Por Marco Aurélio Arrais
Sou um aposentado da Caixa Econômica Federal. Só lá, quase vinte e cinco anos de serviços prestados, com apenas uma falta injustificada. Foi uma ocasião que necessitei de sair durante o expediente, para atender meu menino que estava com um febrão brabo, em casa. O chefe negou. Aí falei que cortasse a porra do ponto, que eu ia assim mesmo. E olhe que já era mais de quatro da tarde. Mas deixa isso para lá, que o caso é outro.
Eram uns quarenta digitadores, prestadores de serviço. Para coordenar o serviço, das oito às quatorze horas, quando havia mudança de turno, éramos eu e o Daniel. Nos tratávamos mutuamente por Bode Velho. Foi uma amizade que ficou na lembrança, que sempre me recordo com carinho.
O serviço era moleza, bastava ficar andando o dia todo, de um lado para outro, atendendo aos digitadores.
De vez em quando, para quebrar a monotonia, aprontávamos algumas com as meninas da limpeza, escondendo os baldes ou embaraçando os fios das enceradeiras. Mas elas se vingavam, colocando sal no nosso café.
Havia um digitador, sujeito sizudo, de poucas palavras, mal-humorado, que passava o dia inteiro sem conversar, encaramujado lá no canto dele. Não tinha quem dele arrancasse um sorriso, um ato de simpatia. Só falava com a gente quando, fora do intervalo de dez minutos a cada hora trabalhada, tinha que ir ao banheiro.
O banheiro masculino era espaçoso, com quatro lavatórios e quatro sanitários alocados na parede do fundo. O primeiro sanitário, na esquerda de quem entrava, junto à parede, tinha no alto da dita parede, a uns três metros de altura, uma porção do azulejo que revestia as paredes, de mais ou menos um metro quadrado, estufado e solto, só seguro pela vontade de Deus ou por arte do capeta. Já havíamos, por diversas vezes, alertado a chefia que aquilo era um perigo, e podia desabar a qualquer momento sobre um cagante imprecavido. Mas que nada! Ninguém tomava providência nenhuma.
Um dia, como o tal digitador não voltara do intervalo, fui ver onde estava. Entrei no dito banheiro, e ouvi um gemido lamurioso, vindo das profundezas de uma garganta desesperada.
Apurei o ouvido; depois do som de uma aspiração alongada, que puxou bem pra mais de um metro de ar, novamente se fez ouvir o som cavernoso, de um sofrimento que chamou a atenção. Saí e fui chamar o Bode Velho, para que me ajudasse a dar um parecer coerente àquela situação.
Pedi que apurasse a audição, e fez-se ouvir, de início, a aspiração parecida com um fole, seguida de um guincho curto, fino, que na medida que o forcejamento aumentava ia mudando do falsete para um som atenorado. No fim, mudava para um baixo profundo, extenso, que denotava uma realidade sofrida, dolorida, atravancada.
Diante disso o Daniel disse para irmos embora dali, para que deixássemos o pecador a sós com a sua penúria. Eu ponderei que aquele não era um ato de estrumação comum. Estava mais para parimento, pois aquele desespero equivalia a um parto normal de mulher.
Tínhamos que fazer alguma coisa para aliviar o penar daquele irmão, que estava necessitado de ajuda para expelir o resultado de seu pecado venial – o da gula, acrescido de uma prisão de ventre que devia estar durando dias, e que naquele instante chegava ao final.
Apurando o ouvido, deduzi que o subproduto a ser expelido era dos mais avantajados e estava sendo posto à luz na bruta, sem lubrificação e com dilatação reduzida.
Falei pro Daniel que, pelo visto, a “criança” devia ser daquelas cabeçudas, de tronco largo, e já devia estar com pelo menos um terço do tamanho para fora, entalada no que seriam os ombros.
A gemeção havia aumentado no volume e no comprimento. Antes era “Huuumm!”, agora havia mudado para “Aaaiiiiii”, “Iiiiiiiii” – fora a respiração sofrida, entrecortada por soluços e acompanhadas por murros nas paredes laterais, o que dava ideia da situação desesperadora, que exigia uma intervenção urgente e decisiva.
Falei para o Daniel ficar vigiando, na porta, para ver se não viria alguém.
Como a coisa era séria, a intervenção deveria ser rápida.
Fui até o lavatório. Do depósito de papel-toalha, preso à parede, puxei umas quinze folhas. Abri a torneira e molhei bem, fazendo uma bola compacta. Aí, esperei.
Depois de ouvir uma puxada de ar poderosa, e bem no início do gemidão, que demonstrava a força para trazer à luz o nascituro, acertei o tal do azulejo solto com a bola de papel. Aquilo desprendeu e desceu sobre o parturiente. Nesse momento, o gemido transformou-se num berro curto, seguido do barulho de alguma coisa caindo na água. Corri para fora do banheiro, e imediatamente voltei.
Deparei com o cabra, pálido, os olhos marejados, a testa empapada de suor, com as calças na mão, se tremendo todo.
Com um ar sério, preocupado, perguntei o que havia acontecido. Ele apontou para a parede sem os azulejos, dizendo com voz trêmula, que haviam caído sobre ele. Fui até o vaso, e no fundo havia uma coisa que media quase dois palmos, da grossura de uma garrafa de cerveja. Coisa de se admirar! O Bode Velho entrou no banheiro acompanhado pelo gerente encarregado, o João Pinto (a quem tratávamos por Pintão).
Chamei o Daniel, e falei para que salvasse o afilhado dele, pois poderia se afogar se não fosse tirado do vaso.
Não é que ele me mandou à merda?
As meninas da limpeza me confidenciaram, que para despachar o subproduto para o esgoto, foi necessário parti-lo em três partes. O rapaz que pariu aquilo, passou o resto do dia sentado na cadeira usando meia bunda e trazendo na face a sensação de um alívio que fazia gosto de ver…
Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”.
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