Por Vladimir Passos de Freitas*
O caso se passa na cidade de Newport, localizada no País de Gales, Reino Unido, onde James Howells, 37 anos de idade, um engenheiro que trabalhava com inteligência artificial (IA), em 2013 minerou a criptomoeda bitcoin, mas jogou fora o disco rígido (hard disk ou simplesmente HD) em que sua chave de acesso estava armazenada.
Não será demais lembrar que chave de acesso “é um código alfanumérico, ou seja, de números e letras, criptografado, que permite o acesso às suas reservas de bitcoins ou outras criptomoedas. É a única forma verdadeira de garantir que você é o dono destes ativos” [1].
Segundo consta, Howells tinha dois discos rígidos de laptop idênticos, sendo que um estava em branco e o outro continha 8.000 bitcoins [2]. O problema é que em 2013 ele jogou fora o HD errado, ou seja, aquele onde a chave de acesso estava guardada, e agora quer recuperá-lo no meio de milhares de toneladas de lixo. Isto porque Howells não se conforma com a ideia de ter perdido a chance de sua vida. É que as 8.000 bitcoins, que na época não tinham valor significativo, atualmente correspondem a quase 1 bilhão de reais (R$ 966,7 milhões, mais exatamente).
Na busca do tesouro perdido, Howells requereu ao Conselho da Cidade de Newport permissão para procurar o HD no aterro sanitário que serve a cidade. Para tanto, conseguiu duas empresas especializadas que se dispuseram a assumir o risco da empreitada, em troca de receber 30% do produto final. Outros 30% seriam para a sua equipe de trabalho, 10% seriam para o município, beneficiando os seus moradores, e ele ficaria com os restantes 30% [3].
Ocorre que o conselho indeferiu tal pretensão, sob o argumento de que as buscas, revirando o material que se encontra no aterro sanitário, acabariam causando danos ambientais, através da contaminação do solo. Howells contrapõe a afirmativa, dizendo contar no projeto com uma equipe ambiental e outra de inteligência artificial, que participariam das buscas [4].
Para compreender a controvérsia, é preciso saber o que é um aterro sanitário. No Brasil, a definição é dada pela Associação Brasileira de Normas Técnicas que, na NBR 8419, dispõe:
“3.2 Aterro sanitário de resíduos sólidos urbanos. Técnica de disposição de resíduos sólidos urbanos no solo, sem causar danos à saúde pública e à sua segurança, minimizando os impactos ambientais, método este que utiliza princípios de engenharia para confinar os resíduos sólidos à menor área possível e reduzi-los ao menor volume permissível, cobrindo-os com uma camada de terra na conclusão de cada jornada de trabalho, ou a intervalos menores, se necessário” [5].
O aterro sanitário deveria ser adotado em todos os municípios brasileiros, conforme determina o artigo 54, da Lei 12.305/2010, que dispõe sobre o Plano Nacional de Resíduos Sólidos. Contudo, a implantação vem sendo reiteradamente adiada no Congresso Nacional. Assim, nada menos do que cerca de 3.000 dos 5.570 municípios brasileiros despejam seus resíduos em “lixões”, ou seja, em grandes depósitos ao ar livre, sem a menor cautela [6].
Com o aumento da população e um consumismo cada vez maior, o problema do destino dos resíduos vem aumentando gradativamente. Por tal razão, muitos municípios unem-se em consórcios, dividindo tarefas e escolhendo uma área comum, de forma a diminuir os custos.
Nos aterros sanitários os resíduos chegam em caminhões e são direcionados de forma seletiva. Devem ser separados por mantas impermeabilizadoras e ter tratamento do chorume, queima do biogás e drenagem de águas pluviais. Alguns tipos de resíduos exigem tratamento especial. Por exemplo, resíduos hospitalares sépticos, conforme norma da ABNT citada, “requerem condições especiais quanto ao acondicionamento, coleta, transporte e disposição final por apresentarem periculosidade real ou potencial à saúde humana”.
Assim posta a questão, imaginemos que James Howells tivesse se mudado para o Brasil, exercendo as funções de especialista em IA em uma empresa, e que aqui, por engano, tivesse jogado o seu HD no lixo do seu condomínio, o qual teria ido parar em um aterro sanitário.
No Brasil, cabe aos órgãos ambientais estaduais conceder licença ambiental para o funcionamento dos aterros sanitários. No estado do Paraná, a Resolução Cema nº 094, de 04/11/2014, regula a matéria, estabelecendo requisitos no artigo 15. Por exemplo, localizar-se fora da área de influência direta do manancial de abastecimento público.
Em São Paulo, que é a maior capital do país, produz-se 12 mil toneladas de lixo por dia. Em Palmas, capital de Tocantins, que registrou no censo de 2020 uma população de 306.296 habitantes, a menor entre as capitais, descartam-se 340 toneladas de lixo por dia.
Assim, na maior ou na menor capital brasileira, Howells teria que requerer permissão para procurar seu HD ao órgão ambiental. Na Cetesb, em São Paulo, ou na Naturatins, em Tocantins, ele teria dificuldades em conseguir deferimento, pois revolver milhares de toneladas de lixo variado poderia significar, entre outras coisas, a contaminação das águas subterrâneas, do solo e a liberação de gás metano, que é o segundo vilão do aquecimento global, atrás apenas do gás carbônico, o CO2.
Além disto, se aberto o precedente, outros poderiam reivindicar acesso ao material acumulado, alegando perda econômica ou afetiva (e.g., uma antiga foto de família).
Mas no Brasil, ao contrário do País de Gales, Howells teria fácil acesso ao Poder Judiciário. E aí a decisão, possivelmente, lhe seria desfavorável, pois os argumentos contrários são muito fortes.
Todavia, o juiz poderia entender que o valor expressivo colocado em circulação seria muito mais benéfico do que perdido no aterro sanitário. Não só pelo que muitos ganhariam e aplicariam, mas também pelos 10% que seriam destinados ao município. Nada menos do que R$ 100 milhões poderiam ser aplicados na cidade em educação, saúde, moradia, transporte, lazer, segurança e outras tantas necessidades. O artigo 6º da Constituição Federal daria a base jurídica para a fundamentação.
Em tal situação, duas conclusões se abririam, tudo a depender do critério do juiz. Como é comum em Direito, ambas encontrariam base de sustentação.
E você leitor, como decidiria?
[1] Disponível em: https://www.google.com/search?q=chave+de+acesso+das+bitcoins&rlz=1C1SQJL_pt-BRBR863GB863&sxsrf=ALiCzsbmp4U_cfVL0apnioOx93An2b84YQ%3A1660858906061&ei=GrL-YvqnA-Wc0AaK4ZfIBA&ved=0ahUKEwj6nPjIrdH5AhVlDtQKHYrwBUkQ4dUDCA4&uact=5&oq=chave+de+acesso+das+bitcoins&gs_lcp=Cgdnd3Mtd2l6EAM6BwgAEEcQsAM6BwgAELADEEM6CggAEOQCELADGAE6EgguEMcBENEDEMgDELADEEMYAjoVCC4QxwEQ0QMQ1AIQyAMQsAMQQxgCOgUIABCABDoGCAAQHhAWOgUIIRCgAUoECEEYAEoECEYYAVDfCFiMJWDjKGgBcAF4AIAB0wGIAc4PkgEGMC4xMi4xmAEAoAEByAESwAEB2gEGCAEQARgJ2gEGCAIQARgI&sclient=gws-wiz. Acesso em 18 de ago. 2022.
[2] Hamilton, Isabel Asher. Insider. A busca para encontrar US$ 181 milhões em bitcoin enterrado em um lixão. 24 jul. 2022. Disponível em: https://www.businessinsider.com/james-howells-threw-away-bitcoin-dump-masterplan-get-back-2022-7. Acesso em 17 ago. 2022.
[3] The Capital Advisor. Homem Que Jogou 8 Mil Bitcoins no Lixo Tem Novo Plano para Recuperá-los. Disponível em: https://comoinvestir.thecap.com.br/homem-que-jogou-8-mil-bitcoins-no-lixo-tem-novo-plano-para-recupera-los. Acesso em 18 ago. 2022.
[4] BBC News, Bitcoin: britânico tenta recuperar HD que jogou no lixo com milhões em criptomoeda. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-62397663. Acesso em 18 de ago. 2022.
[5] ABNT. NBR 8419, Apresentação de projetos de aterros sanitários de resíduos sólidos urbanos. Disponível em: http://licenciadorambiental.com.br/wp-content/uploads/2015/01/NBR-8.419-NB-843-Apresentac%C3%A3o-de-Projetos-de-Aterros-Sanitarios-RSU.pdf. Acesso em 16 ago. 2022.
[6] Recicla Sampa. Aterros sanitários x lixões: entenda a diferença. Disponível em: https://www.reciclasampa.com.br/artigo/aterros-sanitarios-x-lixoes:-entenda-a-diferenca. Acesso em 18 ago. 2022
*Vladimir Passos de Freitas é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 23/08/2022
Edição: Ana Alves Alencar
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