As mortes de milhares nas águas do Mediterrâneo em poucos meses são um indicativo: a fuga do continente esquecido não vai parar. O mundo invisível, pobre e miserável está cobrando a fatura
Elder Dias
Era o início do mês de maio de 1994. Uma grande tragédia abalava o mundo. Um país inteiro nunca mais seria o mesmo depois de um evento que ocorria de forma tão dura e traumática, atingindo em cheio um povo já sofrido por causa dos muitos males vividos na pele durante séculos e séculos de colonização.
Se o pensamento viajou até a figura de Ayrton Senna, se enganou. De fato, a morte do brasileiro, tido por muitos como o maior piloto de corridas de todos os tempos, foi um acontecimento trágico. Causou comoção não só no Brasil, mas também, de modo um tanto surpreendente, no Japão, onde também era tido como uma figura querida — os nipônicos se identificaram com ele por causa dos títulos a bordo de uma McLaren impulsionada por motores Honda. A Europa, coração da Fórmula 1, também sentiu o baque, até porque outro corredor, o austríaco Roland Ratzenberger, morrera um dia antes, no treino para o fatídico GP de San Marino, em Ímola, na Itália.
Por mais que tenha sido dolorosa para os brasileiros e os amantes do automobilismo, a morte do ídolo nacional foi uma fatalidade. Consequência dos perigos do esporte que escolheu. Ironia do destino, ele era um dos que mais se preocupavam com a segurança dos carros e, com Ratzenberger, foi um dos pilotos a perder a vida após 18 anos sem nenhuma morte assombrar a modalidade — o último acidente fatal tinha sido em 1986, quando o italiano Elio de Angelis, por coincidência o primeiro companheiro de Senna na equipe Lotus, morreu em treinos particulares da Brabham no circuito de Paul Ricard, na França.
Mas o que realmente estava em andamento como horror mundial naquele momento ocorria não na Europa, mas na África subsaariana. Em Ruanda, já havia quase um mês, a etnia hutu caçava seus rivais tutsis, em uma matança que duraria cem dias e deixaria ao fim 800 mil mortos. Uma média de 8 mil por dia. Contando todo o tempo de conflito e as hordas de refugiados em êxodo — o que acabaria por causar mais mortes, colaterais —, a população do país se reduziria em 2 milhões na primeira metade dos anos 90.
O olhar do mundo para a África só se deu quando o conflito alcançou o auge. Durante anos houve a preparação para o massacre que haveria de ocorrer. Mais do que isso, foram usadas verbas de fundos internacionais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), para financiar o massacre, conforme ficou apurado posteriormente. Sem controle nem atenção do Ocidente, os gastos no que era para ser um “programa de ajuste estrutural” serviram para a compra de armas diversas, entre elas facões, enxadas, machados e martelos. Tudo para que os hutus pudessem estar seguros de que realmente massacrariam os rivais tutsis .
Quando tudo já estava consumado, no auge da matança a notícia do horror chegou à Europa e aos Estados Unidos. Documentos só disponibilizados duas décadas depois dariam conta de que cerca de duas semanas após o início do genocídio, em 6 de abril, o então presidente dos EUA, Bill Clinton, sabia de tudo que se passava em Ruanda, mas as informações foram abafadas: a Casa Branca já havia decidido não intervir. Quase 20 anos depois, Clinton fez um tardio mea-culpa, dizendo que poderia ter salvado pelo menos 300 mil vidas se tivesse tomado uma atitude em tempo hábil. Um caso de confesso crime humanitário por omissão? Talvez. O certo é que nunca será algo que passará por qualquer tribunal penal internacional.
A África não é a Europa nem a América (entenda-se “America”, como os estadunidenses costumam chamar seu país). Também não é a Ásia nem a América Latina, lugares de segunda categoria, mas nos quais repousa um interesse maior dos protagonistas do planeta. É um continente que caminha a passos largos para um exaurimento completo de seus recursos. Mais e mais pessoas morrem na África; as que querem sobreviver procuram principalmente a Europa.
Mas o fato é que o Ocidente (outra expressão que, no fim das contas, serve para dizer a respeito do mundo considerado “civilizado” mais do que do todo do hemisfério ao oeste de Greenwich) parece sempre ser “pego de surpresa” com notícias como a que se segue. Eis que no meio da madrugada, surge da TV o áudio com uma voz de timbre e ritmo já conhecidos:
“Um minuto de silêncio pelas vítimas do Mar Mediterrâneo. Quase seis horas de reunião e algumas divergências sobre como salvar as pessoas no mar. As verbas para as operações Triton, da União Europeia, e Posseidon, da Grécia, serão triplicadas. Os líderes decidiram que os países não serão obrigados a acolher imigrantes, mas devem ajudar quem está na linha de frente, como a Itália. A Grã-Bretanha ofereceu um navio e helicópteros, desde que ninguém vá para o Reino Unido. Quanto aos possíveis bombardeios aos barcos dos traficantes de seres humanos, só com a aprovação da ONU, declarou a primeira-ministra alemã, Angela Merkel. O premiê italiano, Matteo Renzi, anunciou que, na segunda-feira, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, estará em Roma para discutir a crise. O número de barcos navegando em direção ao sul da Itália diminuiu. Hoje chegaram quase 300 imigrantes à Sicília em botes. Os europeus também defenderam uma ação política e diplomática mais forte na África. Querem colaborar com os líderes africanos para tentar impedir a partida dos imigrantes.”
O texto (e a voz nele) era da correspondente Ilze Scamparini, para a matéria no “Jornal da Globo” de quinta-feira, 23 — na verdade apresentado na madrugada do dia seguinte —, à qual o apresentador William Waack fez uma abertura citando o número de “quase 2 mil” refugiados africanos mortos nas águas do Mar Mediterrâneo quando tentavam entrar na Europa. Só este ano. E estamos em abril. Uma pergunta a se fazer aqui, então: quantas vidas africanas precisam ser sacrificadas para merecer o olhar ocidental?
Entretanto, é preciso esclarecer que nem só africanos compõem a triste estatística. A travessia do Mediterrâneo serve a muita gente que não tem mais nada a perder, ou que perderia ainda mais se ficasse no lugar de origem: são pessoas que em grande maioria fogem de zonas de conflito, o que ocorre atualmente em grande escala principalmente na Síria e na Líbia, de forma mais aguda, e em vários pontos do continente africano, de modo mais crônico. O transporte dos refugiados é feito em botes ou barcos precários e superlotados, sem qualquer segurança e comandados por traficantes de humanos que se põem a navegar por lucros tão indignos quanto milionários. O passeio tem custo alto (pode chegar a mais de R$ 10 mil por cabeça) e risco tão grande quanto: a estimativa da ONU de que 21 mil pessoas empreenderam a aventura este ano diz que a possibilidade de morrer no trajeto está na casa de uma para 10.
Um brasileiro mais “herói”
Muitos chamam até hoje Ayrton Senna de “herói nacional”. Quem assistiu ao especial dos 50 anos de jornalismo da Rede Globo, semana passada (25/05), pode ouvir novamente essa expressão da boca de um de seus maiores propagadores, o narrador e dublê de falastrão Galvão Bueno.
Senna, pelo menos em vida, não foi herói algum. Um grande profissional no que fazia, mas longe de ser um redentor. O Instituto Ayrton Senna, criado por sua irmã, Viviane Senna, após sua morte, esse sim, tem um idealismo respeitável. Mas enquanto Senna fazia sua carreira nas pistas, outro brasileiro, o fotógrafo Sebastião Salgado, trabalhava de forma quase anônima mundo afora, especialmente em localidades pouco atraentes aos meios de comunicação, para registrar e denunciar crimes contra a humanidade.
Salgado pode ser visto como herói? Antes de ser considerado redentor, seu trabalho precisa ser entendido como o de um operário. Em 1984, quando Senna iniciava sua carreira, o mineiro de Aimorés iniciava a produção de “Sahel”, seu documento fotográfico sobre os horrores da guerra e da fome na África. Ele voltaria ao continente nos anos 90, para registrar refugiados de áreas de conflito, como fez em Ruanda e no Congo. Suas fotos contribuíram para que o mundo enxergasse aqueles dramas e forçaram ações.
Em 2014, o olhar de Salgado virou filme. De observador passou a observado, pela lente do diretor alemão Wim Wenders, que dirigiu “O Sal da Terra”, documentário sobre a vida do fotógrafo que acabou sendo bastante laureado. Entre as temáticas que o brasileiro explorou na vida, o continente mais pobre e esquecido do globo sempre ganhou destaque. Polemizado por tratar com plasticidade a verdadeira tragédia humana, Salgado mostrou que a exposição de seres humanos cuja existência e sofrimento são desimportantes aos olhos do mundo pode incomodar.
A verdade que fica e cala fundo é simples: circulando pela Terra, pelo país, pela cidade, há vidas mais importantes e menos importantes. Há tragédias maiores e menores, dependendo com quem ocorram. A morte de uma só pessoa pode parar um país inteiro, como a de Ayrton Senna em 1994, ou a da princesa Diana, três anos depois. Por outro lado, a morte de centenas de milhares de seres humanos, ou quatro naufrágios de grande porte no mesmo mar em uma semana causam menos muito mobilização midiática do que a queda proposital de um avião. Sabe-se que o mórbido interessa; o que assusta é que a morbidez precise preencher pré-requisitos para ser divulgada.
A fuga da África não vai parar de ocorrer. Será preciso cada vez mais força à Europa para estancar a hemorragia do continente negro e de outras partes desfavorecidas do mundo, que padecem de falta água, de pão e de paz. O mundo invisível, pobre e miserável está cobrando a fatura.
Elder Dias é jornalista formado pela Universidade Federal de Goiás e editor-chefe do Jornal Opção.
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