Justiça obsequiosa não é justiça…
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Em um mundo lotado de injustiças, misérias, abandonos e arbitrariedades, como é o sistema prisional, a uniformização de tratamento é a única forma de reduzir a discriminação. Assim, a concessão de privilégios sempre gera circunstâncias que desmoralizam a autoridade do Estado.
Conforme constou no noticiário nacional, divulgado nas últimas semanas, o casal Adriana Ancelmo e Sérgio Cabral têm recebido tratamento prisional “uberizado” – ou seja, na medida dos privilégios que têm demandado. Com isso, estão ampliando ainda mais o descrédito popular no judiciário brasileiro.
Quando o condenado provém de classe privilegiada, o judiciário e a administração prisional trilham na corda bamba – enfrentam a difícil tarefa de discernir entre o cumprimento da lei e o obséquio do privilégio.
O casal cumpre pena por delitos de desvios e corrupção inacreditáveis. Os crimes cometidos encontram-se conexos com a tragédia da bancarrota do estado do Rio de Janeiro – tamanha a incúria do governo de Sérgio Cabral.
As proporções são assustadoras. Somente nos resgates ocorridos recentemente em algumas contas e bens do casal, a Justiça Federal obteve quantia suficiente para pagar o 13º salário do funcionalismo do Estado do Rio…
Não há, portanto, aos olhos da lei, espaço para comiseração. Verificadas as ruínas das obras feitas para durar dezenas de anos, a saúde completamente sucateada – que mata pacientes ao invés de curar – a segurança pública reduzida a cinzas e a educação em frangalhos, qualquer benefício fora do usualmente concedido a quem deve á sociedade, conferido ao casal que deve e muito, se traduz na mais pura injúria ao povo carioca.
Adriana Ancelmo e o regime de prisão domiciliar
O juízo de primeira instância da justiça federal do Rio aplicou o artigo 318 do Código de Processo Penal para permitir que Adriana Ancelmo, mulher do ex-governador do Rio, Sérgio Cabral, permanecesse na guarda de seus filhos – um com 14 anos e outro com 10.
O artigo 318 do Código de Processo Penal permite a prisão domiciliar da mulher gestante ou mãe de filhos com até 12 anos incompletos. O filho de 10 anos enquadraria Adriana no benefício legal.
O TRF 1, no entanto, entendeu que o benefício não se aplicaria a Adriana Ancelmo “devido à gravidade dos fatos a ela imputados”. O risco de prejuízo à justiça estaria evidenciado com o fato da redução da vigilância quando vultosas quantias desviadas ainda se encontram em fase de resgate para tapar o enorme rombo causado pela corrupção exercida pelo casal Cabral, à Pátria e às finanças cariocas, fora o fato de vários outros delitos ainda estarem sendo apurados.
Ademais, as crianças do casal Cabral, ao contrário dos filhos de milhares de outros presos, nunca estiveram sob risco de abandono. Estavam sob os cuidados do irmão deputado que, aliás, devia dar satisfação do fato frequentemente aos pais.
O STJ, no entanto, resolveu conceder Habeas Corpus entendendo aplicável o benefício.
A decisão soa absurda para tantos quantos lidam diariamente com a justiça criminal. As circunstâncias apontadas pelo TRF não poderiam ter passado despercebidas pelo tribunal superior.
Mas o problema não se restringe à questão do benefício legal. Aliás, o problema sequer está circunscrito à circunstância pessoal da beneficiária face aos termos frios da lei penal.
A crise aberta com o tratamento judicial dado ao caso está no contexto mais amplo, no universo ampliado de casos similares em que o mesmo benefício é negado. Há também outra circunstância, vinculada aos privilégios conferidos a Sérgio Cabral, que de há muito tornaram inócuas as “medidas restritivas” impostas á beneficiada Adriana Ancelmo como condição do cumprimento do regime de prisão domiciliar.
Sérgio Cabral e seus visitadores
O dilema entre cumprir a lei ou resvalar para o obséquio do privilégio parece não ocorrer no caso do regime prisional imposto ao ex-governador carioca.
É paradoxal. O mesmo judiciário envolvido na preocupação de impedir o acesso de Adriana Ancelmo a celulares e internet no cumprimento de prisão domiciliar não adotou qualquer medida para impedir Sérgio Cabral de receber visitas de políticos, autoridades e correligionários, com impressionante frequência e fora dos horários regulamentares, na prisão.
O filho primogênito do ex-governador, que é deputado estadual, visitou o pai mais de vinte vezes só no período do debate entre a concessão da medida, sua cassação e o habeas corpus concedido.
TODAS as visitas ocorreram fora dos padrões e critérios dispostos pelo regime disciplinar da prisão.
A conclusão é óbvia e desacredita a tutela jurisdicional: pouco importa o risco ao processo representado por Adriana Anselmo FORA da prisão; pois não houve qualquer risco para o ex-governador Sérgio Cabral fazer e desfazer da segurança do processo ao receber DENTRO da prisão quem ele quisesse.
Tal qual ocorreu com Adriana Ancelmo, o judiciário também protagonizou suas idas e vindas no caso do ex-governador, pois o juízo federal carioca havia transferido Cabral para Curitiba, alegando que ele não estava seguro em Jericinó e que o estado não conseguia mantê-lo sob disciplina. No entanto, a decisão foi cassada na instância superior e Cabral retornou a Bangu 8, em dezembro – tendo desde então recebido mais de três dezenas de visitas – uma a cada três dias…
Discriminação perturbadora
De uma forma ou outra a tutela judicial atendeu aos privilégios demandados, na medida favorecendo Adriana e no obséquio prestado a Cabral.
Nesse contexto, os benefícios refletem perturbadora discriminação. Escarnecem da grande massa prisional brasileira.
Vejamos as duas pontas do contexto:
Na ponta de Adriana Ancelmo, é notório que o pressuroso judiciário não age da mesma forma em milhares de outros casos de mulheres condenadas em circunstâncias similares e até em circunstâncias mais benéficas.
A tragédia é constante. São inúmeros os casos de crianças entregues aos cuidados de parentes relapsos ou casas assistenciais públicas em estado precário e que terminam abandonadas nas ruas das cidades brasileiras, justamente pelo fato de ambos os pais se encontrarem presos.
Se a miséria e o abandono das crianças raramente sensibilizam ocupantes das confortáveis poltronas dos tribunais superiores, a segurança do processo e as condições que envolvem os delitos praticados com certeza restaram considerados nas decisões respectivas – o que parece ter sido ignorado pelo STJ no caso de Adriana Ancelmo.
Na ponta de Sérgio Cabral, o obsequioso “regime de visitações” permitido aos seus amigos configura escárnio ainda maior, se levarmos em conta o enorme número de mães, avós, mulheres, filhos, netos e amigos próximos dos milhares de outros presos, que nunca gozaram da mesma oportunidade.
Em qualquer prisão do país, o que se nota são as filas. Gente que madruga para enfrentar a burocracia do sistema, aguardam sua vez sob o sol e limitam-se aos estreitos horários de visitação.
Mesmo advogados sofrem limitações.
Os amigos de Sérgio Cabral, no entanto, reuniram-se com ele com frequência impar, todo esse tempo, sob as barbas do judiciário e da administração penitenciária carioca – alguns fazendo uso da condição de parlamentares sem atentar para as circunstâncias que em nenhuma hipótese autorizariam a prerrogativa.
Justiça uberizada?
O contexto e as circunstâncias, muito mais que a lei, deveriam preocupar. Justo no bojo do que parece ser uma firme repressão ao crime organizado por quem detinha o poder, o somatório de idiossincrasias do caso aponta para um “judiciário-uber”, que molda suas decisões envolto em subjetividades.
O que transparece à sociedade é que as agruras dos privilegiados sempre merecem maior atenção – e assim a lei aplicada para uns é ignorada para outros.
Em recente palestra, tratada em outro artigo*, o Ministro do STF Luis Barroso afirmou que “o Direito Penal brasileiro é ineficiente e não consegue atingir aqueles que ganham mais de cinco salários mínimos. Isso fez com que tivéssemos um ‘país de ricos delinquentes’, onde a corrupção é o modo natural de se fazer política e negócios no país”.
Barroso preconizou que é preciso haver “um Estado que puna os empresários que fraudem licitações, os operadores do mercado financeiro que lucrem com insider trading, os gestores de fundos de pensão que desviem recursos. Isso não é Estado policial, é Estado de Justiça”.
Na sua peroração, o Ministro deixou antever que não via no Estado Brasileiro um “Estado de Justiça”. No caso em tela, sua crítica se aplica.
Justiça obsequiosa, definitivamente não é justiça.
Texto originalmente publicado no Blog The Eagle View
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Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e das Comissões de Política Criminal e Infraestrutura da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/SP. É Vice-Presidente da Associação Paulista de imprensa – API, Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.