Por Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos*
Dificilmente um engenheiro brasileiro formado mais recentemente, incluindo aqueles provenientes das escolas de engenharia tidas como as melhores do país, saberá projetar ou construir (ou até nem saberá o que mesmo venha a ser) um “pano de pedra” para proteção superficial de taludes, um muro de contenção de pedras rejuntadas, um revestimento primário em estradas não pavimentadas, paliçadas de pedra para dissipação de energia hidráulica, pequenos aterros/barragem, estruturas simples de vertedouros com pranchas de madeira, uma proteção de margens de córregos com sacos de solo-cal, uma pequena ponte estroncada de madeira, um dreno “espinha de peixe”, enfim, todo um enorme elenco de obras e soluções de caráter simples, de extrema eficiência técnica e perfeita compatibilidade ambiental e social, e que formidáveis serviços vem prestando ao país ao longo de tanto tempo.
Mas, sem dúvida, esses mesmos jovens engenheiros terão formação escolar suficiente para colaborar em projetos de grandes barragens, usinas nucleares, pavimentos rígidos e flexíveis de autopistas, estruturas atirantadas de contenção, ousadas pontes estaiadas, túneis longos e tantas outras espetaculares e sofisticadas obras de engenharia, que muito nos orgulham. É como se, por um motivo qualquer, a engenharia brasileira (engenharia, arquitetura, geologia, agronomia) tivesse passado a associar o conceito de obras simples, ou, em um sentido mais abrangente, de soluções simples com a imagem de tecnologias ultrapassadas e/ou ineficientes.
Obviamente, não se trata de se pretender ingenuamente que obras tecnologicamente complexas possam ser em qualquer situação substituídas por obras simples, ambas evidentemente têm seu lugar e hora. E, diga-se de passagem, podem e devem conviver em um mesmo empreendimento. No entanto, o fato real é que pela perda da memória decorrente da falta de devido registro bibliográfico e pelo já falecimento de quase toda última geração de engenheiros e mestres de obra que dominaram, em grande parte empiricamente, o uso de obras simples no país, assim como pelo desprezo com que hoje escolas de engenharia tratam a questão, ou simplesmente não a tratam, a engenharia brasileira está na prática deixando progressivamente de contar com a possibilidade real de ter essa alternativa como solução de tantos de seus problemas, mesmo nas situações (e são inúmeras) em que ela, a obra simples, constitua a alternativa de engenharia mais adequada técnica, ambiental e economicamente para a solução pretendida.
Resultado: ou o problema fica sem solução e progressivamente se agrava (o que é mais comum) ou se adota, paradoxalmente por falta de conhecimento, uma solução sofisticada e cara que não seria adequada nem necessária. E que muitas vezes, apesar dos altos custos envolvidos, acaba em fragoroso insucesso técnico.
É de se imaginar a gravidade econômica e social dessa conjunção tecnológica para um país, como o Brasil, de dimensões continentais, fisiografia tropical diversificada e crônica escassez de recursos. Vejamos um exemplo didático. A rede brasileira de estradas de rodagem alcança um total de aproximadamente 1.800.000 quilômetros, dos quais cerca de 1.400.000 (77%) correspondem a estradas vicinais e rurais de terra. Somente no Estado de São Paulo, o estado mais desenvolvido do país, a rede rodoviária total atinge cerca de 200.000 quilômetros, dos quais perto de apenas 32.000 correspondem a rodovias pavimentadas, ou seja, menos de 16% do total.
Desses números depreende-se de forma clara e inequívoca a importância da rede rodoviária de estradas de terra para a economia nacional e para as economias estaduais e municipais. Grande parte de nossa produção agrícola e agroindustrial é ainda transportada, especialmente nos trechos iniciais de suas rotas, por estradas de terra. Como também, na zona rural milhões de pessoas utilizam-se diariamente dessas estradas nas suas locomoções para o trabalho, para escolas, para atendimentos de saúde, para vender e comprar mercadorias, enfim para todos os tipos de atividades humanas que exijam algum deslocamento.
Pois bem, a partir especialmente dos anos 60/70 procedeu-se uma mudança radical nas tecnologias de conservação das estradas de terra. Do antigo sistema apoiado na histórica figura do “conserveiro”, qual seja o funcionário cuja missão permanente estava na da correção de pequenos defeitos em um pré-combinado trecho viário (algo como 10 quilômetros por “conserveiro”), impedindo, através de soluções simples e localmente adaptadas, a evolução de problemas por atacá-los logo em seu início, passou-se aceleradamente para a conservação mecanizada, essencialmente baseada na utilização sistemática da “patrol”, qual seja a moto-niveladora. A adoção intempestiva da tecnologia de conservação apoiada na ilusória eficiência da “patrolagem” sistemática implicou na contínua raspagem/remoção da camada de solos de melhor qualidade compactada pelo tráfego e por decorrência, no progressivo aprofundamento da estrada (pista em caixão), dificultando a drenagem, expondo camadas de solo a cada vez menos consistentes e potencializando extraordinariamente os processos erosivos destrutivos e o assoreamento de drenagens naturais (a rede de estradas de terra constitui hoje a principal causa do assoreamento de córregos e represas rurais, assim como uma das principais origens da formação de ravinas e bossorocas). Enfim, a patrolagem sistemática tem significado um verdadeiro desastre tecnológico para nossa rede de estradas de terra, ajudando muito explicar o atual lamentável estado em que se encontram. Agravantemente, com o desaparecimento da figura do “conserveiro” e dos mestres de obra que orientavam seus trabalhos muita técnica boa e simples se perdeu, uma vez que esses conhecimentos empíricos nunca foram devidamente registrados ou ensinados para o aproveitamento de outras gerações de funcionários.
A estratégia até agora prevalecente do combate às enchentes na Região Metropolitana de São Paulo, pela qual se privilegia as grandes obras hidráulicas de alargamento/aprofundamento/canalização do rio Tietê e tributários e, mais recentemente, a construção de piscinões (verdadeiros atentados sanitários e ambientais no tecido urbano), deixando totalmente de lado a alternativa de se combater a erosão e recuperar a capacidade de infiltração e retenção de águas de chuva através da implementação um conjunto médias de pequenas intervenções, expõe claramente as graves conseqüências econômicas e ambientais do abandono cultural e preconceituoso das soluções simples.
Um outro exemplo. Por puro modismo tecnológico o solo grampeado associado ao concreto projetado com tela de armação, técnica também conhecida por “tela argamassada”, vem sendo atualmente adotado como solução para os mais variados problemas de estabilidade de taludes. Seja o caso de uma suspeita de ruptura profunda, seja o caso do risco de desprendimento de blocos de rocha, seja o caso de uma desagregação ou uma erosão superficial, ou outro fenômeno qualquer, lá está a “milagrosa” solução: solo grampeado e tela com concreto projetado, alternativa cara e exigente de equipamentos pesados para sua execução. Pois bem, em grande parte dos casos em que a tela argamassada isoladamente seria tecnicamente indicada (problemas superficiais de estabilidade) aplicar-se-ia, com muito menor custo, com emprego de materiais e mão de obra locais, o simples e eficiente “pano de pedra” (uma camada de pedras assentadas e rejuntadas solidariamente sobre a superfície do talude). Porém, desgraçadamente, alternativas simples como essa já não estão mais presentes na lembrança de contratantes e contratados.
É preciso que a engenharia nacional entenda que obras e soluções simples não significam tecnologias ultrapassadas. Pelo contrário, constituem um campo tecnológico ao qual inclusive deve, por sua importância, ser dada uma enorme atenção em pesquisa tecnológica para o desenvolvimento de novas concepções e inovações. Nesse aspecto, recentemente foi desenvolvida pelo autor do artigo a técnica Cal-Jet, prática, barata e simples, capaz de eficientemente proteger um talude de solo da erosão através da pulverização de calda de cal com aditivo aglutinante.
Enfim, um saudável retorno ao princípio básico de sempre aliar-se a busca da eficiência tecnológica com a busca da maior economicidade possível automaticamente implicará em uma convivência virtuosa entre obras simples e sofisticadas. Para tanto faz-se indispensável que nossas escolas de engenharia, como também as escolas de arquitetura, geologia e agronomia, dediquem a atenção devida ao ensino e ao registro bibliográfico dessas soluções de engenharia mais simples, talvez até com a adoção de disciplina específica para tanto. Exemplo virtuoso está no MANUAL TÉCNICO PARA CONSERVAÇÃO E RECUPERAÇÃO DE ESTRADAS VICINAIS DE TERRA, que teve recentemente sua 3ª edição lançada pelo IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas e pela ABGE – Associação Brasileira de Geologia de Engenharia (DOWNLOAD).
Seria também muito salutar e oportuno que as instituições clássicas da engenharia nacional (Sistema CONFEA/CREAs, Institutos e Clubes de Engenharia, Associações Técnicas e profissionais…), assim como as organizações e instituições do setor ambiental colocassem o tema Obras Simples em pauta e o acolhessem em seus eventos técnicos.
ALGUNS EXEMPLOS DE OBRAS E SOLUÇÕES SIMPLES:
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*Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos, Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas. Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Diálogos Geológicos”, “Cubatão”, “Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções”, “Manual Básico para elaboração e uso da Carta Geotécnica”, “Cidades e Geologia”. Consultor em Geologia de Engenharia e Geotecnia, (santosalvaro@uol.com.br)
Fonte: ARS Geologia
Publicação Ambiente Legal, 09/10/2021
Edição: Ana Alves Alencar
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