Por Edna Uip*
“A tensão extrema em determinado grupo apenas é apaziguada com o sacrifício de um bode expiatório.”
René Girard
Vestidos iguais, pijamas e roupões fracamente amarrados, iam e vinham no pátio da clínica sem se esbarrar. As cabeças ora baixas, ora erguidas, encobriam olhares desencontrados. Eram muitos, unidos apenas pelo Sol. Tal situação repetia-se todos os dias.
Um deles movia-se da direita para a esquerda. Pretendia-se em batalha. Lá por dentro via as tropas inimigas, sentia o ardor das balas raspando, ouvia os barulhos dos coldres nos casacos, ocultava-se na relva.
Já outro, na diagonal, traçava planos venenosos de arrepiar as cobras, dirigidos a quem fosse.
Equilibrando-se sobre as tíbias, a jovem afrouxava o roupão manchado por golfos. Quase desfalecia a cada vez que lhe esbarravam o corpo ou chamasse a visão. Próxima às grades, sabia onde estava. Injusto! Rejeitada, tinha seus motivos. Ali, e disto não sabia, era admirada pelo seu olhar, um olhar de quem entendia, tudo via.
Não fora sempre assim. Melhores eram os tempos quando os encontros expunham a tensão. O que lhes ia pelas mentes permanecia igual, mas seus gestos de há muito se apaziguaram. O vigor diminuído lhes causava agitação.
Na fila que se formava algumas vezes por dia, marcada pelos anos por detrás de treliças de aço, sentava-se uma mulher. Nada mais inevitáveis do que as cápsulas saídas das suas mãos.
Pouco a pouco, um a um, intuíram que a luz era revelada pelas mãos da mulher, algo que tirava daquele patamar e os trazia para outro, um degrau abaixo do ápice.
Todos desejavam luz. Um quis a frente do outro. Colidiram.
A luz trouxe a noção das grades. O desespero de um foi subjugando o do outro. Caminhadas mais intensas, empurrões, acidentes, olhares furtivos perscrutando-se. Prevaleceu esta nova ordem.
Certo é que não há equilíbrio. Ou subida, ou descida. Uma linha de Ariadne esticou e os enredou, puxando-os para onde não gostariam de ir. A cada dia a linha dava uma volta a mais, e como uma rede de pescador, arrancava-os do oceano.
A inconsciência pôs-se a perder lugar. Os passos perseguiram outras rotas, exacerbaram-se os choques. Fiapos de luz ricocheteavam nas lajotas do pátio. O senhor das batalhas por um segundo perdeu a visão das tropas. Do homem peçonhento vazou o veneno.
A moça das tíbias continuou a mesma.
O incômodo espiralou-se e cresceu, tomou forma. Os olhos se encontraram uma, duas, três vezes. Neles, nada. Apenas ódio contido em busca de desforra.
A tensão era visível. A fila encheu e esvaziou-se. Foram obrigados a ela.
O Sol estava fora, a insegurança dentro. Ariadne tornara-se implacável.
Desespero, desespero. As grades, a luz, o Sol. O touro maior do que o homem. A correia do roupão. Os empurrões. As grades. Os arames. A fila. Teseu.
Fuga do Sol, nada do lajeado. Não, todos empurrados. Fora, fora daqui! Já para o Sol!
Foi impossível resistir. As fagulhas de luz espalhavam-se pelas frestas da alma.
A moça não mudou o rumo.
As filas já não viam disputas. Fugiam delas. O que antes ansiavam era agora socado.
A moça não se importou quando se equilibrou sobre pequenas toras. Sua expressão relaxou. Todos fugiram dela, trataram de se esconder. Sua visão lhes era repugnante.
Fora, fora! O Sol. Já o Sol! Fora, fora!
À primeira luz da manhã a treliça estava em arames. Uns repuxados, outros esticados, paralelos. A mulher das cápsulas esganada. Sumiram todas.
Não que tudo tivesse voltado. As luzes estavam ali, mas os passos buscavam as rotas antigas.
As trevas voltaram e com elas um novo desejo pelo Sol.
Edna Uip, advogada formada pela USP e empresária, está habituada a ver o mundo pelos olhos da razão, sem no entanto, deixar de cultivar atenta observação do comportamento humano e suas emoções. Autora do romance Espelhos Quebrados (Sá Editora, 2010), é escritora, ensaísta e poeta. Colaboradora do Portal Ambiente Legal, publica regularmente na Seção Ambiente Livre.
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