Por Paulo de Bessa Antunes*
Este artigo, em sequência a artigo anteriormente publicado neste portal[1], objetiva fazer uma análise preliminar do impacto da criação do Ministério dos Povos Indígenas na aplicação do consentimento (consulta) livre, prévio e informado (CLPI), previsto em vários documentos internacionais e no Direito brasileiro. O tema é pouco estudado e a sua aplicação, muitas vezes é deficitária, limitando-se a mero apêndice dos processos de licenciamento ambiental, sob a forma de estudo de componente indígena (ECI). A Medida Provisória 1.154/2023 (MP) fez uma ampla reformulação da administração pública federal, com a instituição de dois ministérios muito relevantes no que se refere à implementação do CLPI, a saber: 1) o Ministério da Igualdade Racial (MIR) e o Ministério dos Povos Indígenas (MPI).
O Brasil é parte da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (Convenção 169) que tutela os povos indígenas e tribais [2] cujo artigo 6º [3] trata do tema. A Convenção 169 tem como destinatários os Estados-Partes, definindo direitos individuais e/ou coletivos que devem ser respeitados e, sobretudo, implementados, segundo diretrizes hermenêuticas nela previstas (artigos 1º (3) e 34 e 35).
A consulta é o instrumento jurídico apto a dar voz às comunidades potencial ou efetivamente impactadas por projetos, empreendimentos e /ou atividades a serem implantados em seus territórios tradicionais. Ela é um conjunto de procedimentos conduzido pelo Estado, conforme os usos e práticas tradicionais dos povos indígenas e comunidades tradicionais, por meio de suas instituições representativas, não havendo uma forma prescrita para a sua realização, pois deve respeitar o modo próprio de cada povo indígena ou comunidade tradicional.
O licenciamento ambiental é uma medida administrativa [4] que potencialmente afeta às comunidades localizadas no entorno do projeto, atividade ou empreendimento sob licenciamento. É importante ressaltar que a consulta prevista na Convenção 169 não se confunde com as audiências públicas previstas nos processos de licenciamento ambiental, pois é um direito especial que não limita o exercício de outros direitos pelos povos indígenas e/ou tribais [5]. Assim, ao se tratar de projetos, empreendimentos ou programas que incidam sobre terras indígenas que estejam submetidos ao processo de licenciamento ambiental deverão ser realizadas a 1) CLPI e a 2) audiência pública própria do licenciamento ambiental. Uma não substitui a outra.
A aplicação do CLPI é feita de forma precária, em geral quando os projetos já se encontram em fase adiantada de planejamento, em especial já estando submetidos ao licenciamento ambiental. Tais procedimentos começam a ser repelidos pelo Judiciário, como se pode ver no RE 13.795/PA, relator o ministro Alexandre de Moraes [6]: “[d]estaque-se, também, que o dever de se ouvir previamente as comunidades indígenas afetadas não é, segundo a finalidade essencial da Constituição Federal, uma escuta meramente simbólica. Muito pelo contrário, essa oitiva deve ser efetiva e eficiente, de modo a possibilitar que os anseios e as necessidades dessa parte da população sejam atendidos com prioridade”. Concluindo o raciocínio, o ministro Alexandre de Moraes acrescenta não caber interpretação literal e restritiva dos artigos constitucionais [7], pois “admitir-se-ia o absurdo de considerar constitucional a realização de empreendimento que, por não estar incluído em terras propriamente indígenas, venha a torná-las inóspitas, direta ou indiretamente, ou prejudicar drasticamente a cultura e a qualidade de vida das populações indígenas que habitam na região”.
Assim, parece claro que a decisão do STF, limpidamente, reconhece que a CLPI é um processo substantivo que deve ser efetivado de forma a propiciar a participação efetiva dos indígenas, ainda na fase de planejamento dos empreendimentos que, de alguma forma, venham a repercutir nas terras indígenas, mesmo que não venham a ser implantados diretamente nas terras indígenas. Veja-se que anterior decisão proferida pelo STJ [8] admitia a realização de estudos preliminares de projetos com repercussão sobre terras indígenas, sem a participação dos povos interessados. Segundo a Corte, “o que não se mostra possível é dar início à execução do empreendimento sem que as comunidades envolvidas se manifestem e componham o processo participativo de tomada de decisão”.
A definição do que se deve entender por estudos preliminares é essencial para delimitar o campo de aplicação da Convenção. É evidente que a existência do Ministério dos Povos Indígenas impõe a participação de tal órgão nos “estudos preliminares” de projetos, empreendimentos e/ou programas que, de alguma forma, possam repercutir sobre terras indígenas [9]. Essa participação, naturalmente, deverá ser feita em conjunto com o povo indígena interessado. É evidente que, quanto mais cedo for o envolvimento dos povos indígenas no projeto, menor a possibilidade de problemas jurídicos, sociais e políticos para a sua implementação. A medida é necessária para que exista segurança jurídica em relação às propostas a serem examinadas e as suas implementações.
Outra questão complexa que deverá ser enfrentada pelo MPI é a relativa ao artigo 15 da Convenção 169 e suas relações com o artigo os §§ 2º e 3º do artigo 231 da Constituição Federal, em especial no que diz respeito à mineração. Como se sabe, o regime constitucional brasileiro separa a propriedade do solo da do subsolo, não havendo o usufruto indígena exclusivo sobre o subsolo. Em caso de mineração em terras indígenas, os direitos aplicáveis são os de superficiário. Entretanto, a Constituição estabelece uma salvaguarda para os direitos indígenas ao determinar a aprovação do Congresso Nacional para a utilização dos recursos hídricos e minerais, ouvidos os povos indígenas. Não resta dúvida que tal oitiva deve ser feita na forma estabelecida pela Convenção 169 e nos documentos internacionais tais com a 1) Declaração das Nações Unidas sobre o Direito dos Povos Indígenas (DDPI) [10] e a 2) Declaração Americana sobre o Direito dos Povos Indígenas [11] (DADPI).
É preciso consignar que há divergências entre as concepções dos Estados, dos povos indígenas e das entidades empresariais sobre a forma como o CLPI deve ser aplicado na prática. Observa-se que o artigo 19 da DDPI estabelece o dever de os Estados consultarem e cooperarem de boa-fé com os povos indígenas com a finalidade de obtenção d o CLPI, “antes de adotar medidas legislativas e administrativos que os afetem”. Esta disposição tem sido considerada como uma “ambiguidade construtiva” [12] que pode ser útil na inexistência de consenso, conforme decidido pela Corte Caribenha de Justiça no caso The Maya Leaders Alliance et al. v. the Attorney General of Belize (2015) CCJ —15 (AJ).
Alguns Estados regularam o processo de CLPI que hoje é considerado um princípio geral de direito internacional. No Peru, a Lei nº 29.785/2011 regulamentou o processo de CLPI estabelecendo as etapas a serem observadas no diálogo intercultural. A decisão a ser tomada no caso concreto está definida no artigo 15 que a atribui ao Estado [13]. Na Bolívia há a Lei nº 222/2012 [14], assim como em outros países da América do Sul. Há uma característica importante na legislação em questão que é o caráter de obrigatoriedade dos resultados da consulta, tanto para o Estado, como para os Povos Indígenas, podendo a sua execução ser buscada perante o Judiciário.
Hoje não se discute mais a necessidade e obrigatoriedade da aplicação da CLPI às atividades extrativistas, muito embora tal consenso não se estenda à definição do próprio CLPI, conforme consta do Padrão de Desempenho 7 da International Finance Corporation [15]:
“12. Não há nenhuma definição de Consentimento Livre, Prévio e Informado (CLPI) aceita universalmente. Para os fins dos Padrões de Desempenho 1, 7 e 8, ‘CLPI’ tem o significado descrito neste parágrafo. O CLPI toma por base e amplia o processo de CIP descrito no Padrão de Desempenho 1 e será criado por meio de negociação em boa-fé entre o cliente e as Comunidades Afetadas de Povos Indígenas. O cliente documentará: 1) o processo mutuamente acordado entre o cliente e as Comunidades Afetadas de Povos Indígenas e 2) as evidências de acordo entre as partes como resultado das negociações. O CLPI não requer necessariamente unanimidade e pode ser obtido mesmo se indivíduos ou grupos dentro da comunidade discordarem explicitamente”.
Os Princípios do Equador [PE — julho — 2020] [16], instituído pelas principais instituições financeiras internacionais [17], estabelecem distinções para Consentimento Livre, Prévio e Informado (FPIC) e consulta Informada, como se segue:
“Consentimento Livre, Prévio e Informado (FPIC, na sigla em inglês) Não há uma definição universalmente aceita de FPIC. Com base em negociações de boa-fé entre o cliente e as comunidades indígenas afetadas, o FPIC se baseia no processo de Consulta Informada e Participação e o expande, garante uma participação significativa dos Povos Indígenas no processo de tomada de decisão e concentra-se na realização de acordos. O FPIC não requer unanimidade, não confere direitos de veto a indivíduos ou subgrupos, e não requer que o cliente concorde com questões sobre as quais não tem controle.
Consulta Informada e Participação é uma intensa troca de percepções e informações e um processo de consulta organizado e repetido que leva o cliente a incorporar, ao processo de tomada de decisão, os pontos de vista das Comunidades Afetadas sobre questões que as afetam diretamente (tais como medidas mitigatórias propostas, o compartilhamento de benefícios e oportunidades do empreendimento, e questões ligadas à implementação)”.
O Green Climate Fund, mecanismo associado ao Acordo de Paris [18] , em sua política para os povos indígenas, ao tratar das consultas, define o conceito de consulta significativa assim descrito:
“‘Consulta significativa'” refere-se a um processo bidirecional que: a) começa no início do processo de planejamento do projeto para reunir visões iniciais sobre a proposta do projeto e informar o seu desenho; b) incentiva o feedback das partes interessadas, particularmente como uma forma de informar o desenho do projeto e engajamento das partes interessadas na identificação e mitigação de riscos e impactos ambientais e sociais; c) continua em uma base contínua, como riscos e os impactos surgem; d) se baseia na prévia divulgação e disseminação de informações relevantes, informações transparentes, objetivas, significativas e de fácil acesso em um prazo que permite consultas significativas com as partes interessadas em um formato culturalmente apropriado, no (s) idioma (s) local (is) relevante (s) e é compreensível para as partes interessadas; e) considera e responde ao feedback; f) apoia o engajamento ativo e inclusivo com as partes afetadas pelo projeto; g) está livre de manipulação externa, interferência, coerção, discriminação e intimidação; e h) seja documentado e divulgado”.
Apesar das divergências e discussões acima, fato é que o modelo que vem sendo adotado no Brasil é precário do ponto de vista jurídico e pouco eficiente no que se refere à tutela dos direitos dos povos indígenas. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), nos processos de licenciamento ambiental, apresenta o chamado Estudo de Componente Indígena que, com todo respeito, é um instrumento precário que, em minha opinião, não se presta para atender o disposto na Convenção 169 da OIT. A matéria é regida por normas jurídicas de baixa hierarquia, tais como a Portaria Interministerial nº 60/2015 e a Instrução Normativa nº 02/2015 (Funai) que sequer mencionam a Convenção 169. Aliás, diante dos termos da Convenção 169 é muito discutível que um processo de licenciamento ambiental possa prosseguir sem a realização plena da CLPI, como parece indicar a Portaria Interministerial nº 60/2015 [19]. Aqui não se trata de criar um “nível” para o licenciamento ambiental, mas pura e simplesmente, de tornar eficaz os direitos dos povos indígenas e tribais reconhecidos pelo Brasil e pela comunidade internacional.
É necessário, também, que os protocolos de consulta elaborados pelos indígenas sejam reconhecidos oficialmente como instrumento válido para as consultas.
Os temas são relevantes e devem ser enfrentados com a necessária urgência pelo MPI e pela Funai, de forma que se estabeleçam quadros normativos compatíveis com a matéria e, sobretudo, que sejam capazes de assegurar os direitos dos povos indígenas. O modelo a ser adotado deverá, necessariamente, levar em conta os acertos e erros que a experiência internacional aponta.
[1] A nova estrutura administrativa do Ministério do Meio Ambiente. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-jan-04/paulo-bessa-nova-estrutura-ministerio-meio-ambiente acesso em 6/1/2023.
[2] Artigo 1º. Disponível em https://www.oas.org/dil/port/1989%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20Povos%20Ind%C3%ADgenas%20e%20Tribais%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20OIT%20n%20%C2%BA%20169.pdf. acesso em 6/1/2023.
[3] Artigo 6º.
[4] Lei Complementar nº 140/2011. Artigo 2º.
[5] Artigo 8º.
[6] Disponível em https://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/documentos/2022/re-1379751-belo-monte-consulta-previa-livre-e-informada.pdf. acesso em 6/1/2023
[7] Artigos 231 e 232.
[8] AgRg na SLS 1.745 / PA. Relator: ministro Felix Fischer. Corte Especial. DJe 26/6/2013
[9] Decreto nº 11.355/2023. Artigo 1º… II.
[10] Artigos 10, 11, 19, 28, 29 e 32 (2). Disponível em < https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Declaracao_das_Nacoes_Unidas_sobre_os_Direitos_dos_Povos_Indigenas.pdf > acesso aos 4/1/2023.
[11] Artigo XXIII , XXVIII e XXIX. Disponível em https://www.oas.org/en/sare/documents/DecAmIND_POR.pdf. Acesso em 4/1/2023
[12] Tenth anniversary of the United Nations Declaration on the Rights of Indigenous Peoples: measures taken to implement the Declaration. Disponível em < https://www.un.org/development/desa/indigenouspeoples/wp-content/uploads/sites/19/2016/08/Tenth-Anniversary-of-the-United-Nations-Declaration-on-the-Rights-of-Indigenous-Peoples-1.pdf > acesso em 7/1/2023.
[13] Artículo 15. Disponível em < https://iuslatin.pe/wp-content/uploads/2020/07/LEY-DEL-DERECHO-A-LA-CONSULTA-PREVIA-A-LOS-PUEBLOS-INDIGENAS-U-ORIGINARIOS-RECONOCIDO-EN-EL-CONVENIO-169-DE-LA-ORGANIZACION-INTERNACIONAL-DEL-TRABAJO-OIT-5-1.pdf > acesso em 7/1/2023
[14] Disponível em < https://www.ilo.org/dyn/natlex/docs/ELECTRONIC/90419/104219/F1680548618/BOL90419.pdf > acesso em 7/1/2023
[15] Disponível em < https://www.ifc.org/wps/wcm/connect/e81de1f8-256f-4e4f-989c-68ded922e434/PS7_Portuguese_2012.pdf?MOD=AJPERES&CVID=jFcfzSI > acesso em 6/1/2023
[16] Disponível em < https://equator-principles.com/app/uploads/The-Equator-Principles_EP4_July2020.pdf > acesso em 6/1/2023
[17] 137 instituições financeiras em 38 países. Bancos brasileiros por ordem de adesão: Itaú Unibanco S.A, Caixa Econômica Federal, BTG Pactual, Banco Votorantim S.A., Banco do Brasil, Banco Bradesco, S.A.
[18] Disponível em < https://www.greenclimate.fund/about > acesso em 5/1/2023
[19] Artigo 5º
*Paulo de Bessa Antunes é detentor da edição 2022 do Prêmio Elisabeth Haub de Direito Ambiental e Diplomacia, professor associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio) e presidente da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros.
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 17/01/2023
Edição: Ana Alves Alencar
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