Queridinhos da mídia e a mídia dos queridinhos odiaram o próprio reflexo na série da Netflix
“A verdade dói, a mentira mata, mas a dúvida tortura.”
Bob Marley
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
José Padilha é um gênio do cinema nacional. Sua maior genialidade, contudo, foi ter saído rapidinho do Brasil.
Houvesse permanecido em terras tupiniquins após o retumbante sucesso de “Tropa de Elite” e, a essa altura, Padilha já teria sucumbido à mediocridade que controla a produção cultural brasileira.
“Exilado” nos Estados Unidos, Padilha pôde continuar contribuindo, de forma decisiva, para a melhoria dos padrões brasileiros de conteúdo e dinâmica narrativa, para o aperfeiçoamento do enfoque crítico desengajado, resgatando a cinematografia do patrulhamento ideológico esquerdista.
Padilha conferiu um ritmo de thriller nunca antes alcançado em território nacional com Tropa de Elite I e II, os maiores sucessos de crítica e bilheteria do cinema brasileiro. Esse desengajamento libertador revolveu a podridão da sociedade carioca, denunciou o vitimismo esquerdista, dissecou a perversão do narcotráfico, expôs a hipocrisia da intelectualidade engajada, desnudou a cultura policial da violência, mostrou a relação simbiótica entre política e banditismo e permitiu compreender a interferência corrosiva das milícias no controle territorial do Rio.
Aliás, foi por revolver o solo degradado do território carioca que Padilha foi obrigado a sair do País. Corria literalmente risco de vida. Na verdade, sua ação foi premonitória…
Mas o exílio não interrompeu a produção artística do diretor. Já nos EUA, em um casamento produtivo com a Netflix, Padilha foi além, ao dirigir uma série de padrão internacional – “Narcos”, revelando os meandros do narcotráfico latino-americano.
Ambientado no meio cinematográfico americano, o diretor brasileiro destacou-se ainda ao dar algum laivo de humanidade à sucateada franquia do Robocop.
Agora, José Padilha nos presenteou com a série produzida pela rede Netflix , “O Mecanismo”, estapeando sem dó os cínicos criminosos e os hipócritas responsáveis pela ruína moral e política brasileira.
Obviamente, o diretor não iria escapar impune. A fauna de meritocratas sem mérito, esquerdopatas sem cura e finórios sem freios surgiu da selva tupiniquim para praticar o esporte nacional da maledicência contra a série e seu diretor.
Em artigo produzido na imprensa brasileira, Padilha afirma que a série é uma dramatização de eventos reais, que tem por objetivo apresentar uma tese, e é justamente por conta dessa tese que a polêmica surge, visando favorecer o mecanismo denunciado e desacreditar o denunciante.
De fato, a série dramatiza e confere verniz de ficção a fatos reais ocorridos no Brasil. Por isso mesmo, muitos não somente se viram personificados como, viram-se refletidos para além da realidade, no próprio drama construído pela narrativa.
Uma característica recorrente na chamada “sociedade que conta”, no Brasil, é o inacreditável narcisismo dos medíocres que nela vegetam. Esse narcisismo doentio sempre foi estimulado por uma mídia comprada a peso de ouro. Essa mídia, por sua vez, não apenas retroalimentou essa mediocridade, como também a refletiu nos seus próprios quadros, todos esses anos.
Por isso mesmo, o tom corrosivo adotado pela mídia, com relação à série “O Mecanismo”. Afinal, o tom farsesco dos personagens, a ridicularização das imagens, a exposição exagerada das chagas, as idiossincrasias e a desmoralização das relações sociais, foram descritas com a liberdade narrativa que só uma obra de ficção pode conferir. Essa liberdade narrativa refletiu, para os narcisos incomodados, uma imagem que eles insistiam em não querer ver no espelho da vida.
Como dizia Bob Marley, e aqui se aplica aos narcisos rebelados com a obra, “a verdade dói, a mentira mata, mas a dúvida tortura”…
A controversa dramatização ficcional da vida incomodou queridinhos da mídia e a mídia dos queridinhos… todos assinantes da Netflix. O incômodo foi suprapartidário, tal qual a obra televisiva.
Na visão de Padilha, a dramatização foi absolutamente funcional, objetivou expor a tese de que a corrupção sistêmica brasileira não é ideológica, ela opera igualmente no centro, à direita e à esquerda.
Mimimis à parte, o fato é que o público assinante já transformou a série em outro icônico sucesso.
Para quem ainda não assistiu, é hora de fazê-lo, ainda que seja para criticar a obra com conteúdo. Vale, a propósito, observar o personagem Roberto Ibrahin, brilhantemente interpretado por Enrique Diaz – ele é a tradução fiel do negociante tupiniquim – cuja resiliência, cinismo, interação com o poder e instinto de sobrevivência marcam a história do comércio no Brasil… desde o início da colonização em 1530…
Quanto à crítica maledicente, o próprio sob Padilha se pronuncia:
“Confesso que esperava mais dos formadores de opinião. Pensei que em algum momento da história fossem acordar do estupor ideológico e ajudar pessoas de bem na luta contra o mecanismo que opera no mundo real, em vez de se associar a ele para lutar contra o mecanismo exposto na Netflix”.
Que o exemplo de José Padilha possa dar início à renovação de quadros na produção cinematográfica brasileira.
Ficha técnica:
NETFLIX – O Mecanismo é uma série de televisão brasileira sobre política. Criada por José Padilha e Elena Soárez, dirigido por José Padilha, Felipe Prado, Marcos Prado e com roteiros de Elena Soárez.
Número de episódios (já lançados): 8
Primeiro episódio: 23 de março de 2018
Gênero: Drama Político
Número de temporadas: 1
Diretores: José Padilha, Marcos Prado
Criadores: José Padilha, Elena Soárez
Notas:
http://www.adorocinema.com/noticias/series/noticia-139075/
http://www.bbc.com/portuguese/brasil-43550506
Originalmente publicado em The Eagle View
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e das Comissões de Política Criminal, Infraestrutura e Sustentabilidade da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/SP. Vice-Presidente e diretor jurídico da Associação Paulista de Imprensa – API, é Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.