Por Paulo de Bessa Antunes*
A chamada “pauta verde” recentemente julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) é um importante marco na efetiva observância do artigo 225 da CF, na medida em que todos têm o dever de proteger o meio ambiente, inclusive o Judiciário que é um dos destinatários da norma constitucional. Neste contexto, destaca-se o tratamento dado pelo STF às resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente.
O Conama foi criado pelo artigo 7º da Lei nº 6.938/1981, como órgão central do Sistema Nacional do Meio Ambiente, com competências regulamentares para (1) estabelecer, mediante proposta da Sema, normas e critérios para o licenciamento de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras, a ser concedido pelos estados e supervisionado pela Sema; (2) estabelecer, privativamente, normas e padrões nacionais de controle da poluição por veículos automotores, aeronaves e embarcações, mediante audiência dos Ministérios competentes; (3) estabelecer normas, critérios e padrões relativos ao controle e à manutenção da qualidade do meio ambiente com vistas ao uso racional dos recursos ambientais, principalmente os hídricos.
O advento da Constituição de 1988 fez com que o Conama passasse a disciplinar matéria derivada diretamente da Lei Fundamental[2]. Esta peculiaridade foi mal assimilada pela doutrina especializada que manteve o entendimento de que as Resoluções regulatórias do Conama eram normas secundárias. Este é o antigo entendimento do STF que já decidira que a resolução do Conama é “ato normativo regulamentar e não autônomo, de natureza secundária”. “O parâmetro de análise dessa espécie de ato é a lei regulamentada e não a Constituição.[3]”
Entretanto, a verdade é que o mundo mudou no “domínio da política e do direito” e que “o pluralismo normativo é, assim, um fato, antes mesmo de ser ou um ideal ou um perigo; ele já existe e já é reconhecido como o atual modelo de direito”[4]. As mudanças no campo do direito têm alguns eixos principais, sendo um deles o fato de que a lei não é mais um termo unívoco e que se limita a regular as liberdades e o direito de propriedade. A realidade é que nas sociedades complexas e tecnológicas de nossos dias, a grande maioria das leis “está voltada para questões técnicas, financeiras, orçamentárias, urbanísticas, previdenciárias e tantas outras que ultrapassam o simples campo da liberdade individual ou o direito de legítima defesa”.[5] As resoluções do Conama, com natureza regulatória, se incluem no que tem sido chamado de “mutações contemporâneas do direito”.[6] Entre as quais está a deslegalização que pode ser caracterizada como a atribuição de competências para órgãos de natureza técnica e administrativa em matérias cuja complexidade e dinâmica ultrapassam os limites do processo legislativo tradicional.
É interessante consignar que o STF, em matéria ambiental, caminhou no sentido de reconhecer base diretamente constitucional às resoluções do Conama, haja vista que elas tratam de direitos fundamentais, como se deu no caso da ADI 4.615, Relator Ministro Roberto Barroso, na qual foi decidido que: “[a] legislação federal, retirando sua força de validade diretamente da Constituição Federal, permitiu que os Estados-membros estabelecessem procedimentos simplificados para as atividades e empreendimentos de pequeno potencial de impacto ambiental”[7].
Na ADPF nº 748[8] discutiu-se a legalidade da resolução Conama 500/2022 que revogava as Resoluções nºs 284/2001, 302/2002 e 303/2002. Na oportunidade, a relatora ministra Rosa Weber entendeu cabível a ADPF, cujo objeto era evitar ou reparar lesões a preceitos fundamentais resultantes de ato do Poder Público de caráter normativo. Ainda, conforme o voto da ministra Rosa Weber, o poder normativo do Conama tem por finalidade a implementação das diretrizes, finalidades, objetivos e princípios expressos na Constituição e na legislação ambiental, devendo a orientação administrativa ser compatível com a ordem constitucional de proteção do patrimônio ambiental. Logo, a revogação de normas “operacionais fixadoras de parâmetros mensuráveis”, sem a sua substituição ou atualização, compromete o adimplemento da legislação ambiental. “O ímpeto, por vezes legítimo, de simplificar o direito ambiental por meio da desregulamentação não pode ser satisfeito ao preço do retrocesso na proteção do bem jurídico.” E acrescenta a Relatora: “a revogação das Resoluções nºs 302/2002 e 303/2002 distancia-se dos objetivos definidos no artigo 225 da CF, baliza material da atividade normativa do Conama. Estado de anomia e descontrole regulatório, a configurar material retrocesso no tocante à satisfação do dever de proteger e preservar o equilíbrio do meio ambiente, incompatível com a ordem constitucional e o princípio da precaução”. A decisão, como se vê, estabeleceu um limite bastante claro à deslegalização: não é legítima a revogação de norma de proteção ambiental que crie uma lacuna normativa. Aqui, o STF se manteve fiel ao princípio de vedação da proteção insuficiente ou vedação do retrocesso ambiental que tem sido seguidamente reconhecido pela Corte[9].
A CF utiliza o vocábulo lei em diferentes sentidos. No artigo 225, por exemplo, a palavra aparece sete vezes, “nem sempre com o mesmo significado”.[10] No caso específico dos estudos prévios de impacto ambiental, o inciso IV do § 1º determina que ele seja exigido “na forma da lei”. A jurisprudência do Supremo tem entendido que a Resolução nº 001/1986 está compreendida no conceito de legislação federal, inclusive como norma geral[11]. Logo, o temo lei é polissêmico e deve ser compreendido em relação à natureza da atividade a ser regulada.
Ao partir da natureza da atividade regulada, como forma de atribuir maior ou menor grau de positividade aos atos normativos, O STF, ao julgar a constitucionalidade de Resolução nº 458/2013 do Conama, entendeu que “a resolução impugnada é ato normativo primário, dotada de generalidade e abstração suficientes a permitir o controle concentrado de constitucionalidade”.[12]
O STF deu igual tratamento às resoluções do Conama ao conferido às deliberações da diretoria colegiada da Anvisa que se prestam “à tutela de constitucionalidade in abstracto”, pois são “ato[s] normativo[s] qualificado[s] por abstração, generalidade, autonomia e imperatividade”.[13] Ainda, conforme a decisão do STF, a função reguladora das agências “não se confunde com a função regulamentadora da Administração (artigo 84, IV, da Lei Maior), tampouco com a figura do regulamento autônomo (artigos 84, VI, 103-B, § 4º, I, e 237 da CF)”.
A evolução da jurisprudência do STF relativamente à natureza jurídica das Resoluções do Conama, não significa um cheque em branco para o colegiado que, evidentemente, está submetido aos princípios constitucionais relacionados à proteção do meio ambiente, inclusive no que tange à sua composição, conforme decidido na ADPF 623 que julgou inconstitucional do Decreto nº 9.806/2019, no que reduziu a composição do Conama de 96 para 23 membros, com claro prejuízo à representação popular no órgão.
As Resoluções do Conama, quando tem por objetivo regulamentar o exercício do direito fundamental ao meio ambiente sadio e equilibrado, não são atos meramente administrativos, pois dotados de generalidade e abstração, qualificando-se para o controle direto de constitucionalidade. A legitimidade das resoluções, todavia depende de que elas não violem os princípios explícitos e implícitos da Constituição, tais como o da vedação de proteção insuficiente (vedação de retrocesso em matéria ambiental) e da participação. O atual entendimento do STF parte de uma compreensão profunda das mutações causadas no direito e em seus institutos, pela emergência da questão ambiental como um tema central da sociedade contemporânea.
[2] As demais competências do Conama não têm natureza regulamentar, não sendo objeto de exame pelo presente artigo.
[3] ADI 3074 AgR / DF, Relator Min. Teori Zavacki, Julgamento: 28/05/2014, Publicação: 13/06/2014
[4] HESPANHA, António Manuel. Pluralismo jurídico e direito democrático. São Paulo: Annablume. 2013, p. 63.
[5] ANTUNES, Paulo de Bessa. Uma nova introdução ao direito. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 3ª edição. 2021, p. 131-132
[6] COMMAILLE, Jacqes. À quoi nous sert le droit? Paris: Gallimard. 2015
[7] Resolução Conama 237/1997, art. 12, § 1º.
[8] ADPF 749, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Julgamento: 14/12/2021, Publicação: 10/01/2022
[9] Dentre outras: ADI 5676, Relator Min Ricardo Lewandowski. Julgamento: 18/12/2021. Publicação: 25/01/2022
[10] ANTUNES, Paulo de Bessa. Uma nova introdução ao direito. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 3ª edição. 2021, p. 132
[11] ADI: 4069 RJ, Relator: EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 08/09/2020, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 24/09/2020)
[12] STF – ADI: 5547 DF 4001523-31.2016.1.00.0000, Relator: EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 22/09/2020, Data de Publicação: 06/10/2020
[13] ADI 4874, Relatora Min. ROSA WEBER, Julgamento: 01/02/2018, Publicação: 01/02/2019
*Paulo de Bessa Antunes é professor associado da UniRio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), membro da comissão mundial de Direito Ambiental da IUCN, presidente da Comissão de Direito Ambiental do IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros) e presidente da UBAA (União Brasileira da Advocacia Ambiental).
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 25/05/22
Edição: Ana Alves Alencar
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