Por José Eduardo W de A Cavalcanti *
I. CONTEXTO
Em 6 de julho de 2018, o Governo Federal, através da Medida Provisória 844/18 entregou à Nação a atualização do marco legal do saneamento básico por alteração da Lei Nº 9984 de 17 de julho de 2000, em que são dadas nossas competências à Agência Nacional de Águas para editar normas de referência nacionais sobre o serviço de saneamento, são modificadas a Lei nº 10.768, de 19 de novembro de 2003 para alterar as atribuições do cargo de Especialista em Recursos Hídricos, e a Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007 (Lei do Saneamento) para aprimorar as condições estruturais do saneamento básico no País e aumentar os investimentos através da iniciativa privada em busca da universalização dos serviços no setor (ver detalhes das mudanças no quadro ao lado):
De acordo com o Plano Nacional de Saneamento Básico – PLANSAB -o setor terá que investir uma média anual, a valores presentes de 15 bilhões em abastecimento de água e esgotamento sanitário nos próximos 20 anos. Entretanto esta média anual não tem sido alcançada nos últimos anos devido principalmente a baixa capacidade de investimento do setor público que tem a responsabilidade de operar cerca de 90% do setor.
As principais modificações propostas na MP 844/2018 são direcionadas a facilitar a participação do setor privado no esforço de realizar os investimento necessários para alcançar a meta de universalização dos serviços sendo as seguintes: (i) o fortalecimento e uniformização da regulação do setor de saneamento através de diretrizes e melhores práticas a partir da ANA; (ii) coordenação da ação de órgãos federais: criação do Comitê Interministerial de Saneamento Básico; (iii) somar esforços públicos e privados para investimentos no setor atraindo mais investimentos privados.
Entretanto, a promulgação desta Medida Provisória por parte do Governo federal sem aparentemente ter sido objeto de muita discussão junto à sociedade civil tem suscitado alguns questionamentos por parte das principais associações técnicas que representam o setor, dente as quais a AESB, ASSEMAE, ABAR e a ABES.
Estas entidades, em comum, condenam o açodamento em que se revestiu a promulgação da MP por parte do Governo Federal sem sequer ter havido ampla discussão com representantes da sociedade civil do setor do saneamento e o fato de que a atualização do Marco Regulatório do Saneamento ter sido feito por Medida Provisória e não por Projeto de Lei e que a MP tal como promulgada irá acarretar um retrocesso adiando mais ainda a universalização do saneamento.
Em 31 de julho de 2018 estas entidades divulgaram um manifesto conjunto alegando que a MP seria inconstitucional podendo “desestruturar totalmente o setor, pois afeta a titularidade dos municípios, o subsídio cruzado e a lógica dos ganhos de escala, prejudicando os municípios mais pobres”, gerando “um grande risco para a população de aumento das tarifas de água e esgoto em todo Brasil”. Ao final, a nota exige do Poder Público que a “revisão do Marco Regulatório do Saneamento seja amplamente discutida pela sociedade e levada à análise do Congresso Brasileiro, como demanda o rito democrático e a Constituição Brasileira”.
O presente artigo procura concatenar as ideias subjacentes na MP na esperança de facilitar o debate antes que a mesma seja submetida ao Congresso Nacional ou mesmo retirada de pauta pelo Governo Federal cedendo à pressões.
Os principais questionamentos tiveram origem na alteração dos seguintes tópicos dessa Medida Provisória:
a) Ampliação do papel da ANA- Agência Nacional de Águas
Este tópico é objeto do Art. 5º da MP o qual dá nova redação ao Artigo 4º-A da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007 que reza:
“Art. 4º-A. A ANA instituirá as normas de referência nacionais para a regulação da prestação de serviços públicos de saneamento básico por seus titulares e suas entidades reguladoras e fiscalizadoras responsáveis, observadas as diretrizes para a função de regulação estabelecidas na Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007.
§ 1º À ANA caberá estabelecer, entre outras, normas de referência nacionais sobre:
I – os padrões de qualidade e eficiência na prestação, na manutenção e na operação dos sistemas de saneamento básico;
II – a regulação tarifária dos serviços públicos de saneamento básico, com vistas a promover a prestação dos serviços adequada, o uso racional de recursos naturais e o equilíbrio econômico-financeiro das atividades;
III – a padronização dos instrumentos negociais de prestação de serviços públicos de saneamento básico, firmados entre o titular do serviço público e o delegatário, os quais contemplarão metas de qualidade, eficiência e ampliação da cobertura dos serviços, além de especificar a matriz de riscos e os mecanismos de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro das atividades;
IV – os critérios para a contabilidade regulatória decorrente da prestação de serviços de saneamento básico; e
V – a redução progressiva da perda de água.
§ 2º As normas de referência nacionais para a regulação da prestação de serviços públicos de saneamento básico contemplarão os componentes a que se refere o inciso I do caput do art. 2º da Lei nº 11.445, de 2007, e serão instituídas pela ANA de forma progressiva.
§ 3º As normas de referência nacionais para a regulação do setor de saneamento básico deverão:
I – estimular a livre concorrência, a competitividade, a eficiência e a sustentabilidade econômica na prestação dos serviços;
II – estimular a cooperação entre os entes federativos com vistas à prestação, à contratação e à regulação dos serviços de forma adequada e eficiente, de forma a buscar a universalização dos serviços e a modicidade tarifária;
III – promover a prestação adequada dos serviços de saneamento básico com atendimento pleno aos usuários, observados os princípios da regularidade, da continuidade, da eficiência, da segurança, da atualidade, da generalidade, da cortesia, da modicidade tarifária, da utilização racional dos recursos hídricos e da universalização dos serviços públicos de saneamento básico; e
IV – possibilitar a adoção de métodos, técnicas e processos adequados às peculiaridades locais e regionais.
§ 4º A ANA disponibilizará, em caráter voluntário e sujeito à concordância entre as partes, ação mediadora e arbitral aos Municípios, aos Estados e ao Distrito Federal, nos conflitos entre estes ou entre eles e as suas agências reguladoras e prestadoras de serviços de saneamento básico.
§ 5º A ANA avaliará o impacto regulatório e o cumprimento das normas de referência de que trata o § 1º pelos órgãos e pelas entidades responsáveis pela regulação e pela fiscalização dos serviços públicos.
§ 6º No exercício das competências a que se refere este artigo, a ANA zelará pela uniformidade regulatória do setor de saneamento básico e a segurança jurídica na prestação e na regulação dos serviços, observado o disposto no inciso IV do § 3º.
§ 7º Para fins do disposto no inciso II do § 1º, as normas de referência de regulação tarifária estabelecerão o compartilhamento dos ganhos de produtividade com os usuários dos serviços de saneamento básico e, quando couber, os mecanismos de subsídios para as populações de baixa renda, para possibilitar a universalização dos serviços, observado o disposto no art. 31 da Lei nº 11.445, de 2007.
§ 8º Para fins do disposto no inciso III do § 1º, as normas de referência regulatórias estabelecerão parâmetros e condições para investimentos que permitam garantir a manutenção dos níveis de serviços desejados durante a vigência dos contratos.
§ 9º Caberá à ANA elaborar estudos técnicos para o desenvolvimento das melhores práticas regulatórias para os serviços de saneamento básico, além de guias e manuais para subsidiar o desenvolvimento das referidas práticas.
§ 10. Caberá à ANA promover a capacitação de recursos humanos para a regulação adequada e eficiente do setor de saneamento básico.
§ 11. A ANA contribuirá para a articulação entre o Plano Nacional de Saneamento Básico, o Plano Nacional de Resíduos Sólidos e a Política Nacional de Recursos Hídricos.” (NR).
A ASSEMAE, não concorda que a ANA assuma as responsabilidades do Ministério das Cidades naquilo que diz respeito à instituição de normas de referências nacionais para regulação do saneamento básico. Além disso, quando se retira a limitação da atuação dos reguladores no âmbito do Estado, está se criando, na verdade, uma agência nacional por meio da ANA. Além disso, alerta que “a proposta desconsidera o princípio da universalização do saneamento, podendo ser entendida como um dispositivo que privilegia apenas as empresas privadas” e que a “mudança na lei causa a insegurança jurídica do setor, o que pode ter consequências negativas por um longo período, ou seja, representa um retrocesso naquilo que já foi conquistado”.
Para a ABES, o endereço do saneamento deverá continuar “sendo o Ministério das Cidades – Secretaria de Saneamento”, devendo a ANA atuar como “uma agência de apoio técnico”.
A ABAR, por sua vez, se posiciona no sentido de que “embora seu caráter seja referencial, a MP impõe a atuação da regulação pela ANA, uma vez que vincula o repasse de recursos da União à aderência às normas editadas pela Agência ”e que “considerando que o setor depende de recursos federais, verifica-se que a ANA se tornará a agência setorial, o que enfraquecerá a autonomia das entidades reguladoras subnacionais, que se tornarão, por conseguinte, meras executoras das decisões da ANA”. Acrescenta que “no que tange ao aspecto da competência regulatória na forma apresentada, o texto é inconstitucional ao adentrar na competência das agências reguladoras subnacionais.”
b) Titularidade
Este tópico é objeto do Art. 5º da MP o qual dá nova redação ao Artigo 8º-A da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007 que reza:
“Art. 8º-A. Os Municípios e o Distrito Federal são os titulares dos serviços públicos de saneamento básico.
§ 1º O exercício da titularidade dos serviços de saneamento básico pelos Municípios e pelo Distrito Federal fica restrito às suas respectivas áreas geográficas.
§ 2º Na hipótese de interesse comum, o exercício da titularidade dos serviços de saneamento básico será realizado por meio:
I – de colegiado interfederativo formado a partir da instituição de região metropolitana, aglomeração urbana ou microrregião; ou
II – de instrumentos de gestão associada, por meio de consórcios públicos ou de convênios de cooperação, nos termos estabelecidos no art. 241 da Constituição.
§ 3º Na hipótese prevista no inciso I do § 2º, o exercício da titularidade dos serviços públicos de saneamento básico observará o disposto na Lei nº 13.089, de 12 de janeiro de 2015.
§ 4º O exercício da titularidade na forma prevista no § 2º poderá ter como objeto a prestação conjunta de uma ou mais atividades previstas no inciso I do caput do art. 2º.
§ 5º Os serviços públicos de saneamento básico nas regiões metropolitanas, nas aglomerações urbanas e nas microrregiões serão fiscalizados e regulados por entidade reguladora estadual, distrital, regional ou intermunicipal, que observará os princípios estabelecidos no art. 21.” (NR).
A visão da ASSEMAE com relação a este tópico é que: (i) a proposta coloca em risco a titularidade municipal dos serviços municipais de saneamento, e os impactos negativos disso são extremamente prejudiciais. Os municípios que captam água ou lançam esgotos fora de sua área territorial perderão a titularidade; e (ii). a falta de definição sobre o que é interesse comum pode abrir precedente para que os municípios percam a titularidade e tenham que admitir a participação de colegiados. Além disso, nos casos de colegiado interfederativo, é preciso deixar claro o poder de votos de cada ente participante.
Já a ABES considera inadequado o trecho sobre as regiões metropolitanas além do que este artigo “não deixa claro a questão do interesse comum”. Propõe, através de emenda parlamentar, alterar o texto desse Artigo (regiões metropolitanas) e incluir texto sobre indenização.
c) Continuidade dos contratos entre empresas estaduais e municípios mesmo com a alienação do controle acionário da companhia estadual.
Este tópico é objeto do Art. 5º da MP o qual dá nova redação ao Artigo 8º-B da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007 que reza:
“Art. 8º-B. Excetuam-se da hipótese prevista no § 6º do art. 13 da Lei nº 11.107, de 2005, os casos de alienação do controle acionário de companhia estatal prestadora de serviços públicos de saneamento básico.
§ 1º Anteriormente à alienação de controle acionário a que se refere o caput, a ser realizada por meio de licitação na forma prevista na Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, e na Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004, o controlador comunicará formalmente a sua decisão aos titulares dos serviços de saneamento atendidos pela companhia.
§ 2º A comunicação formal a que se refere o § 1º deverá:
I – contemplar os estudos de viabilidade e a minuta do edital de licitação e os seus anexos, os quais poderão estabelecer novas obrigações, escopo, prazos e metas de atendimento para a prestação dos serviços de saneamento, a serem observados pela companhia após a alienação do seu controle acionário; e
II – dispor sobre as condições e o prazo para a anuência, pelos titulares dos serviços de saneamento, a respeito da continuidade dos contratos de programa vigentes.
§ 3º A anuência prevista no inciso II do § 2º será formalizada por meio de manifestação do Poder Executivo, que precederá à alienação de controle da companhia.
§ 4º A anuência quanto à continuidade dos contratos implicará a adesão automática às novas obrigações, ao escopo, aos prazos e às metas de atendimento para a prestação dos serviços de saneamento, se estabelecidas, as quais prevalecerão sobre aquelas constantes dos contratos de programa vigentes.
§ 5º Os instrumentos de gestão associada poderão ser oportunamente adequados, no que couber, às novas obrigações, ao escopo, aos prazos e às metas de atendimento para a prestação de serviços de saneamento, a serem observadas pela companhia posteriormente à alienação de seu controle.
§ 6º Os Municípios que decidirem pela não continuidade dos contratos de programa assumirão a prestação dos serviços públicos de saneamento básico e procederão ao pagamento de indenizações devidas em razão de investimentos realizados e ainda não amortizados ou depreciados, na forma prevista na Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995.
§ 7º O disposto neste artigo aplica-se, no que couber, às hipóteses de delegação ou de subdelegação de serviços à iniciativa privada.” (NR).
A visão da ASSEMAE com relação a este tópico é de que “este fato fragiliza a autonomia e titularidade dos municípios, que não poderão decidir se querem ou não continuar delegando os serviços”.
Já a ABES propõe a supressão desse Artigo 8º-B, mediante emenda parlamentar,
d) Consulta prévia a empresas públicas e privadas interessadas pela concessão.
Este tópico é objeto do Art. 5º da MP o qual dá nova redação ao Artigo 10º-A da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007 que reza:
“Art. 10-A. Nas hipóteses legais de dispensa de licitação, anteriormente à celebração de contrato de programa, previsto na Lei nº 11.107, de 2005, o titular dos serviços publicará edital de chamamento público com vistas a angariar a proposta de manifestação de interesse mais eficiente e vantajosa para a prestação descentralizada dos serviços públicos de saneamento.
§ 1º O edital de chamamento público a que se refere o caput estabelecerá prazo mínimo de trinta dias para apresentação das propostas, que conterão, entre outros:
I – o objeto e o prazo de vigência do contrato, compatível com a amortização dos investimentos realizados, inclusive quanto a eventual prorrogação;
II – a forma de remuneração e de atualização dos valores contratuais;
III – as tarifas a serem praticadas e a metodologia de reajuste, conforme as diretrizes regulatórias do setor de saneamento básico;
IV – o plano e o cronograma de investimentos a serem realizados para a prestação adequada dos serviços públicos de saneamento básico;
V – os índices de qualidade de serviços e as metas parciais e finais a serem atingidas, de acordo com o plano e o cronograma propostos; e
VI – o valor estimado do contrato de programa ou do contrato.
§ 2º O proponente poderá adicionar à sua proposta de tarifa a ser praticada, conforme previsto no edital, percentual mínimo de adicional tarifário que será destinado à conta estadual para a promoção de programas de saneamento básico, que priorizará o financiamento de investimentos em saneamento básico nos Municípios que apresentarem os menores índices de cobertura, de acordo com os parâmetros estabelecidos em lei estadual.
§ 3º Na hipótese de, no mínimo, um prestador de serviço além do interessado em celebrar contrato de programa demonstrar interesse no chamamento previsto no caput, será instituído processo licitatório, nos termos previstos na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, na Lei nº 8.987, de 1995, e na Lei nº 11.079, de 2004.
§ 4º Na hipótese de não haver o número de interessados previsto no § 3º no chamamento público, o titular poderá proceder à assinatura de contrato de programa com dispensa de licitação, conforme o disposto no inciso XXVI do caput do art. 24 da Lei nº 8.666, de 1993.
§ 5º O chamamento público previsto no caput não será exigível nas seguintes hipóteses:
I – prorrogação única do prazo de vigência dos contratos de programa pelo prazo de até dois anos; e
II – celebração ou aditamento de contratos de programa vigentes, no contexto de alienação do controle acionário de companhia estatal prestadora de serviços públicos de saneamento básico ou de delegação de seus serviços à iniciativa privada.” (NR).
O Artigo 10-A é de todos o que causou maior contestação e indignação por parte das entidades do setor:
Para a ASSEMAE, “os municípios menos rentáveis ficarão desassistidos, já que a iniciativa privada deve se interessar apenas pelos municípios superavitários, enquanto as companhias estaduais e municipais terão de ser responsáveis pelas regiões mais problemáticas e que a União está interferindo na organização e autonomia dos municípios, ao querer impor aos titulares a forma de prestação dos serviços, passando por cima da Constituição, que prevê que o titular dos serviços tem três opções para prestar os serviços públicos (direta, indireta e por gestão associada)”.
Para a ABES, “esse artigo aumenta ainda mais a seleção contrária ao interesse público: ao abrir consulta pública, induz as operadoras públicas e privadas a competir apenas pelos municípios superavitários, deixando os municípios mais pobres ao próprio encargo e dos estados. Dessa maneira, dificulta a prestação do serviço de forma regionalizada e, ao inviabilizar a prática de subsídios cruzados, agrava as diferenças na qualidade e na cobertura dos serviços, com prejuízo para a população mais carente”.
Em sequência acrescenta: “os resultados serão catastróficos, pois este artigo busca benefícios locais em detrimento da política pública já considerada na Lei 11.445/07”. E mais, acrescenta: “para os municípios superavitários, após o chamamento público, haverá invariavelmente interessados e, desta forma, haverá licitação pública. Como há concorrência, o resultado é a otimização do contrato programa local. Todo o superávit que seria gerado na hipótese de contrato de programa tende a ser consumido pelo processo concorrencial da licitação, e desta maneira não subsidiarão os municípios deficitários. Com a aplicação desse processo nos municípios que atualmente são doadores, extingue-se todos os subsídios entre os municípios”.
Prosseguindo, a ABES enfatiza: “para os municípios deficitários, por sua vez, não haverá interessados dos agentes, podendo inclusive não haver nem mesmo interesse por contrato programa. O município fica nas mãos do poder público. A fonte de financiamento, nesse caso, deverá ser fiscal.”
A ABES também propõe impetrar uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) uma vez que a MP não seria urgente e quebraria o pacto federativo com a questão da ANA. Com relação ao 10-A, propõe supressão mediante emenda parlamentar.
Para a AESBE, “a medida provisória chega ao absurdo de obrigar os Municípios a perguntarem previamente ao Setor Privado se tem interesse na Concessão. Se tiver, haverá licitação. Se não tiver, será operada pelos Estados” e que a MP “afetará os municípios mais pobres, que serão excluídos dos investimentos em abastecimento de água e esgotamento sanitário, além de provocar um aumento de tarifa decorrente do fim do subsídio cruzado”.
e) Substituição do PLANSAB por um diagnóstico e estudo de comprovação da viabilidade técnica e econômico-financeira
Este tópico é objeto do Art. 5º da MP o qual dá nova redação ao Artigo 11º da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007 que reza:
“Art. 11. ……………………………………………….
………………………
……………………………………………………………………………………………
II – a existência de estudo que comprove a viabilidade técnica e econômico-financeira da prestação dos serviços, nos termos estabelecidos no respectivo plano de saneamento básico;
…………………………………………………………………………………………….
§ 5º Na hipótese de não existência de plano de saneamento básico aprovado nos termos estabelecidos no § 1º do art. 19, as condições de validade previstas nos incisos I e II do caput poderão ser supridas pela aprovação pelo titular de estudo que fundamente a contratação, com o diagnóstico e a comprovação da viabilidade técnica e econômico-financeira da prestação dos serviços, observado o disposto no § 2º.” (NR).
Na visão da ASSEMAE, “a inexistência da exigibilidade dos planos municipais de saneamento representa uma ameaça aos serviços de saneamento. Os planos são essenciais para a gestão adequada do setor, não podendo ser, simplesmente, desconsiderados”. Questiona: “ora, se se fará um estudo, por que não fazer o PMSB?”
f) Subdelegação total ou parcial do objeto contratado
Este tópico é objeto do Art. 5º da MP o qual dá nova redação ao Artigo 11º-A da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007 que reza:
“Art. 11-A. Na hipótese de prestação dos serviços públicos de saneamento básico por meio de contrato de programa, o prestador de serviços poderá, desde que haja autorização expressa do titular dos serviços, por meio de ato do Poder Executivo, subdelegar o objeto contratado total ou parcialmente.
§ 1º A subdelegação fica condicionada à comprovação técnica, por parte do prestador de serviços, do benefício em termos de qualidade dos serviços públicos de saneamento básico.
§ 2º Os contratos de subdelegação disporão sobre os limites da sub-rogação de direitos e obrigações do prestador de serviços pelo subdelegatário e observarão, no que couber, o disposto no § 2º do art. 11 e serão precedidos de procedimento licitatório na forma prevista na Lei nº 8.666, de 1993, na Lei nº 8.987, de 1995, e na Lei nº 11.079, de 2004.
c 3º O contrato de subdelegação poderá ter por objeto serviços públicos de saneamento básico que sejam objeto de um ou mais contratos.” (NR).
A visão da ASSEMAE é de que este artigo “atinge a democracia participativa representada pelas Câmaras de Vereadores, dando poder absoluto ao chefe do executivo para decidir a subdelegação dos serviços de saneamento básico.”
II. ANALISE DAS REFORMULAÇÕES PROPOSTAS PARA O MARCO REGULATÓRIO
A seguir, passaremos a discorrer sobre as principais reformulações que suscitaram discórdia e que são objetos a Medida Provisória 844/18. De início, deve-se enfatizar que a esta Medida Provisória, que traz um novo Marco Regulatório para o saneamento, é uma proposição do Governo Federal na tentativa de criar condições para atrair investimentos da capitais privados de modo a tornar possível, em conjunto com os escassos recursos do setor público, a viabilização da universalização do saneamento até 2033, meta do PLANSAB- Plano Nacional de Saneamento.
A importância desta complementaridade, na visão do Governo Federal, seria possível uma vez que a MP propiciará mais uniformidade às normas e maior segurança jurídica para os investimentos privados.
A situação da falta de saneamento básico é preocupante no Brasil. Dados atuais informam que no Brasil mais de 35 milhões de habitantes não tem acesso à água potável e que cerca de 100 milhões de brasileiros não dispões de serviços de coleta de esgotos sendo que do que é coletado somente 45% é tratado.
Recente estudo da CNI dá conta que a universalização nos próximos 15 anos requererá ampliar em 62% o volume de investimentos em saneamento dos atuais R$ 13,6 bilhões anuais para cerca de R$ 21.6 bilhões anuais.
a) Elevação da competência da ANA para editar normas a nível federal para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento em detrimento da autonomia das agências reguladoras subnacionais;
Esta é uma das medidas mais polêmicas, uma vez que a MP dá competência à Agência Nacional de Águas (ANA), atualmente responsável apenas pela regulação do acesso e uso dos recursos hídricos federais, para instituir as “diretrizes nacionais para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico”, incluindo as atividades de abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana, manejo de resíduos sólidos e drenagem.
A fragilidade da atuação praticada por cerca de 50 agências reguladoras de saneamento no país (23 estaduais, 24 municipais e 3 consórcios públicos) provoca uma fragmentação regulatória causando insegurança aos investidores pois muitas destas agências não possuem capacitação técnica e independência para, por exemplo, calcular tarifas e manter o equilíbrio econômico financeiro da concessão. Cada uma atua com critérios e padrões de qualidade diferentes.
Relatório anual da ABAR revela um baixo atendimento dos temas regulatórios previstos na Lei 11.445/2007 pelas agências reguladoras. Dos 41 temas regulatórios previstos apenas a ARSESP atendeu a 23, sendo que as demais não atenderam sequer a metade dos temas.
A ampliação do papel da ANA definido pela MP obrigará a agência federal a se adequar tal como opera a ANEEL – aliás a única agencia reguladora do sistema elétrico – para exercer a função de propositora de diretrizes no âmbito nacional sobre normas de referência dos padrões de qualidade, bem como sobre padronização dos critérios de negociação entre o Poder Concedente e empresas concessionárias sem que isto signifique substituir as competências, naquilo em que couber, dos atuais órgãos reguladores, sejam estaduais ou municipais.
Desta forma, de acordo com a MP, a ANA operará como agência setorial sendo a responsável por autorizar o repasse dos recursos da União destinados ao saneamento. A criação do Comitê Interministerial de Saneamento Básico, também previsto na MP, objetiva garantir maior coordenação das ações do Governo Federal na aplicação racional dos recursos, assim como na implementação da política federal do setor.
b) Consulta pública obrigatória por parte dos municípios por ocasião da renovação dos contratos com as companhias estaduais de saneamento.
Em outra medida polêmica, a MP determina que o município, titular da concessão, abra licitação para selecionar a quem conceder o serviço: à companhia estadual de saneamento ou a uma companhia privada.
Esta prática já ocorre atualmente segundo a qual as prefeituras podem estabelecer contratos de programa (parceria público-público) com as empresas de saneamento sem precisar de licitação ou recorrer à consulta pública para contratar uma empresa privada o que nem sempre é fácil dadas às incertezas jurídicas decorrentes da falta de isonomia competitiva e de clareza das normas em vigor dificultando a formatação das parcerias público-privadas. Muitos destes contratos de programa são renovados automaticamente sem que haja revisão de metas, inclusive tarifárias.
A diferença do novo modelo é que a MP disponibiliza meios para que os concorrentes (público e privado) partam para a concorrência em igualdade de condições o que facilitará aos municípios atrair investimentos de cunho privado.
Hoje, segundo a ABCON – associação que congrega as concessionárias privadas de serviços públicos de água e esgotos – os prestadores privados respondem por apenas 7% investidos em 322 municípios em suas diversas formas de contrato (concessões plenas, parciais, PPPs e contratos de gestão). Já as companhias estaduais são responsáveis por 70% e os prestadores locais públicos pelos restantes 23% do mercado.
O investimento total contratado pelas operações com a iniciativa privada – correspondente a 20% do total investido no setor – é de cerca de 35 bilhões de reais dos quais aproximadamente 13 bilhões de reais estão sendo previstos para ser aplicados até 2020. A população atendida é de cerca de 31 milhões de pessoas sendo cerca de 20 milhões são beneficiados por serviços de água e 17 milhões por serviços de esgotos.
A principal crítica patrocinada pelas entidades representativas do setor é que de acordo com o que estabelece o Artigo 10º-A da MP a iniciativa privada tenderia a privilegiar apenas municípios mais prósperos deixando para as estatais os menores e menos rentáveis quebrando a lógica do subsídio cruzado.
Todavia, ainda, segundo a ABCON, dos municípios operados atualmente pela iniciativa privada mais da metade deles (58%) são cidades de até 20 mil habitantes!
Entretanto, em conformidade com o art. 5º, na parte em que inclui o art. 10-A na Lei nº 11.445, de 2007, esta MP entrará em vigor três anos após a data de sua publicação Este fato é levantado pelas principais entidades do setor em seu questionamento com relação à urgência deste texto a ponto de ter sido promulgado como Medida Provisória.
III. NOSSO POSICIONAMENTO
Diante das críticas e ressalvas que emergiram logo após sua promulgação é certo que, malgrado seus avanços a Medida Provisória Nº 844/18 deverá obrigatoriamente sofrer ajustes para se adequar à realidade do saneamento básico em nosso país. E a oportunidade para as discussões estará nos debates sobre esta matéria no Congresso Nacional contanto para tanto com os subsídios ofertados pela comunidade técnica envolvendo todos os atores representando os vários segmentos.
De modo a contribuir para o debate consideramos que os ajustes necessários deverão contemplar os seguintes tópicos:
a) Em caso de mudança de concessionária o ressarcimento dos ativos não depreciados a serem pagos para a antiga concessionária será de responsabilidade do município.
Outra medida polêmica da MP, pois sua adoção certamente traria riscos ao antigo concessionário, quer ele seja público ou privado, em não receber pelos ativos ainda não amortizados, uma vez que é reconhecida a incapacidade dos municípios brasileiros em suportar este tipo de ônus transformando-os muitas vezes em precatórios com longas filas com muitos anos de espera.
A solução mais justa seria o acerto entre as próprias concessionárias no momento da troca em que a empresa que entra ressarce àquela que sai naquilo que investiu, sob supervisão da agência reguladora local. (alteração do §6 do Artigo 8º-B da MP).
b) Titularidade no caso de municípios conurbados em regiões metropolitanas, aglomeração urbana ou microrregião.
De acordo com o Art. 8º-A da MP os municípios são os titulares dos serviços públicos de saneamento básico desde que limitados às suas respectivas áreas geográficas.
Entretanto, no caso de municípios conturbados em regiões metropolitanas, aglomeração urbana ou microrregião a MP reza que o exercício da titularidade dos serviços de saneamento básico será realizado por meio de colegiado inter federativo (região metropolitana) ou seja o exercício da titularidade dos serviços públicos de saneamento básico observará o disposto na Lei nº 13.089, de 12 de janeiro de 2015.( Estatuto da Metrópole).
Outra hipótese de interesse comum seria estímulos à gestão associada (consórcios públicos e convênios de cooperação). Neste caso, o projeto estimularia que os municípios se unam na prestação de alguns ou de todos os serviços de saneamento necessários.
A MP reza ainda que nestas hipóteses os serviços públicos de saneamento básico serão fiscalizados e regulados por entidade reguladora estadual, distrital, regional ou intermunicipal.
Nesta situação existem divergências no campo jurídico quanto à competência: Seria ela exclusivamente estadual ou compartilhada entre estado e municípios? Este assunto deverá ser melhor debatido no Congresso.
c) A lógica do subsídio cruzado
Primeiramente deve-se considerar que o saneamento é uma atividade que gera externalidades positivas para a sociedade e, por essa razão, deve ser objeto de tratamento diferenciado.
Estudo da Fundação Getúlio Vargas identifica uma série de externalidades positivas principalmente no âmbito da saúde pública como a redução do número de internações e a redução da mortalidade em função de infecções gastrointestinais propiciando também a redução das desigualdades regionais visto que a carência de saneamento e suas consequências são mais intensas nas regiões Norte e Nordeste.
O tratamento diferenciado deve ser manifestado notadamente através de redução dos impostos incidentes no setor (PIS- COFINS) que atualmente são altos e crescentes superando os subsídios que não cresceram na mesma proporção.
Quanto aos subsídios cruzados sua lógica deverá ser revista a fim de se viabilizar o atendimento de forma sustentável aos municípios deficitários e ao mesmo tempo não servir de entrave ao surgimento de novos entrantes para o setor oriundos da iniciativa privada.
Esta discussão, sem dúvida alguma, envolvendo o Congresso Nacional e todo o setor de saneamento da sociedade civil tomará uma boa parte dos 3 anos que separam a entrada em vigor do Artigo 10º-A.
Mas os resultados, esperemos, serão compensadores de modo a acelerar com segurança e presteza os investimentos em saneamento em direção ao rumo da universalização em abastecimento de água e tratamento de esgotos.
Notas
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Lei Nº 9984 de 17 de julho de 2000 O Artigo 1º desta MP reza que a Ementa da Lei Nº 9984 de 17 de julho de 2000 passe a vigorar com as seguintes alterações: “Dispõe sobre a criação da Agência Nacional de Águas – ANA, entidade federal de implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos, de coordenação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e responsável pela instituição de normas de referência nacionais para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico.” (NR). O Artigo 2º desta MP altera também os seguintes artigos da Lei Nº 9984 de 17 de julho de 2000: 1º, 3º, 4º,4ºA, 4ºB, 8º, 8ºA, 11º, 13º e 17ª.
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Lei nº 10.768, de 19 de novembro de 2003: “Dispõe sobre o quadro de pessoal da Agência Nacional de Águas- ANA- e dá outras providências”. O Artigo 3º desta MP altera os seguintes artigos da Lei nº 10.768, de 19 de novembro de 2003:3º e 4º.
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Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007 O Artigo 4º da MP reza que a ementa da Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, passe a vigorar com as seguintes alterações: “Estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico, cria o Comitê Interministerial de Saneamento Básico, altera a Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, a Lei nº 8.036, de 11 de maio de 1990, a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, e a Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, e revoga a Lei nº 6.528, de 11 de maio de 1978.” (NR)
O Artigo 5º desta MP altera também os seguintes artigos da Lei 11.445, de 5 de janeiro de 2007: 2º, 3º, 7º, 8º, 8ºA, 8ºB, 9º, 10ºA, 10ºB, 11º,11ºA,13º e 17º, 19º, 22º, 23º, 25º, 25ºA, 29º, 30º, 35º, 40º, 45º, 46º, 48º,49º, 50º, 52º, 53º, 53ºA, 53ºB e 53ºC.
*José Eduardo W de A Cavalcanti, engenheiro consultor, diretor do Departamento de Engenharia da Ambiental do Brasil, diretor da Divisão de Saneamento do Deinfra – Departamento de Infraestrutura da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), conselheiro do Instituto de Engenharia, e membro da Comissão Editorial da Revista Engenharia