Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
O Brasil deve sua história às Câmaras Municipais
Desde a primeira constituição da independência, em 1824, os municípios brasileiros tiveram sua autonomia reconhecida, autonomia esta herdada do período colonial, que conferia às câmaras municipais jurisdição administrativa e sanitária, controle territorial e atribuição judiciária.
De fato, a organização e o controle territorial brasileiro foram consolidados pelas Câmaras Municipais, que palmilharam cada passo da exploração e da interiorização protagonizadas pelo colonizador português e pelos bandeirantes, expandindo fronteiras desde o início do século 16.
Alterados os parâmetros das Capitanias Hereditárias, a partir do Vice-Reinado, o período colonial foi marcado por questões relativas à organização das províncias, não raro em atrito com o Governo Imperial, seja no embate por autonomia, seja pela necessidade de apoio militar para conter conflitos locais. No entanto, ao largo desses atritos, os municípios continuaram sendo o berçário das lideranças políticas brasileiras.
Conquistada a independência, a Carta Imperial de 1824 concedeu autonomia sem restrições aos municípios, estabelecendo em seus dispositivos as linhas mestras de sua organização. Essa autonomia restou plena ainda que o imperador indicasse na Constituição, as províncias como unidades componentes da divisão político-territorial do Império.
Assim, ainda que no período do império, houvessem atritos regionais, o grande fator de unidade territorial do País continuou sendo o município.
O desastrado modelo republicano e o mantra do “peculiar interesse”
O advento da República, no entanto, representou uma desagregação do municipalismo, por conta mesmo de representar o ente municipal a verdadeira estrutura de classes e de unidade política nacional, que pretendia a República fazer ruir.
O alinhamento da estrutura de controle territorial com o modelo federado norte-americano – que inspirara os republicanos paulistas à testa do novo sistema político brasileiro, ocasionou verdadeira involução na autonomia dos municípios brasileiros, retirando-lhes capacidade de gerir a justiça, o poder de polícia territorial e o controle sanitário. Limitou também a ação das câmaras municipais – instituindo um poder executivo municipal, concentrado em mãos de um prefeito.
As Constituições da República restringiram, de fato, a autonomia dos municípios, pois conferiu a eles competência “peculiar”. Transferiu, o regime constitucional republicano, aos estados federados, a iniciativa de legislar sobre o organismo municipal – uma cangalha importada e sem qualquer identificação com nossa tradição municipalista, que então já beirava o quarto centenário…
As constituições que se seguiram ao Decreto n. 1 da República e à Carta Republicana de 1891 progressivamente restringiram a autonomia municipal, suprimindo horizontes, sempre resguardando, porém, competência ao município para legislar naquilo que fosse de “peculiar interesse” – uma falácia que se tornou um mantra no direito público nacional desde então, senão vejamos:
A Constituição de 1891, no seu art. 68, rezava que “Os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos Municípios, em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse”.
A Constituição de 1934, no art. 13, dispunha que “Os municípios serão organizados de forma que lhes fique assegurada autonomia em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse, especialmente (…)”.
A Constituição de 1937, no art. 26, reafirmava que “Os Municípios serão organizados de forma a ser-lhes assegurada autonomia em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse, e especialmente (…)”.
Foi a Constituição de 1946, com certeza por ter sido formulada democraticamente em relação às anteriores, que desvinculou “peculiaridade” do conceito de “autonomia”. No entanto, repetiu o mantra “peculiar interesse” ao dispor sobre a forma de administração dos municípios (art. 28).
Mutatis mutandis, o resultado foi a mantença de municípios desfigurados em relação à tradição e cultura tetra centenárias que possuíam.
A Constituição de 1967 manteve a desfiguração inalterada. Emendada e “remendada” mais de duas dezenas de vezes no período de governos militares, a Carta de 67 dispunha no seu artigo 15 que “A autonomia municipal será assegurada (…) pela administração própria, no que respeite ao seu peculiar interesse”.
O regime militar reforçou a cangalha aposta sobre os ombros dos municípios, impondo sua constituição a edição de lei orgânica municipal unitária e complementar, pelo legislativo estadual – ou seja, conferiu aos estados os critérios da própria organização municipal (art.14).
O sistema republicano, portanto, por quase cem anos, violou o princípio da autonomia municipal, insistiu num mantra reducionista e, com isso, destroçou o controle territorial urbano e rural brasileiro.
Ouso dizer que, se hoje possuímos um controle fragilizado do território dos municípios no Brasil, isso se deveu ao desprezo de estados e união pelas demandas locais, econômicas, sociais e ambientais, que somente poderiam ser equacionadas por uma gestão próxima, legitimada e autônoma.
O resgate da autonomia municipal
Com o fim do regime militar e o restabelecimento da democracia, os municípios brasileiros, no entanto, buscaram em peso o resgate histórico de sua autonomia. Derrubaram o mantra da peculiaridade com muita luta e articulação na Assembleia Nacional Constituinte e obtiveram sua autonomia na Carta de 1988.
O advento da Constituição de 1988 pôs fim quase secular dilema dicotômico federativo.
A Carta reconhece os municípios como unidades da República Federativa do Brasil e os ombreia com estados e União, todos autônomos.
A partir de então ocorre uma renovação do princípio constitucional da autonomia municipal.
A Carta de 1988 reza que o município será regido por lei orgânica própria, aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, a qual deverá observar os princípios estabelecidos na Constituição Federal e na respectiva Constituição Estadual, possuindo, outrossim, competência legislativa para assuntos de interesse local, além de suplementar a legislação federal e estadual no que couber, e gerir o regime de uso de seu solo, entre outras atribuições.
A autonomia municipal se traduz em autogoverno, também de prerrogativa da cidadania no atual regime constitucional brasileiro. Essa autonomia, embora dissimulada pelas normas republicanas anteriores à Constituição de 1988, nunca deixou de ser reconhecida pela melhor doutrina jurídica nacional.
Ensina Hely Lopes Meirelles: “o Município brasileiro é entidade estatal integrante da Federação. Esta integração é uma peculiaridade nossa, pois em nenhum outro Estado Soberano se encontra o Município como peça do sistema federativo, constitucionalmente reconhecida. Dessa posição singular do nosso Município é que resulta a sua autonomia político-administrativa, diversamente do que ocorre nas demais Federações, em que os Municípios são circunscrições territoriais meramente administrativas”.
Na lição de Pontes de Miranda – “A respeito da autonomia dos Municípios, muita literatura tem-se feito em torno da significação fundamental dos Municípios. Decorre isso do grave erro de considerarmos antecedentes da vida política brasileira antecedentes de outros povos, cujos elementos étnicos e históricos foram assaz diferentes. À frase prestigiosa – O Município é a célula, a fonte, a pedra angular da Democracia – substituamos outra, um tanto desconcertante: o que temos não foi feito em prol do Município; nós é que estamos, de longa data, a fazer e desfazer dos Municípios”.
A autonomia dos municípios está, portanto, na base do regime republicano atual e comparece como um dos mais importantes e transcendentais princípios do nosso direito público, constituindo o cerne do Estado Democrático de Direito.
Após a conquista, o desafio de implementar a autonomia
Competência para “assuntos de interesse local” confere vis atractiva para o exercício da gestão – ou seja, o município, proporcionalmente ao seu tamanho, complexidade e estrutura, passa a ABRANGER interesses – algo completamente diferente do que antes dispunham as constituições republicanas pré 1988, que conferiam competência “residual” – limitada a um “peculiar interesse” por exclusão do interesse do estado e da União.
A Constituição de 1988, ao corrigir o regime de competências, pôs o dedo na ferida, agindo, portanto, profilaticamente, de forma a devolver aos municípios o controle territorial que historicamente sempre detiveram ao longo da formação da Nação Brasileira em cinco séculos de existência.
Com a autonomia vieram as atribuições comuns de implementação das normas de proteção ambiental, licenciamento e controle, previstas no art. 23 da Constituição Federal.
Com o exercício dessas atribuições, no entanto, sobrevieram conflitos com organismos estaduais e federais.
O Ministério Público, por exemplo parecia não ter acordado para a nova configuração federativa.
Não foram poucas as vezes, desde o início dos anos 1990, que o órgão ministerial insistiu em confinar as atribuições ambientais do munícipio a um sistema hierarquizado do SISNAMA – Sistema Nacional do Meio Ambiente, nos moldes da regra anterior à Carta de 1988.
Em verdade, a assimetria federativa é de difícil compreensão para certos organismos formais de fiscalização de caráter regional.
A luta dos sistemas municipais de gestão com organismos estaduais e federais que insistiam em não aceitar os fatos, está sendo, no entanto, apaziguada, na medida em que novas normas infraconstitucionais consolidam a autonomia do município.
As mudanças vieram aos poucos, com a Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente – Res. CONAMA 237/1997, o Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257, de 10 de julho de 2001), a Lei de Política Nacional de Saneamento (Lei Federal 11.445, de 5 de janeiro de 2007), Lei de Política Nacional de Resíduos Sólidos ( Lei Federal 12.305 de 2 de agosto de 2010), o Novo Código Florestal Brasileiro (Lei Federal 12.651, de 25 de maio de 2012) e, por fim, despejando a pá de cal, a Lei Complementar 140 de 8 de dezembro de 2011, que regulamenta o disposto no art. 23 da Constituição Federal, modulando a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, em especial nos atos administrativos decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição – em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora.
Esse novo contexto legal, a partir da Lei Complementar, desde logo altera a Lei no 6.938, de 31 de agosto de 1981 – Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, e irá alterar em breve o regime de licenciamento estabelecido nos regulamentos acima mencionados – tudo visando conferir ao Município instrumentos de diálogo com os demais entes do SISNAMA, à altura do seu status constitucional.
Conclusão
Com isso, postos os requisitos considerados indispensáveis, de ordem funcional e estrutural, para o exercício da sua competência implementadora, pode hoje o Município gozar da autonomia que constitucionalmente lhe cabe, no que tange à gestão ambiental, incluso o licenciamento das atividades de interesse local.
Fontes:
http://pinheiropedro.com.br/site/artigos/o-licenciamentao-ambiental-e-a-autonomia-municipal/
https://www.ambientelegal.com.br/o-resgate-do-controle-territorial-pelo-municipio-uma-breve-abordagem-historica/#sthash.reRJvLaz.dpuf
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP) , sócio-diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados, com consultorias prestadas ao Banco Mundial, IFC, PNUD, UNICRI, Caixa Econômica Federal, Ministério de Minas e Energia, Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência, DNIT, Governos Estaduais e municípios. É integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do IAB e da Comissão de Infraestrutura da OAB/SP. Jornalista, é Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal, Editor da Revista Eletrônica DAZIBAO e editor do Blog The Eagle View.
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