Por Nivalde de Castro, Adriana Ribeiro Gouvêa, Ana Carolina Chaves e Luana Carolina da Costa*
Desde o compromisso de redução de emissões de gases do efeito estufa, iniciado com o Protocolo de Kyoto, em 1997, inúmeros países vêm investindo na expansão da capacidade instalada de fontes renováveis para atender a demanda de energia da sociedade.
No entanto, transformar uma matriz energética pautada em fontes não renováveis, com o objetivo de uma descarbonização necessária, envolve profundas e complexas mudanças de cunho técnico, social, cultural, político e econômico. Trata-se, assim, de um desafio ingente que exige um esforço conjunto de diversos stakeholders do setor energético e da sociedade.
A urgente necessidade de ações de controle das mudanças climáticas é um dado cada vez mais presente e reconhecido internacionalmente, como destaca o relatório “Aquecimento Global de 1,5ºC”, do Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC, 2018). Os sinais mais evidentes são o “estresamento” das temperaturas mínimas e máximas no planeta. Neste sentido, o setor elétrico pode contribuir de forma decisiva para o processo de descarbonização da matriz geradora, através de uma crescente inserção de fontes de energia renovável em substituição às fontes convencionais de combustíveis fósseis. Além disso, mesmo ao nível das fontes não renováveis, há em curso uma transição do carvão para o gás natural, com destaque para os EUA, que também resulta em descarbonização.
Outro fator vinculado diretamente ao processo de transição energética é o movimento global em direção à eletrificação da sociedade. Um dos exemplos mais paradigmáticos é a difusão dos veículos elétricos a nível mundial. Em mercados como o dos EUA, da Europa e da China, constata-se um rápido crescimento das vendas e das frotas de veículos elétricos, que tende a se acelerar em ritmo exponencial, com as políticas públicas de apoio à sua difusão através de diferentes instrumentos.
Segundo a Bloomberg New Energy Finance – BNEF (2017), os veículos elétricos representarão a maior parte das vendas de carros novos em todo o mundo, até 2040, e deverão corresponder a 33% de todos os veículos leves nas estradas. Estima-se que, até 2025, as vendas dos veículos elétricos se manterão baixas, tendo como ponto de virada, provavelmente, entre os anos de 2025 e 2030, quando os veículos elétricos deverão se tornar competitivos frente aos modelos à combustão interna.
Segundo o estudo da International Renewable Energy Agency (IRENA, 2019), o aumento do uso de energia renovável combinado e reforçando a eletrificação tende a ser decisivo para o mundo atingir as principais metas climáticas estabelecidas até 2050. Neste estudo, verifica-se, também, algumas opções tecnológicas e implicações de políticas públicas e energéticas, com a finalidade de garantir um futuro de energia sustentável. Nesta perspectiva, a transição energética irá trazer benefícios socioeconômicos significativos, como o aumento do crescimento econômico, a criação de empregos e ganhos gerais de bem-estar para a sociedade.
Diante deste contexto que indica, de fato, uma metamorfose do setor elétrico, o Brasil vem buscando estreitar sua parceira, no segmento de energias renováveis, com alguns países. Neste âmbito, foi realizado pela Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ), em julho de 2019, a 2ª edição do evento Energy Day, em que diversos especialistas do setor elétrico brasileiro e alemão examinaram o processo de transição energética, com ênfase nas principais vantagens e desafios.
Merece ser destacado que a Alemanha, país que, em 2018, apresentou 35% de sua matriz proveniente de energia renovável, vem traçando metas agressivas no processo de transição energética, notadamente a partir da decisão de restringir a energia nuclear, uma reação de cunho eminentemente político ao acidente nuclear de Fukushima.
Diferente de muitos países, em um primeiro momento, o Brasil não assumiu compromissos formais de transição energética. Esta posição deve-se ao fato de deter uma das melhores matrizes elétricas do mundo, por ser essencialmente renovável. Desta forma, não havia, inicialmente, a necessidade de investir em novas tecnologias e modelos de negócio. No entanto, com o fim da hegemonia da fonte hidroelétrica, marcado pelo acirramento da política ambiental, a política energética nacional passou a priorizar outra fonte renovável, a energia eólica. O primeiro leilão de energia nova competitivo dedicado exclusivamente à energia eólica foi realizado em 2009. Como resultado, foram firmados contratos de longo prazo com baixo preço, equivalente a U$ 80/MWh, em relação aos demais países que pagavam em torno de U$ 150/MWh.
A sistemática da política energética brasileira, a partir de consistentes estudos de planejamento, utiliza os leilões de energia como o principal instrumento de ampliação da oferta. Por outro lado, corroborando esta prioridade e perseguindo preços baixos, é inegável que o avanço tecnológico, a curva de aprendizado e os ganhos de escala da cadeia produtiva foram fatores preponderantes e decisivos para a inserção da energia eólica.
Neste âmbito, ressalta-se que o movimento de inclusão das energias renováveis nas matrizes geradoras, tanto no Brasil, como em outros países em desenvolvimento, ocorreu após a crise econômica de 2008. Muitos investidores com capital e expertise reduziram posições nos mercados dos países desenvolvidos e passaram a diversificar suas operações, investindo em países em desenvolvimento e trazendo consigo o conhecimento e a experiência no gerenciamento destes empreendimentos (WORLD BANK, 2014).
A partir de 2015, a mesma trajetória observada na energia eólica passou a ocorrer na energia solar. Leilões de energia foram realizados com crescente redução dos preços, devido à queda dos custos dos equipamentos, em função dos ganhos de escala produtiva, determinados pelo país que lidera a produção de equipamentos deste segmento, a China.
Uma inovação tecnológica que reforça a predominâncias das fontes renováveis na matriz brasileira é a geração distribuída (GD). Este processo de difusão tecnológica beneficia-se dos esforços intensivos de inovações realizados por países desenvolvidos, como a Alemanha e a China. Outro fator que favorece a GD são as elevadas tarifas de eletricidade que predominam no Brasil. Destaca-se que o avanço da GD no país determina como resultante o início do processo, ainda tênue, de descentralização do sistema elétrico.
A dinâmica da descentralização do sistema elétrico dependerá das condições estruturais, geográficas e socioculturais das regiões do Brasil, criando, assim, oportunidades de diferentes tipos e graus, mas que vão reforçar a eletrificação das atividades produtivas de bens, serviços e de bem-estar social.
Embora o uso de baterias e os aprimoramentos para o ganho de eficiência energética sejam intensivos em capital, estes possuem custos operacionais baixos, indicando a possibilidade de assumir um papel importante e mesmo estratégico no processo de transição energética.
Ademais, diante do empoderamento do consumidor, o qual busca maior confiabilidade e independência frente às distribuidoras de energia elétrica, tornando-se, cada vez mais, proativo na forma de como irá consumir, armazenar e produzir eletricidade, com base nas fontes renováveis, pode-se induzir que a descentralização tende a ser um processo dinâmico e não controlado.
Deste modo, será cada vez mais exigido dos agentes do setor elétrico planejamento estratégico para incorporar os diferentes e complexos cenários possíveis. Os estudos clássicos de planejamento dos sistemas centralizados térmicos e hídricos utilizados até o momento terão que considerar a grande mudança de paradigma imposta pela revolução tecnológica, principalmente no que se refere ao aprimoramento das políticas públicas e às inovações requeridas e necessárias do arcabouço regulatório.
No evento Energy Day, o presidente da EPE analisou um exemplo deste processo: a estrutura tarifária no Brasil frente à mudança do comportamento do consumidor. Atualmente, esta questão está inserida na agenda regulatória da ANEEL, a fim de buscar uma estrutura tarifária condizente às transformações do setor. Na estrutura tarifária atual, não existe uma separação efetiva entre o serviço e a energia consumida que reflita, por exemplo, os incentivos à GD ou, ainda, o custo efetivo da energia, na baixa tensão, referente ao horário e à localização do consumo. Desta forma, o desafio que se configura é o de aumentar a granularidade da tarifa, nas dimensões temporal e espacial, garantindo a transparência e a compreensão do custo da energia pelo consumidor, para que este possa fazer os ajustes no seu perfil de demanda.
Vale ressaltar que a elevada tarifa vigente, no Brasil, decorre da estratégia escolhida no passado, quando foi repassado ao consumidor do mercado regulado, de forma crescente, os riscos de contratos de longo prazo que nem ele, nem as distribuidoras tinham e têm capacidade de gerenciar. Os exemplos são múltiplos e complexos, citando-se o risco de geração dos contratos de exclusividade, o PLD, o risco da geração hidroelétrica nas cotas, o preço de combustível, a indexação de cambio na parcela dos combustíveis dos contratos de disponibilidade das centrais térmicas, o risco da geração de renováveis, o risco da transmissão, entre outros.
Em suma, nos termos da transição energética vinculada diretamente à integração das renováveis na matriz elétrica, o marco regulatório e as políticas públicas para o desenho de mercado são desafios bem distintos para, por exemplo, EUA, China, Alemanha e Brasil. Mesmo assim, o compartilhamento dos desafios determinados pela transição energética e das experiências em curso permitem e induzem a uma maior cooperação internacional.
Referências Bibliográficas:
BNEF, 2017. ELECTRIC VEHICLE OUTLOOK 2017 – EXECUTIVE SUMMARY. Bloomberg New Energy Finance. Disponível em: https://about.bnef.com/blog/electric-vehicles-accelerate-54-new-car-sales-2040/
ENERGY DAY, 2019. Brasil e Alemanha discutem as oportunidades e desafios para sistemas de energia do futuro. Disponível em: https://www.energypartnership.com.br/home/
IRENA, 2019. Global Energy transformation: A roadmap to 2050. International Renewable Energy Agency. Disponível em: https://www.irena.org/publications/2019/Apr/Global-energy-transformation-A-roadmap-to-2050-2019Edition
IPCC, 2018. Report Global Warming of 1.5ºC Special Report. Intergovernmental Panel on Climate Change. Disponível em: https://www.ipcc.ch/sr15/
*Nivalde de Castro é Professor do Instituto de Economia da UFRJ e Coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico – GESEL. Adriana Ribeiro Gouvêa é Pesquisadora do GESEL e mestre pelo PPE/COPPE/UFRJ. Ana Carolina Chaves é Pesquisadora do GESEL/UFRJ e doutoranda pela ENCE. Luana Carolina da Costa é Pesquisadora do GESEL/UFRJ e mestranda pelo PPE/COPPE/UFRJ