Dois ex-executivos de grandes corporações norte-americanas abandonam carreira promissora e se tornam arautos de um modo de vida em que o “menos” é “mais”. Ryan Nicodemus vendia celulares para crianças de até 5 anos de idade e se descobriu infeliz, dono de vida vazia. Preenchia o vácuo entediante comprando coisas, muitas coisas. Joshua Fields Millburn era colega de Ryan, a quem convidou para fazer o mesmo que ele: se desapegar de tudo o que tinha até ficar apenas com as coisas que, realmente, têm um propósito em sua vida e o fazem feliz. Uma cama, uma cadeira, um rádio e alguma mobília de jantar, além de poucas roupas, só para satisfazer a si próprio, não a um sistema que transforma desejo em necessidade.
Ryan e Josh se tornaram minimalistas e escreveram um livro sobre a experiência que tiveram nos últimos cinco anos. Sua história é contada no filme “Minimalismo: Um documentário sobre coisas importantes”, à disposição no Netflix e em livro. Embora não seja nenhuma grande descoberta, já que há tempos a questão do consumo excessivo vem se tornando pauta obrigatória, sobretudo entre pessoas que se preocupam verdadeiramente com as mudanças do clima, vale a pena assistir ao filme.
O diretor, Matt D’Avella, acompanhou os dois protagonistas em sua viagem de dez meses pelos Estados Unidos para apresentar o conceito do minimalismo a plateias nem sempre muito volumosas. E entremeou as cenas com depoimentos de “especialistas” no assunto, como um neurocientista, uma economista/socióloga, até mesmo um repórter âncora de uma televisão que um dia teve uma crise de pânico no ar e encontrou na meditação uma espécie de cura espiritual para seu medo de errar. Ele representava, naquele instante, a desgastante busca de chegar ao topo e ganhar mais, numa sociedade extremamente competitiva como a dos norte-americanos.
Senti falta, no documentário, de um debate mais profundo sobre o impacto real que o consumismo desenfreado causa ao meio ambiente e, por consequência, às pessoas que estão sendo vítimas de um número cada vez maior de tufões, furacões, incêndios causados pela seca etc. De qualquer maneira, é interessante refletir, por exemplo, junto com o neurocientista Sam Harris. Para ele, tornou-se natural usar a vida de outras pessoas, e até vidas imaginárias, como um critério sobre a maneira ideal de se viver.
“Você abre uma ‘Vanity Fair’ ou ‘Esquire’ e vê vidas sexys e glamourosas e então os projetos para a maioria das pessoas parecem se tornar: ‘Como posso conseguir aquilo?’”, diz Harris no documentário.
É claro que isso não dá certo e causa uma enorme frustração. E este é um sentimento com o qual a maior parte de nós já se acostumou a conviver nos dias atuais. É só pesquisar alguma coisa na internet que somos imediatamente alvos de diversas propagandas sobre aquele produto ou similares. Juliet Schor, economista e socióloga, define assim o fenômeno: “A propaganda poluiu a cultura”.
Este alerta já fora feito em 2005 por Joel Bakan e Mark Achbar, no excelente documentário “The Corporation”, que também vale muito a pena ser visto.
Schor critica o atual modelo do “sonho americano”:
“Não há dúvidas de que ele se tornou um meio de aumentar tremendamente em termos materiais. Cem mil dólares ou mais por ano se tornou mais e mais um desejo padrão na sociedade, pois aquilo é retratado como normal pela televisão. Uma renda de seis dígitos. Começando por volta dos anos 90, os norte-americanos entraram numa febre de consumismo provavelmente sem precedentes na história da humanidade. E muito disso tem a ver com o barateamento dos produtos, vindos majoritariamente da China”.
As coisas estão mais baratas e é mais fácil comprá-las, 24 horas pela internet. Muito do que se compra, no entanto, poderia ter esperado algum tempo para ser comprado, ou mesmo, poderia nunca ter sido comprado. Há uma compulsão, direcionada, como no mundo da moda:
“O status quo na indústria de moda agora é conduzido pela moda de curta duração. Trabalhamos em um ciclo de 52 estações por ano. Querem que você se sinta fora da moda semana após semana, para que assim compre algo novo na semana seguinte. Já ouvi relatos de grandes varejistas de moda se livrando de todas as roupas de uma semana picotando-as com tesoura para que ninguém pudesse revendê-las. Eles querem que os consumidores comprem o máximo e o mais rápido possível. É uma economia insustentável”, alerta Schor.
Comentando sobre o documentário com um amigo, ele me disse:
“Ora, mas eu conheço muita gente que é minimalista porque não tem outra opção! Vai ali nas favelas, na periferia de São Paulo, Rio, outra cidade grande qualquer… Será que as pessoas lá têm essa preocupação, de comprar menos?”
A resposta pode ser desmembrada. Talvez entre as pessoas com menor – às vezes nenhum – poder aquisitivo, o que reste seja a frustração de não poder comprar. Porque ali também, no pé da pirâmide, chega a propaganda, por este ou aquele meio. Mas, sobretudo, pelos dispositivos portáteis, mais conhecido como aparelhos celulares.
Por outro lado, produtos mais baratos e de baixa qualidade são vendidos e comprados aos montes, o que acaba gerando lixo em pouco tempo de uso. São compras feitas com o objetivo macro de preencher a necessidade de comprar. A inclusão social se faz, dessa maneira, pelo consumo.
O assunto já vem sendo debatido pelas pessoas que se preocupam . O Instituto Akatu formulou perguntas, editou vídeo, põe à disposição o site para que mais informações possam gerar uma mudança de comportamento e o consumo passe a ser mais consciente. É sempre interessante, merece mesmo uma olhada em volta: se você está cercado por “coisas”, que tal se imaginar sem algumas delas?
Melhor ainda é ouvir o “recado” de Ryan numa das palestras que deu para apresentar suas ideias. Em resposta a um ouvinte sobre como deveria agir com relação aos livros que tinha, dos quais não queria abrir mão, ele disse: “Pois mantenha seus livros. Não temos ‘O’ modelo, mas apenas estamos sugerindo UM modelo”.
Em vez de tentar seguir um pensamento hegemônico, melhor mesmo deve ser que cada um procure o seu jeito, singular, de lidar com o consumo. O importante é refletir, e para isso Ryan e Josh dão régua e compasso.
Fonte: Globo Natureza