Por Sibélia Zanon
- Coleção de sementes da Embrapa tem cerca de 120 mil amostras de quase 700 espécies agrícolas coletadas ao longo dos 49 anos de existência da estatal.
- Algumas das amostras foram enviadas ao Banco Mundial de Sementes de Svalbard, no Oceando Ártico, que, além de já conservar alimentos como arroz, feijão, pimenta e abóbora do Brasil, em breve receberá também variedades de milho crioulo, maracujá e caju.
- Movimento de resgate de sementes tradicionais, inaugurado pelo povo indígena Krahô junto à Embrapa na década de 1990, gera até hoje trocas de sementes e saberes em todo o Brasil.
- A parceria com agricultores indígenas e quilombolas é imprescindível para os pesquisadores da Embrapa, uma vez que muitas sementes só conseguem ser conservadas em lavouras no campo, não em geladeiras.
Numa ilha na Lagoa dos Patos, bem ao sul do estado do Rio Grande do Sul, uma senhora guardava um tesouro na geladeira. Há anos uma gaveta abrigava o presente que havia ganhado de casamento: sementes de feijão e de espécies de abóbora.
“Ela disse que ia me dar as sementes que ganhou da sogra”, conta Rosa Lía Barbieri. “Eram sementes de uma abóbora que eles chamam de abóbora gila (Cucurbita ficifolia), que se usa muito para fazer doce”, diz a pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) que, na época, era responsável pelo banco de germoplasma de cucurbitáceas.
Hoje, as sementes de abóbora doadas pela agricultora e por muitos outros agricultores de todo o Brasil estão preservadas em geladeiras ainda mais especializadas: os bancos de germoplasma da Embrapa. A parceria entre pesquisadores e agricultores é preciosa para alimentar a coleção de 164 bancos espalhados pelas cinco regiões do país, guardando recurso genético ou material reprodutivo de plantas relevantes para a alimentação e a agricultura.
A coleção de sementes da Embrapa conta hoje com cerca de 120 mil amostras de quase 700 espécies agrícolas, coletadas ao longo dos 49 anos de existência da estatal. Todas elas conservadas a 20 graus centígrados abaixo de zero.
“Em resumo, a gente tem três formas de conservar. Conservamos as sementes a baixas temperaturas, em culturas de tecidos [tubos de ensaio com crescimento lento], ou as plantas no campo”, conta Rosa Lía sobre a diversidade dos bancos de germoplasma.
O feijão, o arroz, o milho e as abóboras produzem sementes chamadas ortodoxas, que podem ser armazenadas em baixa umidade e temperatura em câmaras frias, durando por séculos. Já a manga, o pêssego e o abacate produzem sementes ditas recalcitrantes, que não suportam o frio e, para germinar, precisam ser usadas logo após colhidas. Nesse caso, o banco de germoplasma se traduz em uma plantação no campo. Em diversas localidades do país, são mantidos os bancos de fruteiras nativas, apelidados afetivamente de arca de Noé das frutas nativas brasileiras.
“O banco de castanha-do-pará [também chamada castanha-do-brasil], por exemplo, fica no Pará, na Embrapa Amazônia Oriental, e as plantas são cultivadas no campo. A gente não consegue conservar a semente da castanha-do-pará por muito tempo, ela perde a viabilidade”, diz Rosa Lía. “Temos vários bancos de germoplasma de frutas da Amazônia, como cupuaçu e camu-camu, mantidos no campo”.
Nos últimos 50 anos a produtividade da agricultura foi afetada mundialmente pelas mudanças climáticas. O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em Inglês) sugere que eventos extremos como secas, ondas de calor e enchentes terão impacto sobre a agricultura no Brasil. Num panorama de altas emissões, estudos mostram que a produção de arroz poderia cair 6%, a produção de trigo 21%, e a de milho 10%.
Cajus no Ártico
“A questão das mudanças climáticas, com o possível degelo das calotas polares, foi um fator levado em conta. Tanto é que o Banco Mundial de Sementes de Svalbard foi construído a 130 metros acima do mar”, conta Rosa Lia, que também ocupa uma cadeira no Painel Consultivo Internacional na gestão do Banco Global de Sementes de Svalbard, localizado em Longyearbyen, a cidade mais ao norte do planeta, no meio do Oceano Ártico.
Por lá, não são pastores alemães ou gansos que cuidam da segurança. O arquipélago norueguês de Svalbard conta com quase mil ursos polares, um para cada três pessoas. Inaugurado em fevereiro de 2008 com o objetivo de conservar a biodiversidade das espécies de vários cultivos do mundo, o cofre de sementes da humanidade foi escavado em rocha sólida de montanha para resistir às catástrofes climáticas e até a uma explosão nuclear. A porta de aço repleta de sistemas de segurança abre passagem para um túnel de 125 metros de comprimento que conduz a três câmaras refrigeradas a 18 graus centígrados negativos, capazes de armazenar 4,5 milhões de amostras de sementes.
O também chamado “Cofre de sementes do fim do mundo” já guarda mais de 1 milhão de amostras. Caixas lacradas com a bandeira do Brasil e recheadas de sementes de arroz, feijão, pimenta, cebola, abóbora, melão, melancia e milho integram suas prateleiras. Uma próxima remessa de sementes brasileiras já se aproxima.
“As sementes já estão nas caixas, embaladas, e estamos na fase de documentação. Em breve serão remetidas pelo correio”, diz Rosa Lía. Nas caixas estão espécies forrageiras para alimentação de animais, variedades de milho crioulo, de maracujá e de caju. “A castanha de caju se comporta como semente ortodoxa, então estamos enviando as primeiras sementes de caju para Svalbard, nenhum país enviou ainda pra lá”.
As sementes armazenadas no arquipélago norueguês continuam sendo de propriedade de quem as depositou e só podem ser retiradas, ou repatriadas, em caso de catástrofe. A primeira retirada de sementes do cofre foi feita em 2016 pela Síria, que teve seus bancos locais de sementes bombardeados.
Erosão genética
Na década de 1990, indígenas do povo Krahô chegaram à sede da Embrapa em Brasília, acompanhados de um indigenista da Funai, para recuperar antigas variedades de sementes de milho que haviam desaparecido de suas aldeias.
Um movimento messiânico na década de 1950, que estimulava o abandono das práticas tradicionais, associado ao incentivo de substituir as roças pela monocultura do arroz tinha levado os Krahô a um estado de pobreza e fome, com a perda de grande parte de sua variedade agrícola, inclusive das sementes tradicionais de milho.
Os indígenas pediram aos gestores e pesquisadores da Embrapa que abrissem as câmaras frias para a busca. Foi a primeira vez que isso ocorreu por demanda comunitária. Na ocasião, quatro variedades de milho, que haviam sido coletadas em décadas anteriores junto ao povo indígena Xavante, foram reconhecidas pelos Krahô como exemplares de milho da sua cultura.
“A gente gosta de brincar que os Krahô bateram uma flecha no Banco de Sementes da Embrapa porque fomos sensibilizados por eles nesse processo”, conta Terezinha Dias, pesquisadora da Embrapa que há 20 anos coordena ações em etnociência, conservação de recursos genéticos e promoção da segurança alimentar junto ao povo Krahô.
Naquela ocasião, cada cacique pôde levar para a sua aldeia de seis a oito sementes. Depois de um ano, retornaram a Brasília trazendo sacos de sementes que haviam sido multiplicadas em suas roças. A partir da busca dos Krahô, surgiu a parceria da Embrapa com a Kapéy, União das Aldeias Krahô, e a Fundação Nacional do Índio (Funai), gerando um diálogo entre sabedorias tradicionais e saberes científicos.
Uma das experiências resultantes da parceria é a interação de duas estratégias de conservação de sementes: a ex-situ, qué é a conservação fora do seu ambiente, como no caso dos bancos de sementes da Embrapa, e a on-farm, que é a conservação no campo, por meio do constante plantio, como ocorre nas roças dos Krahô.
O processo de desvalorização de sementes tradicionais ou crioulas é herança da Revolução Verde, movimento mundial, que em meados do século 20 passou a incentivar o aumento da produção agrícola. A aposta do movimento foi na mecanização, nos agroquímicos, e nas sementes melhoradas geneticamente em centros de pesquisa — muitas vezes vulneráveis e pouco adaptadas a variações climáticas e ao solo de cada região. Consequência adicional foi a contaminação de plantios tradicionais pelo pólen das crescentes lavouras transgênicas.
“O modelo de monocultivo da Revolução Verde foi ampliado no mundo inteiro e as empresas que começaram a trabalhar com agroquímicos começaram no processo de melhoramento de plantas”, diz Terezinha. “As empresas já chegavam influenciando governos de cada país para que as leis de sementes locais proibissem o uso das sementes tradicionais”.
O resultado foi o empobrecimento da agrobiodiversidade, com a extinção de muitas variedades vegetais e a perda dos conhecimentos culturais sobre o manejo das espécies — processo denominado tecnicamente de erosão genética.
Um dos esforços que têm sido empreendidos contra essa tendência são as feiras de sementes, iniciadas em 1997 pelo povo Krahô depois do resgate das espécies de milho tradicionais. Desde então, diversas feiras foram realizadas para troca de sementes e saberes, incluindo a participação de outros povos indígenas. Em 2020, a Feira de Sementes Tradicionais dos Krahô foi uma das 10 iniciativas contempladas com o valor de 50 mil reais pelo Prêmio BNDES de Boas Práticas em Sistemas Agrícolas Tradicionais.
“Aqui no nosso banco de sementes ex-situ a gente consegue conservar tudo? Claro que não. Nós temos que ter parcerias com os índios, com os quilombolas”, diz Terezinha. “Os territórios indígenas são arcas de conservação. Se a gente tem um banco de sementes aqui, imagina o que tem dentro dessas comunidades? Uma coisa é a semente que você coleta e que fica parada aqui, congelada. Outra coisa é a semente que está na mão do agricultor, que ele vai adaptando.”
Agricultores familiares se transformam em guardiões de sementes crioulas no nordeste de MG
Fonte: Mongabay Brasil
Publicação Ambiente Legal, 10/05/22
Edição: Ana Alves Alencar
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