MEIO AMBIENTE NÃO PODE SER PIVÔ DE JOGOS DE INTOLERÂNCIA
Episódios como a destruição do laboratório de pesquisas da Aracruz, no sul do País, e o homicídio da missionária americana Dorothy Stang por conta de sua luta contra a grilagem de terra e a extração ilegal de madeira na Amazônia impõem uma reflexão: estaríamos dando livre vazão à Era do fundamentalismo “verde”?
Por Marici Capitelli
Intolerância, destruição e mortes. Esses atos fazem parte das ações rotineiras de fundamentalistas religiosos e terroristas ao redor do mundo. Mas a pacata cidade de Barra do Ribeiro, no interior do Rio Grande do Sul, foi palco de um desses ataques devastadores. E o que é pior: em nome da Natureza.
Usando da justificativa de serem vítimas de prejuízos ambientais decorrentes da monocultura do eucalipto e de outros “latifúndios verdes”, integrantes do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) arruinaram a sede do horto florestal da Fazenda Barba Negra, de propriedade da companhia Aracruz Celulose.
Acredite quem puder, mas o ato fez parte das comemorações do Dia Internacional da Mulher. Era madrugada do dia 8 de março de 2006 e cerca de 2 mil pessoas, a maioria mulheres, colocaram por terra o centro de pesquisas da Aracruz. O vandalismo transformou em poeira quase 20 anos de estudos sobre melhoramento genético realizados por uma outra mulher, a analista de laboratório, Santa Isabel Barros Gonçalves. Os invasores também sacrificaram cinco milhões de mudas. Os danos materiais que causaram foram estimados em US$ 20 milhões. Eles realmente fizeram muito estrago.
Só quando chegou ao local, Isabel teve a dimensão de sua tragédia pessoal e profissional. O seu bem arrumado laboratório – porque ela é uma perfeccionista – tinha se transformado em um mar de vidros, sujeira e desolação. Nada sobrara intacto. “Além da destruição, tinham marcas da maldade. Eles misturaram e jogaram no pátio quase 400 mudas de sementes. Acho que nunca vou perdoar aquelas pessoas”, desabafa Isabel.
“Para me consolar, algumas pessoas diziam que a Aracruz tinha seguro. Eu dizia que não estava sofrendo pelos prejuízos financeiros, mas pelas perdas afetivas”, conta Isabel, com olhos cheios de lágrimas, quando relembra o episódio. “É como se tivessem arrancado um pedaço de dentro de mim. Eu acompanhei o processo de construção do laboratório e desempacotei cada peça para montá-lo. Isso aqui é a minha vida”.
Essa gaúcha de 53 anos tornou-se uma das mais recentes vítimas da intolerância ambiental no País. Outra vítima desse tipo de violência, que teve um destino fatal no ano passado, foi a missionária americana Dorothy Stang, assassinada aos 73 anos, no Pará, por conta de sua luta contra a grilagem de terra e a extração ilegal de madeira na Amazônia.
Fundamentalismo “verde” – Os dois casos, que conquistaram ampla repercussão nacional e internacional, suscitam questões que exigem respostas e pronta ação. A intolerância estaria contaminando os movimentos ambientalistas brasileiros? Estaríamos dando livre vazão ao fundamentalismo “verde”?
“A intolerância nos meios ambientalistas não pode existir de jeito nenhum. Nós temos é que canalizar nossas lutas para proteger as florestas”, pondera o ecólogo Paulo Nogueira-Neto.
Pioneiro, ele começou a se interessar pela defesa do meio ambiente em 1948, quando trabalhava com zoologia. “Na época, dava para colocar em uma van todas as pessoas que se interessavam por ecologia no País”, gosta de contar.
Segundo o ecólogo, os ambientalistas podem e devem defender suas idéias, “mas não a ponto de causar tamanho prejuízo”. Em sua avaliação, a atitude de vandalismo no laboratório de pesquisa da Aracruz foi um ato isolado, mas abriu um “péssimo precedente” em matéria de Direitos Humanos.
“Com um ato como esse, as pessoas não se sentem mais seguras em relação à obediência da lei”. Nogueira-Neto sustenta que os movimentos ambientalistas, como atividade humana que são, devem respeitar os preceitos legais. “Por exemplo, estamos trabalhando por mudanças nas leis de proteção da Mata Atlântica. Se não concordamos com a situação atual, que a modifiquemos pelos caminhos legais”, assevera o ecólogo.
Embora não tenha feito um estudo específico sobre as relações do MST e da Aracruz, o sociólogo Sérgio Carneiro considerou o episódio “indevido e desproporcional”. Para ele, com a invasão, o MST e a Via Campesina perderam qualquer empatia que a opinião pública pudesse ter em relação à sua causa. “O objetivo dos movimentos sociais é conseguir resolver seus problemas, mas trafegam muito melhor quando conseguem amplo apoio da sociedade”, observa o especialista que leciona a disciplina Movimentos Sociais e Lutas Ambientais na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
Em sua avaliação, a intolerância – ainda que condenável – sempre foi praticada historicamente. “A intolerância surge diante da incapacidade da sociedade e do Estado de resolver seus conflitos”, explica Carneiro.
Já o antropólogo, geógrafo e ambientalista Maurício Waldman afirmou que a tendência dos conflitos é se multiplicarem se a essência da questão ambiental não for resolvida. “Não podemos pensar em criminosos e santos. A Aracruz tem seu papel na sociedade e o MST também. Então, o que precisaria ser discutido entre eles são políticas de reciclagem para o consumo de papel no Brasil”, acredita o antropólogo.
Citando estatísticas de estudos realizados na Universidade de São Paulo (USP), Waldman comenta que o papel branco descartado no Brasil é suficiente para circundar a Terra 48 vezes pela linha do Equador. “Se somarmos os demais tipos de papel, seria possível viajar 25 vezes, ida e volta, até a Lua. O Brasil joga fora 4.980 toneladas de lenço de papel por ano e 15 mil toneladas de guardanapos. Não é uma aberração?”, questiona Waldman.
Ações criminalizadas – O deputado federal João Alfredo (PSOL-CE) em seu pronunciamento sobre a invasão ao laboratório da Aracruz assumiu uma posição que pode causar perplexidade a muitos eleitores. “Não podemos condicionar o debate à visão maniqueísta de ser a favor ou contra a ocupação. Como representantes do povo brasileiro, nós, parlamentares, temos o dever de procurar entender as razões da indignação das mulheres camponesas. Ademais, não podemos recorrer a soluções simplistas e conservadoras de criminalizar a ação dos movimentos sociais”, defendeu o deputado.
Mas não foi dessa maneira que a Justiça lidou com o problema. O Ministério Público do Rio Grande do Sul denunciou 27 mulheres e 10 homens pela invasão, incluindo o líder do movimento, João Pedro Stedile, que após o episódio cumprimentou as “companheiras pela coragem”. O grupo foi denunciado pelos crimes de dano qualificado, furto qualificado, formação de quadrilha e bando armado, seqüestro e cárcere privado e lavagem de dinheiro.
O promotor que fez a denúncia, Daniel Indrusiak, afirmou que não poderia correr o risco de fazer uma denúncia difusa, com centenas de envolvidos porque seria ineficiente. “Tenderia a consumir um tempo demasiado e levar à impunidade dos responsáveis”, esclarece o promotor.
O procurador geral do Rio Grande do Sul, Roberto Bandeira Pereira, garante que não se trata de ser contra os movimentos sociais. “Apenas temos a obrigação de coibir os excessos e a prática de crimes”.
O dia seguinte – A pesquisadora Isabel estava decidida, já no dia seguinte aos atos de vandalismo, a recomeçar do zero e reerguer, custe o que custar, o centro de pesquisas. Junto com outras três funcionárias, elas se puseram a trabalhar arduamente. Em três dias, as quatro mulheres colocaram a ordem possível na destruição que as trabalhadoras da Via Campesina fizeram em poucas horas.
“Era a resposta que queríamos dar para aquelas mulheres. Os facões delas não são capazes de destruir o que foi construído com amor. Hoje, a única certeza que tenho é que fiquei mais decepcionada com o ser humano, mas sei que sou uma mulher de sorte, pois trabalho em um lugar paradisíaco”.
Se o ser humano perdeu parte do encanto para essa mulher de fibra, a Natureza exuberante e os animais que a rodeiam, como emas e seus filhotes que costumam comer coquinhos praticamente na porta de entrada do centro de pesquisas, vão ser sempre seu consolo. “Afinal, eles desconhecem a intolerância”, conclui Isabel.
Marici Capitelli é jornalista e ativista ambiental
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