Por Luís Fernando Guedes Pinto e Roberta del Guidice*
Os governadores dos sete Estados do Sul e do Sudeste do Brasil se reuniram em 21 de outubro e publicaram a Carta de São Paulo. Nela, anunciaram que, “como fruto concreto do esforço conjunto, será assinado o Tratado da Mata Atlântica, em que os Estados se comprometem a restaurar 90 mil hectares”.
A iniciativa merece ser analisada à luz da situação atual do bioma, reconhecido como patrimônio nacional pela Constituição e tendo o seu uso e conservação regidos por uma lei especial – a Lei da Mata Atlântica (Lei n.º 11.428/2006).
O bioma é o mais devastado entre os seis biomas que ocorrem no País e resta somente 24% de sua cobertura florestal original, valor abaixo do mínimo necessário apontado pela ciência para a manutenção da sua biodiversidade, que deveria ser de 30%. Além disso, está distribuído de maneira muito desigual, com regiões com menos de 5% de cobertura florestal e somente uma pequena parte do que restou está protegida por unidades de conservação. Na Mata Atlântica está grande parte das espécies ameaçadas de extinção do Brasil e essa região tem sido palco de desastres e tragédias decorrentes dos eventos extremos consequentes das mudanças climáticas, desmatamentos ilegais e ocupações irregulares.
Embora tenha sido observada uma redução no seu desmatamento em 2023, a perda de floresta persiste em patamares altos para a situação crítica do bioma. Em 2022 perdemos 78 mil hectares de matas. O compromisso e a obrigação do País são alcançar o desmatamento zero em 2030 em todos os biomas. A Mata Atlântica corre o risco de não sobreviver se continuar sendo atacada até 2030, por isso a ambição deve ser o fim imediato do desmatamento. Grande parte dessa tarefa cabe aos governos estaduais. Entre os líderes do desmatamento no bioma estão Minas Gerais, Paraná e Santa Catarina – e os três assinaram o novo compromisso.
Além do fim imediato do desmatamento, é importante restaurar suas áreas degradadas, o que é reconhecido pelos governadores no tratado. É necessário, entretanto, fazer isso em grande escala e alta velocidade para retirar o paciente da UTI e alcançarmos uma cobertura florestal mínima para a sobrevivência da floresta, a permanência das suas espécies e para a garantia dos serviços ecossistêmicos que ela oferece para grande parte da população brasileira, como água, regulação das chuvas, contenção de enchentes, energia elétrica e alimentos.
A obrigação dos governadores para a restauração da Mata Atlântica é a aplicação efetiva da lei do bioma e a implementação do Código Florestal – e aqui cabe explorar como as obrigações legais se relacionam aos 90 mil hectares anunciados. Juntos, os sete Estados precisam recuperar 2,3 milhões de hectares de florestas que protegiam nascentes e beiras de rio, Áreas de Preservação Permanente, desmatadas ilegalmente, segundo estudo publicado por pesquisadores da SOS Mata Atlântica, Imaflora, Universidade de São Paulo (USP) e Observatório do Código Florestal. A obrigação legal supera 25 vezes o número anunciado e existe desde 2012. Nenhum dos sete Estados precisa restaurar menos de 100 mil hectares individualmente. Até o momento, não temos conhecimento de um documento que embase a meta dos 90 mil hectares anunciada nem quanto cabe a cada Estado. Recordamos que os sete Estados também precisam cumprir com o requisito da Reserva Legal do Código Florestal, onde outro 1,3 milhão de hectares precisa ser restaurado (preferencialmente) ou compensado.
Vale destacar que alguns Estados têm outros compromissos, além da obrigação do Código Florestal. Alguns assinaram o compromisso de neutralidade de emissões de gases de efeito estufa até 2050, como Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul. Somente no plano de São Paulo existe a meta de restaurar 1,5 milhão de hectares de vegetação nativa.
Se cada Estado já tem as suas obrigações, a ambição justa para a Mata Atlântica deve ser a restauração de 15 milhões de hectares, definidos pelo Pacto pela Restauração da Mata Atlântica, uma iniciativa que reúne ONGs, universidades, empresas e governos. Como resultado da capacidade e do potencial dessa iniciativa, a Mata Atlântica foi apontada como um dos dez ecossistemas bandeira pela Década da Restauração de Ecossistemas da ONU.
É claro que compromissos que visem a restaurar áreas degradadas e trazer de volta a vegetação nativa são bem-vindos, mas devemos lembrar que esses anúncios costumam ser recorrentes, mas sem muito compromisso com a implementação. Vale lembrar que alguns desses Estados se comprometeram com metas de restauração muito superiores para a iniciativa 20×20, mas pouco foi implementado na prática. Historicamente, governos estaduais se comprometeram com plantar milhões e milhões de mudas e, salvo algumas raras exceções, não há registros e monitoramento que apontem onde essas supostas árvores se encontram. Por outro lado, no Brasil e, em especial, na Mata Atlântica, reunimos muito conhecimento de como restaurar áreas degradadas, como ganhar escala, onde são as áreas prioritárias, temos exemplos de técnicas inovadoras que vão muito além do mero plantio de árvores e que podem ser tão ou mais eficientes. É preciso reunir setor privado, academia e sociedade civil junto com os programas de governo, para que haja eficiência, qualidade e escala necessária. É, também, fundamental para êxito da proposta que haja transparência, garantindo assim o acesso à informação e à participação da sociedade.
Diante deste contexto, a meta anunciada representa uma contribuição, no mínimo, tímida. Além disso, aponta falta de articulação e de ambição, algo que passou a ser entendido como atitude necessária pelos principais líderes do mundo para enfrentar as urgentes crises do clima e da biodiversidade, que ameaçam o bem-estar e a prosperidade do planeta.
A Mata Atlântica deve ser o bioma com uma grande ambição. Reúne conhecimento, tecnologia, capital e experiências suficientes para alcançar o desmatamento zero e a restauração em grande escala, além de ser uma necessidade para evitar tragédias e garantir prosperidade para o presente e para o futuro do Brasil. Colocamo-nos à disposição para colaborar na elaboração e execução de metas mais ousadas, tal qual a Mata Atlântica carece.
Publicado originalmente em jornal O Estado de S. Paulo
*Luís Fernando Guedes Pinto e Roberta del Guidice – São, respectivamente, Diretor Executivo da Fundação SOS Mata Atlântica e Secretária Executiva do Observatório do Código Florestal.
Fonte: SOSMA
Publicação Ambiente Legal, 04/01/2024
Edição: Ana Alves Alencar
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