Por Bruna Maia e Talden Farias*
No último dia 5 (março), o Brasil depositou a carta de ratificação perante a Organização das Nações Unidas (ONU), tornando-se, assim, Estado oficialmente signatário do Protocolo de Nagoya. O tratado foi assinado em 2010, mas entrou em vigor somente em 2014, quando alcançou o número de ratificações necessárias, contando neste momento com 129 Estados-membros [1]. O Brasil agiu com protagonismo nas negociações do protocolo, juntamente com o grupo dos países ricos em biodiversidade (Like-Minded Mega Diverse Countries, formado por países como Índia, China, Colômbia e África do Sul), mas, curiosamente, levou vários anos para internalizar o texto do acordo [2].
O protocolo faz parte da Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica (CBD), assinada em 1992 e conhecida como Convenção-Quadro sobre Diversidade Biológica. A estrutura normativa funciona como se CDB fosse um contrato guarda-chuva e o protocolo fosse um acordo suplementar. A convenção foi o primeiro instrumento internacional a reconhecer a soberania dos Estados sobre seus recursos biológicos [3]. Isso significou uma importante vitória para os países ricos em biodiversidade [4], pois possibilitou o recebimento de compensação pelo uso de seus recursos e a obrigatoriedade de obtenção de autorização para ter acesso a tais recursos. Com isso, os países desenvolvidos, econômica e tecnologicamente mais avançados, devem compensar os países em desenvolvimento pela conservação da biodiversidade caso queiram fazer uso de recursos genéticos de seus territórios [5], o que, evidentemente, atende a uma lógica distributiva.
Apesar de a convenção estabelecer o chamado sistema de acesso e repartição de benefícios (ARB, em inglês access and benefit-sharing) oriundos dos recursos genéticos ou conhecimento tradicional associado, o grau de implementação foi muito baixo [6]. Nesse contexto, o Grupo dos Países Megadiversos reivindicava um instrumento que pudesse garantir uma maior efetividade do regime de ARB para evitar a prática da biopirataria [7]. Após calorosos debates, em 2010, os Estados-membros da convenção entram em consenso e aprovam o Protocolo de Nagoya. Mas, finalmente, qual a importância dessa ratificação para o Brasil?
Todos os Estados são, em alguma medida, usuários e provedores de recursos genéticos. Isso implica dizer que o Brasil deve garantir que os recursos acessados em seu território estejam em conformidade com a legislação doméstica do Estado de origem e vice-versa. Para garantir a efetividade o protocolo impõe algumas obrigações nesse sentido. Algumas delas já foram efetivadas por meio da Lei 13.123/15, que atualmente é a legislação doméstica responsável pela implementação do tratado [8]. Entretanto, outras providências previstas no protocolo ainda precisam ser tomadas. É o caso da implementação de medidas para garantir o atendimento de normas estrangeiras de acesso a recursos genéticos e repartição de benefício e designação de pontos de verificação para cumprimento dessas obrigações [9].
Em outras palavras, isso significa que, além da Lei 13.123/15, que regula o acesso e repartição de benefícios e conhecimento tradicional associado dos recursos brasileiros, o Brasil também deve garantir a obediência à legislação alienígena de ARB. Portanto, se a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), por exemplo, estiver pesquisando uma planta da China (Estado signatário do protocolo), a instituição deve atentar para a legislação doméstica chinesa sobre ARB e passar por um procedimento de monitoramento por meio de pontos de verificação nacional a serem estabelecidos pelo governo brasileiro. Portanto, além da Lei 13.123/15, as empresas e instituições nacionais de pesquisa terão de se adequar ao sistema de compliance previsto no Protocolo de Nagoya [10]. Mas o protocolo aplica-se para todos os recursos genético, inclusive espécies usadas na agricultura?
Depende, pois como existe um tratado específico para recursos genéticos usados na alimentação, o Tratado Internacional de Recursos Fitogenéticos para Alimentação (Tirfa), em caso de conflito, esse deve prevalecer por se tratar de norma mais específica. Entretanto, se a espécie vegetal não estiver inclusa no Anexo I do Tirfa, como é o caso da soja, o sistema de acesso e repartição de benefícios deve seguir as regras do Protocolo de Nagoya.
O Brasil utiliza pesquisas de melhoramento genético na maior parte das commodities. Não se pode ignorar a crescente importância do agronegócio no cenário econômico brasileiro. Sendo assim, a ratificação do protocolo deve impactar diretamente as empresas e instituições que trabalham com esse tipo de pesquisa. No âmbito do setor privado, será necessário um esforço para cumprir as regras de ARB do país de origem do recurso genético. Para auxiliar nessa tarefa, o protocolo criou o ABS Clearing House, uma plataforma que disponibiliza informações sobre todos os Estados-membros. Já no âmbito do setor público, o protocolo demanda que sejam editadas medidas legislativas que permitam o monitoramento das regras de ARB dos países de origem por meio de checagens, pontos de verificação e mecanismos de controle. Ademais, a ratificação do protocolo também permitirá ao Brasil ter voto durante as reuniões dos Estados-membros, contribuindo assim, com a evolução das discussões da matéria.
Logo, o Brasil precisa estar preparado para o Protocolo de Nagoya, o que requer um esforço da Administração Pública, das instituições de pesquisa, das empresas envolvidas e da sociedade civil, sob pena de perder oportunidades e investimentos. Afinal, em função de sua biodiversidade, talvez nenhum país tenha tanto a ganhar tanto quanto o nosso em termos de exploração sustentável dos seus recursos genéticos [11].
[1] Convenção sobre Diversidade Biológica. Signatários. Disponível em: https://www.cbd.int/abs/nagoya-protocol/signatories/. Acesso em: 5 de março 2021.
[2] Like-Minded Mega Diverse Countries (LMMDC). Disponível em: https://lmmcgroup.wordpress.com/2014/03/24/welcome-to-the-group-of-like-minded-megadiverse-countries/. Acesso em: 5 de março 2021.
[3] Hassemer, M. Genetic Resources. In: ed. Silke Von Lewinski Indigenous heritage and Intellectual property: Genetic resources, Traditional knowledge and Folklore. London: Kluwer Law International, 2004.
[4] O artigo 2o da CDB define biodiversidade como “a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas”.
[5] De acordo com o material divulgado no sítio oficial da CDB, “todos os organismos vivos: plantas, animais e microorganismos carregam material genético potencialmente útil aos seres humanos. Esses recursos podem ser originários do mundo selvagem, da fauna domesticada ou de plantas cultivadas. Eles são provenientes de ambientes em que ocorrem naturalmente (in situ), ou de coleções criadas pelos seres humanos, como os jardins botânicos, bancos de germoplasma, bancos de sementes ou coleções de culturas microbianas (ex situ)”. Disponível em: https://www.cbd.int/abs/infokit/revised/print/brochure-pt.pdf. Acesso em: 25 de março de 2021.
[6] Buck, M; Hamilton, C. The Nagoya Protocol on Access to Genetic Resources and the Fair and Equitable Sharing Benefits Arising from their Utilization to the Convention on Biological Diversity. Review of European Community & International Environmental law, 20 (1), p. 47-61, 2011.
[7] Não existe uma definição pacífica para o termo “biopirataria”, mas de forma geral entende-se que é a apropriação de recursos genéticos sem autorização ou repartição de benefícios para estado de origem do recurso ou povos indígenas e comunidades tradicionais. Os elementos sintetizados a partir dos recursos naturais tornam-se protegidos por direitos de propriedade intelectual e comercializados com exclusividade pelos países desenvolvidos. Disponível em: https://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/biopirataria.pdf. Acesso em: 28 de março de 2021.
[8] Essa lei, que revogou a Medida Provisória 2.186-16/2001, dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, sobre a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e sobre a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade. Ela regulamentou o inciso II do §1º e o §4º do art. 225 da Constituição Federal de 1988, bem como o artigo 1, a alínea j do artigo 8, a alínea c do artigo 10, o artigo 15 e os §§3º e 4º do artigo 16 da Convenção sobre Diversidade Biológica, promulgada pelo Decreto 2.519/1998.
[9] Lima, João Emmanuel Cordeiro. Protocolo de Nagóia: dez questões fundamentais para entender esse acordo internacional. Revista Âmbito Jurídico, 2016. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-ambiental/protocolo-de-nagoia-dez-questoes-fundamentais-para-entender-esse-acordo-internacional-sob-a-perspectiva-brasileira/. Acesso em: 5 março 2021.
[10] É um sistema de monitoramento e checagem de adequação e conformidade das condutas e práticas com as normas em vigor. O termo em inglês ganhou notoriedade ao ser aplicado principalmente às empresas nos seus processos internos de adequação à legislação anticorrupção nacional e internacional.
[11] ROSSI, Tereza; LIMA, João Emmanuel Cordeiro. O Protocolo de Nagoia e a bioeconomia amazônica. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2021/O-Protocolo-de-Nagoia-e-a-bioeconomia-amaz%C3%B4nica?fbclid=IwAR3TbAW3Mxku_3IDAMTT5wGvEdoD8-zF0fq_S9Scx7wZI7Jhz9Iayt6KzL0. Acesso em: 29 março 2021.
*Bruna Maia é advogada e mestre em Direito pela University of Bristol/Reino Unido.
*Talden Farias é advogado, professor da UFPB e da UFPE, doutor e pós-doutorando em Direito da Cidade pela UERJ, doutor em Recursos Naturais pela UFCG, mestre em Ciências Jurídicas pela UERJ e autor de publicações na área de Direito Ambiental e Urbanístico.
Fonte: Conjur
Publicação Ambiente Legal, 30/03/2021
Edição: Ana A. Alencar
As publicações não expressam necessariamente a opinião da revista, mas servem para informação e reflexão.