Por: Eliana Rezende
Olhando pela vidraça da janela da sala, chegando como uma novidade esperada, vem o vendedor de enciclopédia. Eram eles que traziam o mundo em puzzle e informações à conta-gotas em formatos de verbete.
Sempre bem engomados, ternos escuros, camisa de um branco reluzente. sapatos bem engraxados e as meias combinando ora com o sapato, ora com as calças, cabelos bem penteados, muitas vezes usando alguma pomada, sorriso aberto, voz macia. Ofereciam janelas para o mundo direto de nossas portas quando de dentro de suas malas faziam surgir coloridos livros, imagens, textos e toda uma parafernália de estímulo aos sentidos e à imaginação.
Sonhos, fantasias e até o mito de mascatear cultura vinham em meio à suas páginas ofertadas em diferentes composições e possibilidades. Muitas vezes folhadas ávidamente por dedos rápidos e olhares curiosos de clientes domiciliares.
Materializavam o sentido do saber e informação de um mundo que corria analogicamente, com notas de rodapé e com pesquisas cruzadas manualmente. Artefatos construídos com rigor interno e estética que fosse agradável aos olhos. Em grandes formatos favoreciam a visibilidade de letras e imagens, as capas duras ornadas em detalhes dourados faziam a diferença em qualquer prateleira ou estante. Perfiladas lado a lado davam a dimensão da abrangência dos temas que tratavam. Tê-las, por largos tempos era sinônimo de status social e cultural.
As enciclopédias não eram para apressados, diletantes ou preguiçosos. Eram para os que tinham o prazer da degustação por caminhos de indagação e pesquisa. Por aqueles que de fato liam e buscavam conexões e compreensões.
Eram para os que a noite davam aos filhos a opção de escolher entre coloridos livros infantis histórias de duendes, fadas, Sacis, Emílias.
As enciclopédias foram por largos tempos sonhos de consumo e símbolo de status de camadas eruditas da população. Tê-las significava entre outras coisas ter acesso a um conjunto de informações diversas e grandes possibilidades de gerar conhecimento.
Mas o tempo foi passando e o personagem com o terno engomado e sua mala preta cheia de livros e folhetos demonstrativos não encontra mais nossas portas.Subiu no seu fusca e nos abandonou no tempo e no espaço.
Hoje é uma rememoração distante, quase perdida nas névoas do tempo.
O mundo wikipediano não tem mais lugar para este tipo urbano que habitou por tantas décadas nosso imaginário. No mundo de web 2.0, 3.0 o que temos são links, hiperlinks e uma enciclopédia colaborativa escrita por anônimos e reconstruída todos os dias. Suas fontes, muitas vezes duvidosas e equivocadas, são consultadas milhões de vezes em todas as línguas e dialetos possíveis e servem aos tempos que temos: de pressa, superficialidade e muitas vezes incapacidade de pesquisar, ler, compreender, construir conexões e tecer elucubrações e sínteses.
Não há aqui saudosismo piegas: há apenas a constatação da configuração de um novo tempo e de nossa relação com estes saberes constituídos e reunidos em um determinado local.
O saber era algo hierarquizado, localizado por verbetes e armazenado para consumo linear. Hoje a leitura e a apropriação da informação segue diferentes trilhas e possibilidades, algumas bem rasas outras com algumas laminas de profundidade.
O futuro será o melhor juiz deste tempo que produz informação como nenhuma outra época da história da humanidade, mas tenho cá minhas dúvidas se a produção de conhecimento obedeça a mesma métrica e curva ascendente. Temo que a qualidade apresenta-se inversamente proporcional à quantidade.
Eliana Rezende é diretora da ER Consultoria, Gestão de Informação e Memória Institucional, doutora em História Social – Cultura e Cidades – UNICAMP, mestre pela PUC/SP, especialista em Preservação e Conservação de Colecções de Fotografia – Lisboa, Portugal com participação em vários projetos de política de preservação digital, proteção da memória e gestão documental governamentais e corporativos. Articulista do Portal Ambiente Legal.
Publicado em 17/março/2017
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