Responsabilidade administrativa ambiental não se confunde com responsabilidade civil objetiva
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
Se Nelson Rodrigues testemunhasse o debate a respeito da chamada “responsabilidade administrativa ambiental”, por certo sentenciaria: “órfãos da objetividade usam da retórica para desfocar o óbvio ululante”.
Trata-se do esforço mental de brilhantes juristas, porém adeptos do biocentrismo (ramo do direito ambiental que desloca o ser humano para fora do centro das preocupações da norma), em procurar conferir “objetividade” à subjetiva responsabilidade administrativa por infrações ambientais.
Pretendem fazer prevalecer sua paixão em detrimento da fria razão da lei e, assim, em nome da natureza “essencialmente pública” do bem jurídico ambiental, autorizar moralmente que toda sorte de pessoas possam vir a ser autuadas na esfera administrativa por infração ambiental, ainda que não mantenham vínculo direto com a conduta apenada.
Pude outro dia, ler em uma obra doutrinária que “a própria Carta de 88 incorporou a responsabilidade objetiva ambiental proclamada pela legislação ordinária ao mencionar no parágrafo 3º do seu artigo 225, que as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente sujeitarão os degradadores a reparar os danos causados, não fazendo qualquer menção da existência de culpa na atuação do agente degradador”.
De cara acusei a maliciosa troca do substantivo original disposto no citado dispositivo da constituição – “infratores”, pelo oportuno termo “degradadores”, desmontando a condução silogística da doutrina em direção à responsabilidade sem culpa, pretendida pelo autor do texto, no campo da sanção administrativa.
Ora, “infrator” é aquele que transgride uma norma, ignora, despreza, desrespeita. Vale dizer, o infrator demanda norma expressa para que possa, então, transgredir.
O degradador, por outro lado é o poluidor – conceito estabelecido no art. 3º. Da Lei 6.938/81 – Política Nacional de Meio Ambiente, que identifica o responsável direta ou indiretamente pela degradação ambiental – ainda que não aconteça de vir aquele transgredir qualquer regra… Daí a sua responsabilidade CIVIL sem culpa.
O infrator poderá sofrer sanção penal e/ou administrativa, independentemente de ter que reparar os danos causados na esfera civil. Significa dizer: ainda que não venha a ser considerado culpado administrativamente ou criminalmente, poderá ainda sim ser responsabilizado em termos civis pelos danos causados, pois que para tanto basta o liame de causalidade.
Na esfera administrativa e criminal, o liame de causalidade, por si só, não basta para estabelecer responsabilidade do agente. Não é por outro motivo que o próprio parágrafo 3º do art. 225 da Constituição Federal, ao estatuir a tríplice responsabilização para o “infrator”, diferencia a “obrigação de reparar os danos causados” das “sanções penais e administrativas”.
O artigo 6º da Lei Federal 9.605/98, que trata dos crimes e infrações administrativas ambientais, deixa claro, sem distinguir essas duas esferas, que:
“Para imposição e gradação da penalidade, a autoridade competente observará:
I – a gravidade do fato, tendo em vista os motivos da infração e suas consequências para a saúde pública e para o meio ambiente;
II – os antecedentes do infrator quanto ao cumprimento da legislação de interesse ambiental;
III – a situação econômica do infrator, no caso de multa.”
Ou seja, o óbvio ulula! A responsabilidade administrativa é subjetiva, depende da apreciação da conduta do agente.
O art, 70 da mesma Lei, dispõe que “considera-se infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente.” Vale dizer, há de ocorrer ação voluntária do agente transgressor.
O art. 72 do mesmo diploma introduz o rol de sanções enunciando:
“As infrações administrativas são punidas com as seguintes sanções, observado o disposto no art. 6º”…
A objetividade da norma, no sentido de conferir responsabilidade subjetiva à infração administrativa ambiental é, portanto, acachapante.
Quando da feitura do projeto que resultou na Lei Federal 9.605/98. Pretenderam os biocentristas introduzir um “sabendo – ou devendo saber – da conduta criminosa de outrem”, na responsabilização criminal das pessoas naturais, disposta no art. 2º do diploma legal.
A proposta foi de pronto, rejeitada por parte dos membros da própria comissão de juristas proponente, destaque para o Professor Paulo José da Costa, que chegou mesmo a subir numa poltrona, de dedo em riste, para defender o que ele chamava de “direito sagrado de proteger o cidadão contra o arbítrio” que ocorreria fatalmente se não se retirasse o “devendo saber” da norma.
Pude testemunhar o fato. Repetindo o bordão do grande jogador Gerson: “eu vi, eu estava lá”.
O fato é que a excrescência arbitrária foi retirada da proposta, e esta foi aprovada pelo Congresso Nacional, num exemplo histórico de que a responsabilidade objetiva não vigorou na norma que estabelece tipos penais e sanções administrativas ambientais.
No entanto, não podemos abaixar a guarda. Patente a tentativa dessa monstruosidade gradativamente voltar para o mundo das teratologias jurídicas, embalada pela retórica de juristas, promotores, procuradores e magistrados biocentristas, que não medem esforços em obliterar o óbvio para desfocar a objetividade da norma – por um pouco democrático ideal de proteção ambiental.
Num recente recurso encaminhado ao Prefeito da Cidade de São Paulo, dada a insistência da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente, de estender pesada multa, por conta de infração ambiental praticada por uma construtora, a um proprietário de parte do terreno onde a infratora operava, opinou, entretanto, a Procuradoria Geral do Município que:
“na sistemática da Lei Federal 9.605/98, as sanções administrativas ambientais não são solidárias, devendo ser individualizadas para cada pessoa considerada infratora, observando-se os critérios legais.”
Assim, observo que ainda há vida independente na Administração Pública, ainda não submetida às trevas dos bem intencionados (porém arbitrários) biocentristas.
Torço, portanto, para que exemplos como esse se repitam, e o instituto da responsabilidade administrativa não se transforme numa crônica rodrigueana, protagonizada por gente interessada em fazer com que seus argumentos ignorem o óbvio, encubram os fatos e desfoquem sentido objetivo da Lei.
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado formado pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) e sócio-diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Desde 1985 dedica-se à advocacia especializada em Direito Ambiental. É membro do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional e consultor do Banco Mundial, com vários projetos já concluídos.Jornalista, é Editor-Chefe do “Portal Ambiente Legal” e, também, edita o Blog “The Eagle View”.
Texto publicado originalmente sob o título “O óbvio ululante e o mito da responsabilidade objetiva nas infrações administrativas contra o meio ambiente” no portal Última Instância em 02/04/2013
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