anos, pagando pelo projeto o valor de R$ 1,769 bilhão.
Naquela época, conforme o péssimo regramento estabelecido no governo FHC, ganhava o leilão quem se comprometesse a retribuir com o maior valor de Uso de Bem Público (UBP) – montante que seria pago durante determinado período de concessão.
Também, por conta do desprezo absoluto do governo federal pela questão ambiental, nenhuma garantia havia para os adquirentes da concessão, de que esta seria ambientalmente viável. E, pelo visto, o consórcio, formado por gigantes do setor de mineração e construção civil… não tratou de executar um estudo acurado de risco ambiental…
Pagaram caro, os consorciados, por isso.
Logo após o leilão, o consórcio vencedor iniciou o processo de licenciamento ambiental do projeto e, seis meses depois, surpreendentemente, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama), concluiu que o projeto era inviável.
A constatação, de fato, parecia óbvia:
1- o Rio Araguaia era um dos poucos cursos d’água preservados, não era impactado por qualquer aproveitamento hidrelétrico e, portanto, até por conta da vocação pesqueira e de turismo da bacia, deveria continuar a seguir seu curso natural;
2- a enorme lista de conflitos socioambientais a serem enfrentados pelo projeto, sem qualquer interesse político-econômico justificável por parte do Poder Público, não recomendava a empreitada. Para se ter uma ideia, até comunistas reivindicavam o tombamento da área por se tratar da região conflagrada no episódio do combate aos guerrilheiros que ali se instalaram nos anos 70, durante o regime militar.
A usina geradora de energia de Santa Isabel, segundo o IBAMA, era, portanto, uma “usina geradora de conflitos sócios ambientais”.
Em primeiro lugar, chamava atenção o número de Municípios atingidos: Palestina do Pará (PA), Piçarra (PA), São Geraldo do Araguaia (PA), Ananás (TO), Aragominas (TO), Araguanã (TO), Riachinho (TO) e Xambioá (TO).
Em segundo lugar, não era possível ignorar o volume de populações indígenas afetadas: Suruí (Terra Indígena Sororó), Karajá do Norte (Terra Indígena Xambioá), Guarani Mbya (Terra Indígena Xambioá), Gavião-Parkatejê (Terra Indígena Mãe Maria) e Apinajé (Terra Indígena Apinayé).
Em terceiro lugar havia uma significativa variedade de áreas protegidas impactadas: Parque Estadual Serra dos Martírios-Andorinha, Área de Proteção Ambiental (APA) São Geraldo do Araguaia, Sítio Pré-Histórico Ilha dos Martírios, Área de Proteção Ambiental (APA) Lago de Santa Isabel e Corredor Ecológico Bananal-Araguaia.
Por fim, era impressionante o número de patrimônios espeleológicos e arqueológicos que também seriam afetados: 131 cavernas naturais e 113 sítios arqueológicos.
Isso tudo, fora os problemas afetos ao controle populacional…
O corajoso indeferimento do projeto pelo IBAMA, foi objeto de estudo do próprio Banco Mundial, em profunda análise da performance do licenciamento ambiental no Brasil para os projetos de hidroeletricidade.
O estudo de caso era parte do trabalho do Banco, do qual fiz parte como consultor.
De fato, o próprio banco já havia entendido como acertada a decisão da agência ambiental.
MURROS EM PONTA DE FACA
A novela poderia ter terminado ali. Porém, como nas séries cinematográficas de ação e ficção, a saga ganhou uma nova temporada, com novo enredo.
Para surpresa de muita gente, em 2008, o grupo de investidores articulou uma reentrée no licenciamento ambiental. Negociou e obteve uma espécie de “consenso” com o Ibama, o qual elaborou novo termo de referência para um novo Estudo de Impacto Ambiental (EIA-Rima).
Em um “show” à parte, o Ministério de Meio Ambiente se manifestou politicamente contrário ao projeto. No entanto, o Ministro Minc e seus assessores eram meros figurantes na faraônica ressuscitação do projeto da UHE Santa Isabel – um verdadeiro “Lázaro” burocrático.
Assim, entre 2009 e 2010, o EIA e demais relatórios complementares foram entregues e, em 2012, o IBAMA liberou os estudos para início das audiências públicas.
Nessa altura, porém, o espectro econômico brasileiro já começava a sinalizar para uma recessão iminente, embora mascarada pelo governo federal.
A ideia dos investidores, então, deixara de ser a implementação do projeto e, sim, tentar a prorrogação do contrato de concessão – uma tábua de salvação ante o naufrágio iminente.
De fato, o complexo, demorado, arriscado e mesmo temerário processo de licenciamento ambiental, havia consumido volume expressivo do período destinado à própria concessão. A viabilidade econômico-financeira do empreendimento já estava comprometida. Os empreendedores, na verdade, sangravam por insistirem em esmurrar uma ponta de faca.
O objeto cortante era a postura errática da burocracia do setor de regulação do governo petista de Dilma Rousseff.
A excessiva, imprevisível e autoritária burocratização marcou o clima de negociação dos empreendedores com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e com o Ministério de Minas e Energia e selou a rescisão do contrato, assinada em 29 de janeiro de 2014.
A indefinição governamental, aliás, ainda perdura, e afeta vários outros empreendimentos do setor.
Em meados de julho de 2015, por exemplo, o Ministério de Minas e Energia divulgou diretrizes para a devolução de outras sete usinas que foram licitadas até março de 2004, e que não haviam entrado em operação – todos projetos licitados quando a licença prévia ambiental ficava a cargo de quem adquirisse a concessão. O conflito armado com as diretrizes acabou no colo da Justiça Federal de Brasília, que concedeu liminar a favor de concessionários de cinco outras usinas afetadas, associados à Associação Brasileira dos Investidores em Autoprodução de Energia Elétrica (Abiape), suspendendo o prazo final para que se manifestassem sobre a devolução.
O caso de Santa Isabel, portanto, não é o único. No entanto, continua sendo o mais emblemático, por constituir um somatório de má gestão pública com uma péssima e temerária gestão privada do conflito.
EMPREENDENDO NO PAPEL E PRODUZINDO DANOS
A péssima governança, a falta de planejamento, a improvisação e o autismo corporativo – que só a arrogância é capaz de provocar, marcaram o ritmo da atuação das empresas gigantes envolvidas no projeto.
Ao que tudo indica, a análise de risco do investimento, se ocorreu, constituiu peça de ficção, pois o epílogo funesto da saga repetiu a versão anterior.
Ou seja, leiloada em 2001, a Hidrelétrica Santa Isabel, adquirida sem uma análise ambiental de risco, sofreu indeferimento do IBAMA e, após retornar à burocracia do órgão, para nova avaliação, em 2008, atolou não apenas nas indefinições ambientais, como também nas incertezas regulatórias e econômicas.
A novela, destarte, foi editada em longos capítulos para pelo menos duas temporadas – e só o capítulo do licenciamento ambiental arrastou o evento por 10 anos.
Nesse ínterim, a região a ser impactada pelo projeto sofreu todo tipo de impactos sócio-ambientais… seja por conta das expectativas frustradas, seja pelo descontrole territorial decorrente da antecipação de conflitos, seja por força das demandas econômico-sociais ali efetivamente registradas.
Importante entender o que é área impactada.
Como prevê a legislação, a área de influência de um empreendimento a ser avaliado para efeito de licenciamento ambiental é delimitada em três âmbitos – Área de Influência Indireta (AII), Área de Influência Direta (AID) e Área Diretamente Afetada (ADA).
Essa dimensão estratégica, e a dinâmica altamente complexa, no entanto, ao que tudo indica, foi ignorada nas operações de renovação do processo de licenciamento pelos empreendedores. Algo como deslocar um exército em território inimigo sem ter atualizado o mapa…
O volume de transformações, observado no período entre os primeiros levantamentos e o novo estudo de impacto ambiental, reclamaria, na verdade, um novo projeto. De fato, a área urbana e a pastagem ocorrentes no local onde seria a represa, aumentaram drasticamente, enquanto as formações de florestas diminuíram.
Em 1988, data do primeiro mapa de referência para os estudos locacionais do projeto junto ao IBAMA, as áreas de influência direta e diretamente afetada pelo projeto, possuíam ocupação distribuída em 57% do seu total por formações de floresta e 31,72% por formações de pastagem. Passados 20 anos, por ocasião da retomada do licenciamento, em 2008, os porcentuais de floresta haviam caído para 39% e os de pastagem subiram para 49%. Além do aumento da pastagem e da queda na formação de florestas, a área urbana praticamente dobrou de tamanho, e o cerrado caiu 6%.
A usina não foi construída, mas os temidos impactos que ela traria para a região ocorreram.
A propósito do fato, a consultora Maria Cecília Wey de Brito, ex-executiva do WWF, declarou à imprensa ser necessário avaliar se a degradação ocorrida não é efeito da própria expectativa em torno da construção da hidrelétrica. “Os donos das terras, pensando que a área seria alagada pelo reservatório, podem ter acelerado o desmatamento”, avalia a consultora.
HAVERÁ MAIS UM CAPÍTULO NESSA TRAGÉDIA?
A saga da Usina de Santa Isabel, no entanto, ameaça ter mais uma edição. Com a devolução do projeto, o governo federal promete fazer uma nova licitação.
Confrontado com os fatos, o IBAMA (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente), destacou que o projeto não recebeu licença prévia do órgão.
Afirma a agência que “de fato, se houve alteração significativa dos atributos ambientais da região, o estudo deverá ser atualizado, com repercussões nas condições de implantação e operação da usina”.
Ou seja, se o governo decidir colocar a usina em leilão, os estudos ambientais terão de ser refeitos, partindo do zero.
Considerando as experiências passadas… a novela irá se arrastar por muitos anos.
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. É Editor- Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
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