Para alcançar o equilíbrio, é urgente mudar o padrão de produção, reduzir o consumo, recuperar os ecossistemas e diminuir o crescimento demográfico
Por José Eustáquio Diniz Alves*
A humanidade já ultrapassou a capacidade de carga da Terra. Capacidade de carga refere-se à quantidade máxima de recursos naturais que o planeta pode garantir de forma sustentável, levando em consideração as necessidades de subsistência da população, o padrão de consumo e a preservação dos ecossistemas. É uma medida que indica o tamanho populacional máximo de uma espécie biológica que o meio ambiente pode sustentar indefinidamente, ao considerar alimento, água, habitat e todas as demais demandas da referida espécie.
A Global Footprint Network apresenta uma metodologia que viabiliza o cálculo da capacidade de carga, contabilizando o impacto humano sobre o meio ambiente e a disponibilidade de “capital natural” do mundo. A primeira medida, chamada de pegada ecológica, serve para avaliar o impacto do ser humano sobre a biosfera. A segunda medida, chamada de biocapacidade, avalia o montante de terra, água e demais recursos biologicamente produtivos para prover bens e serviços do ecossistema, sendo equivalente à capacidade regenerativa da natureza. Ambas as medidas são representadas em hectares globais (gha).
O gráfico abaixo, do Instituto Global Footprint Network, apresenta os valores da pegada ecológica global e da biocapacidade global de 1961 a 2019, com uma estimativa até 2022. Em 1961, a população humana era de aproximadamente 3 bilhões de habitantes, com uma biocapacidade de 9,75 bilhões de gha e uma pegada ecológica de 7,22 bilhões de gha. Portanto, havia um superávit ambiental no mundo, superávit este que se manteve na década de 1960 e está representado pela área verde do gráfico.
Mas, com o crescimento da população e o maior volume da produção de bens e serviços, a pegada ecológica global ultrapassou a biocapacidade global a partir do início da década de 1970, gerando um déficit ecológico que se ampliou ao longo dos anos (representado pela área vermelha do gráfico). Para 2022, com uma população mundial de cerca de 8 bilhões de habitantes, a pegada ecológica está estimada em 20,6 bilhões de gha e a biocapacidade global em 12 bilhões de gha. Portanto, o déficit ecológico absoluto é de 8,6 bilhões de gha e o déficit relativo é de 71%.
Os números de 2019 são semelhantes aos números de 2022, sendo que em 2020 houve uma redução da pegada ecológica global em função do impacto da pandemia da covid-19 que provocou uma recessão econômica internacional. Mas, com a retomada das atividades econômicas, a pegada ecológica voltou a aumentar e, consequentemente, cresceu o déficit ambiental. Ou seja, em 2022, a humanidade estava consumindo 71% a mais do que o planeta podia fornecer de forma sustentável.
Os oito países com as maiores pegadas ecológicas do mundo
O tamanho da pegada ecológica de cada país depende do volume da população e do montante nacional da produção e do consumo de bens e serviços. O tamanho da biocapacidade depende da área territorial e da riqueza e da fertilidade dos solos e dos recursos naturais de cada nação. Em um mundo desigual, a distribuição populacional e territorial implica em diferentes situações ambientais. Mas cabe ressaltar que o conjunto de apenas oito países acumula uma pegada ecológica correspondem à toda a biocapacidade do planeta, que é de 12 bilhões de gha.
A China tem a maior pegada ecológica total e o maior déficit ambiental em termos absolutos. Mas nem sempre foi assim. O gráfico abaixo mostra que a China, em 1961, com uma população de 655 milhões de habitantes, tinha um pequeno superávit ambiental com uma biocapacidade total de 575 milhões de gha e uma pegada ecológica total de 548 milhões de gha. Mas nas décadas seguintes a população chinesa cresceu e enriqueceu, chegando a 1,41 bilhão de habitantes em 2022. A pegada ecológica total passou para 5,28 bilhões de gha e a biocapacidade chegou a 1,17 bilhão de gha. Desta forma, o déficit ecológico absoluto da China ficou em 4,1 bilhões de gha e o déficit relativo ficou em 351%.
A Índia tinha uma população de 456 milhões de habitantes em 1961, chegou a 1,41 bilhão em 2022 e ultrapassou a China em 2023, sendo atualmente o país mais populoso do mundo. A Índia tinha um pequeno déficit ambiental em 1961, mas com o crescimento demográfico e econômico passou a ter um déficit ecológico total de 1 bilhão de gha, com uma pegada ecológica de 1,47 bilhão de gha e uma biocapacidade de 0,485 bilhão de gha. O déficit relativo é de 203%. A Índia tem uma pegada ecológica per capita bem abaixo da média mundial, mas tem a terceira maior pegada ecológica total, pois possui uma grande população e hoje em dia é o país com as maiores taxas de crescimento econômico do mundo.
Os Estados Unidos da América (EUA) tinham uma população de 180 milhões de habitantes em 1961, com uma pegada ecológica total de 1,64 bilhão de gha e um biocapacidade total de 1,03 bilhão de gha. Portanto, tinha um déficit ambiental de 64%. Nota-se que, naquela época, a pegada ecológica total dos EUA era maior do que a soma das pegadas ecológicas da China e da Índia. Ao longo das últimas 6 décadas a pegada ecológica dos EUA oscilou, mas chegou a 2,52 bilhões de gha e a biocapacidade total passou para 1,26 bilhões de gha. Desta forma, o déficit ambiental absoluto foi de 1,3 bilhão de gha e o déficit relativo de 101%.
Logo após o fim da União Soviética, a Rússia tinha uma população de 148,7 milhões de habitantes, uma pegada ecológica total de 1,05 bilhão de gha e uma biocapacidade total de 1,02 bilhão de gha. Portanto, as duas curvas estavam próximas. Mas, nos últimos 30 anos, houve uma redução da população para 145 milhões de habitantes em 2022, com redução da pegada ecológica e aumento da biocapacidade. Atualmente, a Rússia tem a 4ª maior pegada ecológica do mundo (atrás apenas da China, EUA e Índia), mas como é um país muito grande em termos territoriais, tem também a 4ª maior biodiversidade total (atrás apenas do Brasil, EUA e China). Desta forma, a Rússia apresentou um superávit ambiental absoluto de 280 milhões de gha e um superávit relativo de 33%.
O Brasil tem a 5ª maior pegada ecológica total, mas se destaca principalmente por ter a maior biocapacidade do planeta e o maior superávit ambiental absoluto do mundo. Em 1961, o Brasil tinha uma população de cerca de 75 milhões de habitantes, uma pegada ecológica de 0,178 bilhão de gha e uma biocapacidade de 1,81 bilhão de gha. Portanto, o superávit ambiental absoluto era de 1,62 bilhão de gha. Nos últimos 60 anos, houve crescimento da população e da economia brasileira, com aumento da pegada ecológica e diminuição da biocapacidade total. Assim mesmo, o Brasil continua com o maior superávit ambiental entre todos os países da comunidade internacional. Em 2022, com uma população de cerca de 210 milhões de habitantes, o Brasil apresentou pegada ecológica de 0,549 bilhão de gha e uma biocapacidade de 1,76 bilhão de gha. Consequentemente, o superávit ambiental absoluto foi de 1,21 bilhão de gha e o superávit relativo de 221%.
O Japão tem a 6ª pegada ecológica total entre os diversos países do mundo e uma pequena biodiversidade. Portanto, já tinha um déficit ambiental desde os anos de 1960. Nas últimas décadas do século XX, o Japão apresentou um dos maiores crescimentos econômicos do mundo e, consequentemente, houve aumento da pegada ecológica com diminuição da biocapacidade. Mas, nos anos 2000, a população japonesa começou a decrescer e houve estabilização da dinâmica econômica. Consequentemente, a pegada ecológica foi reduzida nas últimas duas décadas, assim como houve redução do déficit ambiental. No entanto, o Japão tem um déficit ambiental relativo de 542%. O déficit ambiental absoluto está estimado em 423 milhões de gha em 2022, resultado de uma pegada ecológica de 0,501 bilhão de gha e de uma biocapacidade de 0,078 bilhão de gha. A tendência do Japão é de redução do déficit ambiental, mas o país tem um longo caminho pela frente para conseguir a sustentabilidade ecológica.
A Indonésia é o 4º país mais populoso do mundo e possui, atualmente, a 6ª maior pegada ecológica total. Durante o século XX, a Indonésia possuía superávit ambiental como mostra a área verde do gráfico abaixo. A população indonésia era de 90 milhões de habitantes em 1961 e passou para 275 milhões em 2022. Neste período, houve grande crescimento da renda per capita. Por conseguinte, a pegada ecológica total passou para 462 milhões de gha e a biocapacidade para 338 milhões de gha, com déficit ambiental absoluto de 124 milhões de gha e déficit relativo de 37% em 2022.
A Alemanha tem a 8ª pegada ecológica total e apresentou déficit ambiental nas últimas 6 décadas. A população alemã era de 73 milhões de habitantes em 1961 e passou para 84 milhões em 2022. A pegada ecológica total cresceu nas décadas de 1960 e 1970, mas diminuiu nas décadas seguintes devido às mudanças tecnológicas ocorridas no modo de produção do país. Considerando os extremos do período representado no gráfico abaixo (1961 a 2022) os valores da pegada ecológica e da biocapacidade não sofreram grandes alterações. Em 2022, a pegada ecológica total era de 375 milhões de gha e a biocapacidade total de 135 milhões de gha. Como resultado, o déficit ambiental absoluto foi de 240 milhões de gha e o déficit relativo de 178%.
No total, os 8 países possuem uma pegada ecológica total de 12 bilhões de hectares globais (gha), o mesmo valor da biocapacidade total da Terra. Mas, por outro lado, possuem uma biocapacidade total de 6,3 bilhões de gha. Portanto, a despeito do superávit ambiental da Rússia e do Brasil, os 8 países juntos possuem um déficit ambiental absoluto de 5,6 bilhões de gha e um déficit relativo de 89%.
O mundo precisa reduzir a pegada ecológica e restaurar a biocapacidade da Terra
Indubitavelmente, a humanidade já ultrapassou a capacidade de carga e os limites da resiliência do planeta. Apenas 8 países já consomem um valor equivalente à toda a biodiversidade da Terra. Mas o déficit ambiental se estende à maioria dos países do mundo. No conjunto da comunidade internacional, a pegada ecológica está 71% acima da biocapacidade do planeta.
Em 2023, o Dia da Sobrecarga da Terra acontece em 02 de agosto. O Dia da Sobrecarga marca a data em que a demanda da humanidade por recursos e serviços ecológicos excede o que a Terra pode regenerar naturalmente naquele mesmo ano. Nos quase cinco meses restantes, os seres humanos vão viver da herança da mãe Terra e no “cheque especial” ecológico. Uma situação insustentável.
Para garantir o equilíbrio ambiental e erradicar o déficit ecológico global há, pelo menos, 5 alternativas: 1) mudar o padrão de produção para investir em uma economia de baixo carbono, com maior eficiência energética e baixo impacto ambiental; 2) diminuir substancialmente o consumo, especialmente das parcelas mais ricas da população; 3) investir na restauração ecológica para aumentar as áreas verdes do planeta e recuperar a saúde dos ecossistemas; 4) Diminuir a velocidade atual do crescimento demográfico global e apoiar a transição para o decrescimento populacional no longo prazo; 5) colocar em pratica as quatro alternativas anteriores de maneira simultânea e integrada.
No ritmo atual, o mundo caminha na direção de uma tragédia ambiental, pois o crescimento da pegada ecológica está desestabilizando o clima do planeta e provocando a aceleração da 6ª extinção em massa das espécies. Porém, o ecocídio é também a estrada que leva ao suicídio humano e civilizacional. O desafio da sobrevivência e da sustentabilidade requer respostas complexas, soluções múltiplas e ações imediatas. Não há tempo a perder.
*José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro “ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século” (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.
Fonte: Projeto Colabora
Publicação Ambiente Legal, 21/06/2023
Edição: Ana Alves Alencar
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