A grande imprensa e as campanhas político-eleitorais, terão que se reinventar
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
Na campanha eleitoral de 2018, ocorreu evidente constatação:
O aparato de comunicação analógico, composto pelas concessionárias de rádio e televisão, jornais e revistas da grande imprensa, subserviente e amestrado pelo establishment, sucumbiu ao fenômeno político digital.
Foi um doloroso choque de realidade para os chamados cartéis da grande imprensa, senhores de um mercado hoje condenado a desaparecer.
Também foi decretado o fim do marketing político tradicional, centrado nessa mesma mídia.
Fiéis serviçais do status quo, organismos da grande mídia usaram os melhores recursos técnicos e humanos para conferir credibilidade à cobertura do processo eleitoral. O aparato de rádio e televisão, por sua vez, também hospeda o horário eleitoral gratuito, até então tido e havido como o ápice das campanhas organizadas pelos grandes partidos patrocinados pelo establishment.
Todo esse complexo midiático foi fragorosamente derrotado pelo fato digital, superado em audiência, cobertura e credibilidade, pela ágil, difusa, pulverizada, barata e organicamente articulada mobilização da cidadania por meio dos dispositivos pessoais integrados no Big Data.
O establishment
O aparato de comunicação da grande imprensa é mantido, patrocinado e suportado economicamente pelo establishment – como é chamado o conjunto de próceres e mantenedores do mecanismo de poder existente no Brasil.
Detentor intelectual dos meios de comunicação – de forma cartelizada, o aparato de comunicação, durante os processos eleitorais da Nova República, manteve-se “acima” dos candidatos e suas propostas, “decidindo” o que era “bom” ou “ruim” para seus leitores, ouvintes e telespectadores.
Esse comportamento arrogante foi também adotado pelo cartel no processo eleitoral de 2018, para a presidência, os parlamentos da união, chefia executiva e parlamentos dos estados.
Amestrados pelo establishment, os jornalistas da grande imprensa apostaram na manutenção do status quo, na permanência das velhas lideranças e na superação dos outsiders pelo peso das máquinas partidárias.
Deram como certa a vitória da política de alianças dos partidos que monopolizaram o tempo de rádio e televisão, destinados á propaganda eleitoral.
Os analistas políticos do aparato midiático e a estrutura tradicional de propaganda política dos grandes partidos, também acreditavam na “desidratação” do “candidato da direita” – Jair Bolsonaro, face á campanha de desconstrução que ele enfrentaria (sem tempo de TV para revidar), e em face às denúncias veiculadas por eles próprios e pela grande imprensa engajada. Tinham a certeza, outrossim, que não haveria governabilidade possível de um outsider, sem alinhamento deste com uma base parlamentar consolidada, obviamente oriunda dos partidos de sempre…
Pois bem, falharam absolutamente.
O fato é que o grande sistema de comunicação, analógico e viciado, sucumbiu, dizimado pela mobilização digital, difusa e livremente articulada, ocorrida na campanha eleitoral de 2018.
O ocaso do jornalismo analógico
A mídia amestrada pelo establishment, que sempre constituiu uma formidável máquina de guerra, revelou-se obsoleta.
O impacto econômico deste fato é significativo.
As redes de mídia impressa e radio-televisiva, esta última sedimentada pelo regime de concessões, todas denominadas “mídias quentes”, são mantidas, há tempos, pelas grandes verbas oriundas do enorme fluxo de propaganda estatal e das campanhas de marketing dos grandes grupos financeiros, tocadas pelas agências de propaganda convencionais.
No período eleitoral, esse aparato ganha o reforço de investimento dos partidos políticos e grandes conglomerados financeiros, que por meio da grande imprensa contratam os institutos de pesquisa. A dança de números contratada, no entanto, não é gratuita, ela suporta “ajustes e aproximações”, não para informar a tendência do eleitorado mas, sim, para induzi-lo a corresponder à vontade do establishment.
A liberdade de imprensa, nesse processo, sofre barbaramente. A massa de informações, no âmbito da grande mídia, é filtrada por editorias e analisada por jornalistas formadores de opinião. Só então, é despejada sobre dezenas de milhões de telespectadores, centenas de milhares de radio-ouvintes e dezenas de milhares de leitores, diariamente.
Embora produzido em nível de qualidade diferenciado, e com expressão em escala superior, e ainda que esteja suportado por broadcasting, o sistema da grande mídia nacional permanece analógico. Constitui uma produção editorial manufaturada – quase artesanal, que pressupõe fidelização da assistência – expandida aritmeticamente.
O que esse sistema produz, demanda conversão para os meios digitais. Dessa forma, é fato, o sistema alcança o celular do cidadão tal qual se faz na mídia digital. Porém, ao contrário dessa mídia assimétrica e pulverizada, esse sistema da grande imprensa requer do usuário uma assinatura…
A mobilização digital
Essa microfísica do poder (na linguagem de Michel Foucault), não se adaptou à tecnologia disruptiva digital). O impacto tecnológico disruptivo da comunicação em rede digital não pode mais ser revertido, nem caberá mais nas mídias mainstream.
O processo de pulverização digital da informação obriga esse sistema a se reinventar. As estruturas de poder apostas em uma redação tendem a desaparecer. Como o próprio Foucault já antevia na construção da vontade de saber, prevalecem agora o desejo sem a lei e o poder sem o rei.
Mas não houve uma “invasão” de território, e tão pouco houve disputa por audiência – pois mídias e mensagens em absoluto se assemelharam. O establishment simplesmente não conseguiu detectar a disrupção e ignorou o enorme movimento político subterrâneo – a “vontade de saber” do “desejo sem a lei e o poder ser o rei” que marcou todos os movimentos libertários produzidos no mundo na segunda década deste século – da primavera árabe às manifestações de rua no Brasil.
Envolto pela soberba, o establishment não atentou, não analisou, não previu e não percebeu o enraizamento e o reflorescer do fenômeno das gigantescas manifestações de 2013.
A indignação em estado puro de 2013, serviu de base para alavancar a “raiva” motivadora do impeachment da presidente Dilma em 2016 e a radicalização nas eleições de 2018.
Se o choque tecnológico ficou evidenciado pela mobilização virtual, essa mobilização foi de fato concretizada nas ruas, inúmeras vezes.
O segredo da mobilização virtual é sua aparente invisibilidade. Ela se dá pelas infovias das redes sociais (facebook, twitter), pela internet (websites, notificações de rede e e-mails), e pelas modernas mídias digitais de troca de mensagens (whatsapp e telegram), chamadas mídias frias, produzidas, percebidas e recebidas nos tablets, telefones celulares e laptops dos milhões de usuários.
Essa assimetria não demanda hierarquia, ou direção. Isso confere uma capacidade de pulverização surpreendente – que a grande mídia analógica não alcança.
Ou seja, nas eleições de 2018, independente dos candidatos, partidos e bandeiras de mobilização social de cada candidatura, a campanha digital avançou virtualmente sem aparente liderança, de forma livre, transferindo informações, postagens, lives, memes, impressões ao sabor da disponibilidade, empatia, receptividade e humor dos próprios usuários, transmissores-receptores, bastando um toque na telinha do celular para instalar-se a comunicação.
O impacto atingiu a comunicação das estruturas ideológicas consolidadas. Para as organizações postadas á esquerda do establishment, o choque produzido pela mobilização digital foi ainda mais desmoralizante. Os chamados “movimentos sociais organizados” tornaram-se, simplesmente, obsoletos. A capacidade de mobilização e emprego pelo proselitismo nas ruas não se comparou á leveza e dinâmica do fenômeno de articulação digital, desprovida de custos físicos e estrutura formal.
No campo dos conflitos assimétricos multifacetados, o fenômeno político digital consolidado nas eleições de 2018, também foi relevante.
O fenômeno ampliou ainda mais a assimetria que caracteriza os chamados “conflitos de quarta geração”. Criou uma espécie de movimento de massas orientado, porém organicamente desorganizado.
Invasibilidade e incapacidade de controle
Esse fenômeno dinâmico da articulação digital já era conhecido no campo da segurança pública, e envolve conflito quanto à invasibilidade na vida e intimidade das pessoas. Isso ocorre porque a tradicional Inteligência de Estado não encontra forma de monitorar digitalmente, sem comprimir a liberdade de expressão e invadir a intimidade do cidadão. Um risco efetivo para o Estado de Direito.
No campo da judicialização, a assimetria torna as ações da jusburocracia algo próximo do ridículo. De fato, em um mundo onde o número de dispositivos digitais interconectados já suplantou o número de habitantes do planeta, a censura judicial a jornais de papel e canais de televisão concessionados, a regulação do “direito de resposta” e a repressão à manipulação de fatos e monitoramento de boatos (em maior escala que a manipulação dos fatos pela grande mídia) tornou-se outra piada. O controle judicial dessa usina de diálogos digitais chega a ser hilária.
Porém, ao contrário do que parece, não é o cidadão que perde e, sim, o próprio establishment.
No fenômeno digital, por mais que se pretenda distorcer, a informação transparece e tanto versões como desmentidos fluem entre os usuários sem que haja controle oficial – portanto, a própria manipulação cedo ou tarde se revela.
A mobilização digital produzida por usuários interconectados em redes sociais e plataformas de comunicação para celulares é, ainda turbinada, sem qualquer filtro, seja diretamente pelos usuários, seja, também, pelos ditos influenciadores digitais e seus seguidores.
Trata-se a articulação digital no big data, de uma mobilização não segmentada. Pelo contrário, integrada e em conexão permanente, impactando centenas de milhões de indivíduos todo o tempo. Isso não pode ser contido no campo dos prazos processuais, procedimentos burocráticos e medidas judicialiformes convencionais.
Cínicos, arrogantes, imbecilizados pela zona de conforto de redações mofadas e organizações partidárias apodrecidas, os próceres do stablishment organizarão uma contra-ofensiva.
Essa contra-ofensiva já se faz notar nos EUA, como a busca pelo “profissionalismo do jornalismo nas redes digitais” e a instalação de agências de “fact checking” contra “fake news”. Com isso, pretendem literalmente assumir o fluxo de informações nas redes sociais e monetizar a retransmissão da notícia em favor do “autor da matéria”, como se o fato pertencesse ao jornal e não o contrário.
No Brasil, desde a votação do chamado “marco civil da internet”, observa-se a tentativa dos burocratas do Estado e ditadores da informação de impor controle sobre a livre manifestação. A esquerda desde sempre procura fazê-lo no mundo todo, impondo o chamado marxismo cultural por via do “politicamente correto” como norma cogente. O Judiciário, carcomido e preso, literalmente, nas vestes talares do século XVIII, é cúmplice do crime. Esse contexto, no entanto, torna-se mais agudo e perigoso no Brasil, onde as instituições encontram-se mais permeáveis a laivos autoritários e são impermeáveis aos interesses do cidadão comum (com exceção do temor covarde ás manifestações em massa…).
O ponto fraco de todo o fenômeno, porém, está afeto a uma ironia: o pior atentado à liberdade de expressão nas infovias, até agora, parte das ações de quem no primeiro momento beneficiou-se da disrupção tecnológica – a direita xenófoba européia e os reacionários supremacistas norte-americanos.
De fato, a manipulação construída pelos hackeadores da privacidade, o Google e Facebook, aliados à consultoria Cambridge Analytica, está servindo de base para justificar uma tentativa de controle institucionalizada.
Os fabricantes de fake news manipularam o fluxo de opiniões usando algoritmos no episódio do Brexit, na Europa e da eleição de Trump, nos EUA. Assim, abriram espaço para que um exército de alucinados emporcalhassem as redes com enxurradas de insultos e desinformação.
Esse fenômeno é o pretexto que burocratas e ditadores da informação queriam, para avançar sobre a liberdade de expressão e a neutralidade da rede. Será usado com muita força aqui no Brasil também, contra a liberdade de expressão dos brasileiros, e com maior vigor, se Bolsonaro não cuidar de organizar sua comunicação.
Esse retorno ao domínio d mídia mainstream, porém, não irá se resolver com marcos legais idiotas ou aparelhamentos corporativistas articulados de dentro para fora nas empresas administradoras das redes sociais.
Todos, terão e irão se reinventar.
A obsolescência política do establishment
Vídeos, mensagens, memes e “lives” (verdadeiros comícios virtuais), tomaram toda a atenção das centenas de milhões de cidadãos na campanha eleitoral no Brasil, de 2018. Mas o fenômeno não é novidade para a geração antenada no big data.
A campanha eleitoral no Brasil, de todos os cases ocorridos no mundo, parece ser o mais emblemático.
O Estado brasileiro, e seus aparelhos ideológicos parecem não ter se apercebido que o cidadãos passam cada vez mais tempo conectados ao telefone celular e menos tempo dedicados a dar atenção à TV, ao rádio e ao jornal impresso.
Foi dessa forma que eventos antes tidos como decisivos para uma campanha eleitoral – como o comício partidário ou o debate televisivo, tornaram-se não só obsoletos, como também desinteressantes.
Não houve, portanto, no campo digital, qualquer surpresa nas eleições de 2018. Produziu-se, simplesmente, o conhecido impacto da revolução digital no atrasado ambiente político brasileiro.
Também tratou-se de mais um capítulo na evolução dos conflitos assimétricos envolvendo interesses difusos, ativismos de toda ordem, neopopulismos e a notória crise do sistema representativo no Estado Democrático Moderno.
Parece grego… mas não é. Basta ver a assimetria de meios materiais disponibilizados para candidatos como Alckmin (PSDB), Meirelles (MDB) e Haddad (PT), donos de campanhas milionárias, e o resultado pífio por eles alcançado, face á destreza da campanha digital e barata, promovida por Jair Bolsonaro.
A digitalização equilibra os desiguais no campo da comunicação. O grande exemplo de 2018 foi o folclórico Cabo Daciolo, com sua campanha de memes – ao custo de mil reais, que superou o sisudo e bilionário candidato Meirelles em número de votos, tendo este despendido oitenta mil vezes aquela quantia, na mesma eleição.
As bancadas renovadas no parlamento nacional reproduziram a mesma assimetria. Candidatos “youtubers”, conhecidos nos meios digitais, operando mídias em rede com baixo custo e alta criatividade, para um público difuso e infinitamente numeroso, demoliram lideranças tradicionais, baseadas no clientelismo e na extração de votos conquistados pelo contato físico, em redutos eleitorais definidos.
A campanha digital só não foi eficaz nos rincões interioranos e franjas miseráveis das regiões pouco desenvolvidas, mantidas auxiliadas por programas governamentais de transferência de renda e suporte no abastecimento de itens de primeira necessidade. Nessas áreas, a estrutura analógica do establishment constitui ainda o meio e a mensagem.
Isso explica como candidatos populistas, vinculados a um eleitorado de baixa renda e baixo nível de informação, restaram derrotados por candidatos mobilizados digitalmente, que atingiram todas as demais camadas sócio-econômicas da população portadora de celulares inteligentes.
Eu não disse?
A terrível frase que sempre atrai o ódio visceral dos que a ouvem, atesta a confirmação de vaticínios ou advertências óbvias para eventos funestos.
No entanto, já havia mesmo alertado para o fenômeno, por escrito e em vídeo, ainda em 2013, quando da explosão das manifestações dos idos de junho.
O ciberespaço, integrado pela internet das coisas, pelas redes sociais, pela comunicação digitalizada, compreende a comunicação entre os bilhões de seres humanos e também dos próprios dispositivos interconectados a outros dispositivos. Ele vive permanentemente em tráfego – não respeita feriado, horário e situação geográfica.
Bolsonaro captou, em 2018, o fenômeno. Ele identificou no ciberespaço a melhor forma de replicar e impulsionar a onda de descontentamento contra todo o establishment. Fê-lo com maestria, mesmo confiado a quatro paredes, fora das ruas, devido à convalescença do ferimento sofrido no atentado contra sua vida.
Agora, se houver inteligência na equipe governante e uma Inteligência de Estado eficaz, iremos testemunhar o esforço para a construção de um governo digital, que aproximará ainda mais os cidadãos interconectados, gerando nova forma de comunicação do Estado com seus usuários e a sociedade – que politicamente o organizou.
Quanto à comunicação, deverá sofrer nova onda organizacional, sem prescindir dos jornalistas – cidadãos ocupados em usar e fazer outros usarem, constantemente, o intelecto, em função da causa da justiça, da liberdade e da verdade.
Já o aparato do establishment – este terá que se reinventar, bem como as campanhas e estruturas de comunicação da política neste século.
Leia também:
Papo Reto – A Primavera Brasileira – in https://www.theeagleview.com.br/2013/06/papo-reto-primavera-brasileira.html
A Grande Revolução Digital – in https://www.theeagleview.com.br/2013/06/a-primavera-digital.html
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB. Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API. É Editor- Chefe do Portal Ambiente Legal, do Mural Eletrônico DAZIBAO e responsável pelo blog The Eagle View.
Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal, 19/08/2020 e 2018
Edição: Ana A. Alencar