‘A pandemia potencializou um cenário de apagamento social da epidemia de Aids no Brasil’, alerta pesquisadora
No início do ano, uma mulher trans procurou a Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD), em Manaus, como fazem 15 mil pessoas anualmente. Foi diagnosticada com HIV, desnutrição e problemas de saúde decorrentes da infecção, e encaminhada para tratamento com infectologista na unidade, que costuma realizar 50 mil atendimentos anuais nessa especialidade. Com a pandemia, ela teve consultas sucessivamente remarcadas e ficou meses sem atendimento. Em junho, acamada, subnutrida e ainda sem acesso ao auxílio emergencial, foi despejada da casa onde morava de aluguel. Sobreviveu acolhida pela Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e Aids no Amazonas (RNP/AM).
Não foi o único caso de descaso no tratamento de paciente com HIV. Relatório divulgado pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) alerta para a interrupção dos serviços de tratamento e prevenção da infecção em 2020 no Brasil. O documento “Direitos em uma pandemia: Lockdowns, direitos e lições do HIV na resposta inicial à COVID-19” deu destaque ao cancelamento de consultas médicas e à dificuldade de acesso à Profilaxia Pré-Exposição ‒ a PrEP, método oferecido pelo SUS capaz de prevenir infecção por HIV.
Dados preliminares de outro levantamento promovido por segmentos da sociedade civil – “O impacto da Covid-19 nas políticas de tuberculose, HIV e Aids: um levantamento da sociedade civil brasileira”, realizado entre abril e julho – apontam queda no número de consultas, exames, recursos e profissionais disponíveis para a prevenção e tratamento de HIV/Aids durante a pandemia de Covid-19.
Os resultados convergem com o relatório da Unaids e com dados do Ministério da Saúde, que admitiu, em circular, uma redução de 17% no número de pessoas que iniciaram terapia antirretroviral (TARV) de janeiro a maio de 2020, em comparação com o mesmo período do ano anterior. “A pandemia potencializou um cenário de apagamento social da epidemia de Aids no Brasil”, alerta Carla Almeida, coordenadora da pesquisa. “A PrEP foi uma das políticas contra HIV/Aids mais impactadas durante a pandemia e se mostrou como um método que não segue um dos princípios do sistema brasileiro de saúde pública”, acrescenta.
Com entrevistas de gestores, profissionais e usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), o estudo indica queda de 60% de consultas e 51% de exames cancelados ou reagendados no âmbito de HIV/Aids, diminuição de 18% de recursos financeiros para os serviços e um impacto na redução de cerca de 50% no número de equipes técnicas durante o período apurado. “O levantamento consolida a percepção de que o que era empírico, o sucateamento de políticas públicas de saúde, está comprovado em dados, com metodologia, qualidade técnica e visibilidade nacional”, afirma a pesquisadora.
Representante da rede que acolheu a mulher trans em Manaus, e ela própria também vivendo com HIV, Vanessa Campos lamenta o descaso. “Ela só contou com a nossa solidariedade, porque o governo nos desampara. É triste e alarmante o quanto o governo federal não se fez presente a todos nós que vivemos com HIV e Aids. Se não fosse a sociedade civil buscando parcerias com ONGs, teríamos nossa saúde debilitada por falta de tratamento e de ajuda com alimentação”, aponta. Agora em dezembro, mês do combate à Aids, o Ministério da Saúde informou ter suspenso exames que identificam e monitoram possíveis mutações dos vírus do HIV (estágio mais avançado da infecção) e da Hepatite C. Os exames são oferecidos pelo SUS e detectam anticorpos dos vírus, auxiliando no tratamento adequado. O governo perdeu o prazo para contratar empresa para fazer o serviço.
O Brasil tem 920 mil pessoas que vivem com HIV. Mulheres negras são as que mais morrem em decorrência da Aids, registra o novo boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, de 1º de dezembro, Dia Mundial de Combate à Aids. Também aponta Porto Alegre como a capital brasileira que apresenta o maior índice de mortalidade, detecção e transmissão vertical (mãe para feto) por Aids do país. Bruno Kauss, pesquisador da UFRGS que atua na educação em prevenção ao HIV/Aids e direitos humanos, observou de perto uma diminuição de atendimentos na capital gaúcha causada pelo deslocamento de profissionais de saúde para a linha de frente contra a pandemia. “Muitos serviços de testagem para Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), durante a pandemia, reduziram o horário de atendimento e, consequentemente, o número de testagens”, diz Kauss, que também atua no monitoramento de dados de um Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) em Porto Alegre. “Aqui na capital houve essa interrupção no auge da pandemia, o que impactou a oferta da PrEP que, aqui, é restrita aos serviços especializados”, relata.
Problemas de gestão de recursos podem ser notados também em outras partes do país. No município do Rio de Janeiro, dois dos cinco CTAs da capital carioca tiveram atendimentos interrompidos ou reduzidos durante a pandemia. “O grande impacto da pandemia foi na testagem de HIV e sífilis. Pessoas não testadas podem não entrar em tratamento e podem transmitir ISTs, causando uma rápida progressão para doenças. É lamentável”, alerta Adele Benzaken, diretora-médica da Aids Healthcare Foundation (AHF Brasil). O método de prevenção combinada, citado pela médica, é uma estratégia que utiliza diferentes formas de prevenção de IST.
Adele destaca um possível aumento da incidência de transmissão vertical, quando a mãe passa vírus ou bactérias causadores de ISTs para o feto. “Também vimos uma redução na distribuição de preservativos pelo SUS e na realização de exames que medem a carga viral de pessoas que vivem com HIV”, afirma. Segundo a médica, muitos equipamentos utilizados para análise de amostras de sangue para linfócitos CD4, que medem nível de imunidade para o HIV, foram adaptados para avaliação de RT-PCR, os exames moleculares utilizados para detecção do novo coronavírus. “Vamos ter um aumento da mortalidade e da incidência de ISTs porque as pessoas podem não saber que estão com essas infecções”.
Estudo internacional divulgado pelo Imperial College of London, este ano, estima um aumento de 10% na mortalidade por Aids nos próximos cinco anos em países de renda baixa a média ‒ com o Brasil incluído ‒ pelo potencial impacto da pandemia de Covid-19 sobre pessoas com HIV. “A epidemia de Aids não deve ter uma resposta apenas no campo biomédico, mas também no campo político-social, com uma agenda que privilegie os direitos humanos e enfrente as desigualdades sociais”, diz Carla Almeida.
Segundo a pesquisadora, além de medicamentos, é necessário que o SUS também ofereça uma política robusta de prevenção e de acolhimento de pessoas que vivem com Infecções Sexualmente Transmissíveis. “Tudo o que vivemos no campo de HIV/Aids no Brasil foi construído sobre uma lógica de individualização do tratamento da doença, que, na verdade, é uma questão coletiva”, afirma.
*Arthur Bomfim – Estuda jornalismo na PUC-Rio. Atuou na Academia Brasileira de Ciências (ABC), no sindicato de professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (AdUFRJ), no Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil (Unic-Rio) e na Rádio PUC. Acredita na construção de direitos e acesso à saúde por meio do jornalismo e no SUS que acolhe, cuida e salva.
Fonte: Projeto Colabora
Publicação Ambiente Legal, 16/12/2020
Edição: Ana A. Alencar