O que fazer, quando no mundo dos algoritmos, a inteligência artificial direciona os mais pobres para a cultura do fracasso , da alienação, do analfabetismo funcional e do hedonismo?
Por Edna Regina Uip*
Notícias recentes, algumas das muitas disponíveis em português que tratam da evolução e utilização da Inteligência Artificial:
“A Microsoft anunciou no dia 22 de julho que investirá US$ 1 bilhão na OpenAI em uma nova parceria de longo prazo. O objetivo é desenvolver tecnologia de inteligência artificial de supercomputação no serviço de nuvem Azure.
Segundo informações da Reuters, a OpenAI afirmou que o acordo entre as empresas ajudaria na busca pela “artificial general intelligence” (AGI). Esse termo se refere à possibilidade de um sistema de inteligência artificial que conseguiria aprender e entender absolutamente tudo o que um ser humano tem potencial de fazer ou até mais.” ¹
“Prever o futuro não é só mais coisa de cartomante. A fabricante de vestuário Nike anunciou a compra de uma startup de inteligência artificial capaz de prever o que os consumidores querem comprar antes mesmo que eles procurem por um produto.” ²
“Ainda de acordo com ele, inicialmente a IA assumirá o papel de assistente nas diversas áreas da Saúde e, aos poucos, essas funções serão completamente automatizadas. No futuro, em sua visão, a ciência de dados e a inteligência artificial terão importância na formação curricular médica. E a Medicina terá a mesma equivalência da Telemedicina.
Robotização:
Chao Wen exemplifica modelos de robôs já usados no mundo, como equipamentos de limpeza e higienização automática em hospitais, cuidadores em home-office e ferramentas que mimetizam o relacionamento emocional com animais, usadas em pacientes para tratamento de depressão, ansiedade e demência.” ³
Quem define nossas vidas não está nos campos de batalha, no Salão Oval ou no Kremlin. As decisões vêm de pessoas geniais, cuja genialidade recebe investimentos bilionários. São pagos para esquadrinhar nossas mentes através do que falamos, teclamos, vemos ou ouvimos, em busca de desejos, sintomas, pensamentos e emoções, tudo no intuito de facilitar e colaborar com a vida humana.
Há quem acredite ser este o verdadeiro objetivo. Há os que veem a evolução da tecnologia como busca do lucro, do controle, do poder, do globalismo.
Não entremos por ora nesta discussão. Melhor dar um salto para as profundezas do Brasil.
Estariam os brasileiros preparados para lidar com tais inovações?
Para encontrar respostas utilizei um modo pessoal de pesquisa. Apesar de informal e desprovida de técnica, tem nomes, rostos e formas. Tem pensamentos e expressões. Para fazê-la participei como membro de vários dos milhares de grupos do Facebook que congregam milhões de indivíduos das camadas mais pobres de usuários. Observei, dediquei tempo, vi e li as postagens, busquei os perfis, tentei entender o que move os participantes.
As constatações que aqui aponto são críticas aos brasileiros? Tentam demonstrar preconceitos? Não e não.
Uso de forma recorrente uma frase: cada um almeja o topo da pirâmide que consegue enxergar.
Qual é o topo da pirâmide oferecido à nossa população?
No topo oferecido estão os cientistas, os artistas de inegável qualidade, os intelectuais, os atletas de alta performance das diversas modalidades, os empresários bem sucedidos, os benfeitores sociais?
Não.
Aos brasileiros não são fornecidos parâmetros que representam o sucesso que cada um poderia ter no que escolhesse ser.
Para “a massa” é oferecida uma “cultura transitória” – composta de umas poucas músicas ou imagens. Essa cultura é “ultrapassada” sucessivamente, no menor espaço de tempo, retirando da população usuária qualquer referência que possa situá-la em uma posição onde possa vislumbrar melhores escolhas.
A “formação educacional” recebida por meio desse mecanismo, desconecta essa massa carente de escolhas, das reais necessidades individuais, coletivas e nacionais. É um produto excludente da vontade, das aptidões pessoais e da cidadania.
De fácil constatação é o analfabetismo funcional. Nesse meio, as postagens são produzidas, na grande maioria por imagens. Quando são postados textos, estes são curtos e muitas vezes incompreensíveis – forrados de erros ortográficos e gramaticais. Geralmente revelam dificuldade de formular abstrações.
As respostas às postagens, por sua vez, demonstram não ter o receptor decodificado o pensamento do emissor.
Um detalhe interessante e sintomático: as pessoas com mais de 40 anos escrevem melhor, numa clara demonstração do degrado da alfabetização das últimas décadas.
Poucos perfis indicam identidade territorial. Poucos são os usuários que falam sobre o estado ou o município de nascimento, ou de moradia. Mesmo as fotos das férias e dos passeios não trazem indicação de local.
Também são poucos os que mencionam escolas, atividades culturais, sociais, esportivas, locais de trabalho e atividades profissionais.
Afora os raros militantes ou simpatizantes de causas e partidos, não se encontram nas postagens e nos perfis, indicações de pensamento acerca do país, de ideais e convicções, sejam quais forem. Há também uma profunda confusão de símbolos e valores.
Constatei que o gasto de tempo e dinheiro nas redes sociais é alto – o que demonstra urgência de disponibilidade.
A maior parte das postagens é feita através de aplicativos de celular que funcionam por aquisição de créditos das operadoras.
Como a frequência dos usuários é grande, a conclusão é que o acesso às redes é representativo no orçamento e mostra a necessidade de conexão imediata, de acompanhar as reações às próprias postagens, de reagir às dos grupos e dos amigos, numa clara disponibilidade de tempo e falta de outros interesses.
Como ocorre em todas as demais camadas sociais, em uma sociedade narcisista, está presente a necessidade de aprovação social e de busca da gratificação instantânea através de curtidas, mesmo que para isto apresente-se uma narrativa ficcional. Há fotos de festas promovidas com evidente custo, em ambientes não condizentes com a precariedade das condições objetivamente vistas.
Investimentos na beleza e na sensualidade continuam tendo alto foco, independentemente do gênero. Afinal vivemos em um ambiente que cultua o narcisismo. Não por outro motivo, as fotos buscam ângulos e posições que pretendem dar asas ao imaginário sexual.
A cultura do narcisismo socializou-se. Academias de exercícios de baixo custo têm invadido as periferias e se tornaram uma febre – sempre fotografada – para ostentar ou alcançar o corpo perfeito.
O hedonismo é ostensivamente valorizado. Nas relações sociais o consumo do álcool é fator de aprovação. Poucas fotos apontam o núcleo familiar. O que se vê é o dono do perfil transitando em shows, baladas, festas e bares rodeado apenas por amigos.
Os usuários brasileiros estão inseridos no consumismo, e as curtidas nas postagens consumistas dão razão à sua importância. Há profusão de fotos de roupas, cortes de cabelo, maquiagem e aparelhos adquiridos. Filhos são expostos em situações que não incluem escolas, brincadeiras, vida social própria. Há um fator bastante preocupante: a demonstração da fertilidade familiar é exortada em um contexto onde meninas, que aos 15 anos ainda não engravidaram, sofrem bullying.
Creio que a pesquisa despretensiosa que fiz é referendada quando integramos outros grupos, sempre bem menores, cujos integrantes são intelectualizados e politicamente engajados. A discrepância é assustadora.
Volto a questão inicial. Estamos preparando essa massa de brasileiros, desconectada do presente, para o futuro próximo? Como poderão esses cidadãos, que não são conscientes de sua cidadania, tornarem-se protagonistas da própria vida e do futuro do país? O que estamos fazendo, nós, os cidadãos comuns, e os que encabeçam as políticas públicas, para alterar esta realidade?
De que maneira a educação formal está se colocando como aliada da população? Estará contribuindo para inseri-la no grande contexto, onde máquinas e algoritmos serão a cada dia mais determinantes? Estará prevendo incluir esse imenso conjunto de usuários que têm dificuldade de expressar em letras o que pensam, no futuro das sociedades e das nações?
Devemos nos isolar do planeta para garantir alguma segurança institucional aos nossos compatriotas? Ou devemos nos render à posição de país-suporte de outras nações, fornecedor de commodities e nada mais?
O que fazer, quando no mundo dos algoritmos, a inteligência artificial direciona os mais pobres para a cultura do fracasso , da alienação, do analfabetismo funcional e do hedonismo? Estamos programando contingentes de excluídos?
Irei esmiuçar esses temas ao longo do percurso, com outros artigos, para tentar avistar conclusões.
*Edna Regina Uip, advogada formada pela USP, consultora e empresária, está “habituada a ver o mundo pelos olhos da razão, sem no entanto, deixar de cultivar atenta observação do comportamento humano e suas emoções”. Autora do romance Espelhos Quebrados (Sá Editora, 2010), é escritora, ensaísta e poeta. Administradora do Grupo de Discussão Política “Vamos Falar Para o Brasil, Edna Uip é, também, colaboradora do Blog The Eagle View e do Portal Ambiente Legal, onde publica regularmente na Seção Ambiente Livre.
Fonte: The Eagle View