Por Marco Aurélio Arrais
A água que abastecia a casa de minha avó, na chácara em que morávamos, era levada através de um encanamento subterrâneo, de uns quatrocentos metros, ligado a um carneiro, instalado sobre uma mina de água protegida por alvenaria.
Para quem não sabe, carneiro é um aparelho de captação de água, que é movimentado continuamente por um dispositivo que suga a água e, liberando-a, faz com que mais água seja sugada. E assim, sucessivamente.
Mas, de vez em quando, ele travava.
Era uma noite escura. Lua não tinha. Noite de assombração e de aparecimento do capeta. Não existia trem que eu tivesse mais medo do que de assombração e capeta.
Quase toda noite, com a meninada reunida, a mãe Nega contava histórias de defunto, lobisomem, mula sem cabeça e aparecimento do demônio para os pecadores.
Quando me deitava, o quarto escuro era apavorante. Não existia eletricidade. A única luz vinha de uma lamparina de querosene, que era apagada ao se deitar . Então, num esforço tremendo, tentava romper com os olhos a escuridão, morrendo de medo de enxergar uma coisa do outro mundo.
Isso acontecia, principalmente quando morria alguém na vizinhança, e eu ia lá pra ver a cara do defunto. Então eram várias noites mal dormidas e sempre com a cabeça coberta, me protegendo de assombração.
Voltando ao carneiro. Para chegar a tal mina seguia-se por uma trilha pedregosa, ladeada pelas mangueiras e cajueiros do quintal, com uma pequena moita de cana quase à beira da água.
Nessa noite, o desgraçado do carneiro travou. Para que não faltasse água pela manhã, era necessário ir até lá e botá-lo para funcionar.
Eu era o neto mais velho, já taludinho, lá pelos meus onze anos. Naquela época, nessa idade, não era mais considerado uma criança. Com autoridade, minha avó me chama e ordena que providenciasse o fornecimento de água, destravando o carneiro.
Gelei. Quiz falar que tinha medo, mas a vergonha foi maior. Além do mais, demonstrar covardia era coisa impensável, além de correr o risco de levar uma taca. A maneira de criar e educar, naqueles tempos, era muito diferente. Aprendia-se a sobreviver. Eu tinha que obedecer. Não tinha escolha.
Para iluminar a noite, uma lamparina a querosene. Luz pouca, fazendo sombras terríveis em minha volta. A cada passo, tinha certeza que ia aparecer qualquer coisa ruim.
Calçava um chinelo de couro, que não dava um bom equilíbrio ao caminhar sobre as pedras soltas. Rezando o Padre Nosso e a Ave Maria (únicas orações que sabia), desci o declive até onde estava o carneiro, arrepiando as costas a cada passo, com o coração disparado. O medo era tanto que as pernas tremiam. Não ousava olhar para trás, pois achava que o demo estava me acompanhando.
Cheguei são e salvo ao destino. Destravei o carneiro, que começou seu martelar monótono, bombeando a água.
Comecei a fazer o caminho de volta. Nas histórias aterrorizantes de visagem, dizia-se que o coisa ruim aparecia sempre quando se voltava, nunca quando se ia. Agora rezava baixinho, pedindo proteção a Deus, para que não deixasse nada de mal me acontecer. O medo tinha virado um pavor enorme, pois a luz fraca e bruxuleante da lamparina continuava transformando cada sombra num ser ameaçador.
Foi então que, quando passava debaixo de um pé de jambo, ouvi o barulho de uma respiração. Fraquejei as pernas e quase cheguei a vergá-las.
Tentei seguir sem olhar para trás, quando de novo outra fungada mais alta se fez ouvir.
Parei. A garganta estava seca. A tremedeira era enorme.
Comecei a suar frio e a sentir muita dor no estômago. Não dava para continuar sem olhar para trás.
Devagar, apavorado, girei o corpo e com a lamparina tentei iluminar a escuridão. Foi então que vi dois imensos olhos brilhantes, do tamanho da boca de uma xícara. Aquilo me olhava fixamente, e eu fiquei paralisado. Foi quando bicho do olhão deu um passo na minha direção, pisando pesadamente nas folhas secas.
Não tive reação para mais nada. Atirei a lamparina longe, e guiado pela luz do lampião que irradiava da casa, rompi numa carreira louca. Os pés, já sem os chinelos, pisavam diretamente nas pedras, mas eu não sentia nada. Só queria chegar. Ficar longe daquela coisa. Debaixo da proteção da minha avó, da mãe Nega, de todos da família.
Mais adiante, havia um abacateiro com um galho baixo bem na vertical, exatamente na altura da minha testa. Foi uma pancada tão grande, que me esparramei no chão, com a vista escura, cego de dor. Sentia que o cão estava chegando perto, para me pegar. Levantei-me, e reunindo minhas últimas forças, corri feito louco até entrar na cozinha.
Minha avó vendo aquele destempero, me olhou e perguntou pela lamparina. Tentei explicar, mas a voz não saía.
Ela não quis saber de nada.
Disse para largar de lambança. Mandou que pegasse outra lamparina e fosse procurar. Só voltasse quando tivesse encontrado.
Tentei contar que o chifrudo estava lá, esperando para me levar, mas ela bradou comigo. Disse para tomar vergonha, deixasse de ser frouxo.
Que eu fosse buscar a lamparina, pois havia na casa uma para cada quarto, e ninguém iria dormir no escuro por conta de safadeza minha.
Voltei.
A vontade de chorar era muita. Não tinha outro jeito. Desci a ladeira rezando como um louco. Tinha aumentado muito a dor de barriga.
Pensei que fosse sujar a roupa de tanto medo. Fui alumiando o chão. Achei um pé do chinelo. Daí mais uns dez passos, o outro.
Já estava próximo do local onde tinha visto o olhão aceso quando, novamente, ouvi o fungado. Então aceitei que estava perdido. Não tinha mais salvação. Os dois olhões apareceram no fundo da escuridão e me fitaram. Senti um cheiro forte de enxofre misturado com carniça. O rabo dele balançava de um lado pro outro.
Então o capeta…mugiu!
Era a desgraçada de uma vaca que tinha arrombado a cerca do pastinho e entrado no pomar.
Comecei a entender o que tinha acontecido. Uma sensação de calor reconfortante expulsou o frio que sentia. O coração desacelerou e as minhas ideias foram se normalizando. O medo sumiu, substituído por um misto de alívio e vergonha. Foi então que atinei que o fedor de enxofre e carniça tinha desaparecido. Gritei com a vaca e botei ela pra correr. Fiquei corajoso. Muito macho. Taquei umas pedras no rumo dela, mas no escuro não acertei nenhuma. Procurei, e depois de alguns minutos, fui achar a lamparina, debaixo de um pé de mandioca.
Quando voltei, já não sentia medo. Só um pouco de raiva. Entreguei as lamparinas, e fui me deitar. Não cobri a cabeça. Nunca mais fiz isso. O corpo todo doía, e dormi um sono agitado.
De manhã, quando acordei e tentei me levantar, mal consegui pisar no chão. Os pés estavam uma ferida só. O couro da sola estava lanhado, todo esfolado. O dedão do pé direito tinha perdido a ponta e a unha estava rachada. Devo ter tropeçado, sem sentir, em uma pedra. A cabeça doía. Um galo, do tamanho de um ovo , enfeitava a testa. Quando cheguei na cozinha fui alvo da zombaria de todos. Durante toda a semana fui assunto para divertimento dos outros.
Mas isso me serviu. Deixei de acreditar em seres invisíveis e misteriosos, e a não ter medo de nada que não pudesse ver e avaliar.
Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”.
imagens: “imagens de assombração! – odia (ig).
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