Utilitarismo e hipocrisia comandam a política homicida no Brasil
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
Como Hannah Arendt constata em “Eichman em Jerusalém”, não há limites entre o totalitarismo e a mediocridade. A perversidade surge como um efeito ordinário, cotidiano e aceitável… do mais tosco utilitarismo monolítico.
O utilitarismo é pressuposto de qualquer regime totalitário, seja ele teocrático ou ideocrático. No nazismo, foi adotado como espinha dorsal da doutrina, sem rodeios. Já no populismo latino, permanece dissimulado sob o manto da hipocrisia.
É o que ocorre agora com o discurso utilitarista, hipócrita e espantosamente linear de Jair Bolsonaro, ante a pandemia.
A lógica homicida embutida no raciocínio é a seguinte:
1- A economia funciona como um moedor de carne humana: todo dia necessita de seres vivos, que se sacrificam para movimentá-la.
2- O Estado preserva os seus, porém mói os demais – é dali que retira os recursos para preservar os seus.
3- O excesso de desassistidos (devidamente moídos), é um “efeito natural” desse processo. No entanto, prejudica a ordem e desestabiliza o moedor de carne. Gera uma “gordura” social indesejável e cara.
4- Transferir renda e atender desassistidos implica em aumento da carga tributária para grandes fortunas e corporações financeiras. Também compromete financeiramente o Estado. Melhor seria, portanto, eliminar essa “gordura”.
4- Posto isso, a pandemia pode ser a “solução final” para o problema da gordura. Por ela, a elite engajada suporta a “gripezinha”, enquanto os fracos, os “maricas”, sucumbem à doença.
5- O “tratamento precoce” surge como a grande arma para a solução final. Ele não resolve nada para quem deve morrer e auxilia na redução da carga viral de quem – de todo modo, sobreviveria.
6- A “solução final” permite, por outro lado, que o moedor de carne volte a funcionar plenamente. Assim, o Estado pode massificar a contaminação, gerar “imunização de rebanho” entre os fortes e descartar os fracos, reduzindo a “gordura”.
7- Ou seja, nada de vacina! Quem pegar o vírus, que se trate precocemente – supere ou morra. Isso irá salvar a economia.
Contudo, nesse estreito campo de visão, o que “atrapalha” é a vacina. Visto nessa perspectiva, a imunização em massa torna-se inimiga da “solução final”.
Mas a perversão não para aí. A tragédia por que passamos no Brasil, gerou uma nova simbiose entre a enorme concentração de capital – em mãos de corporações apátridas, e o governante utilitarista amalucado, empenhado em manter a economia em pleno funcionamento.
A “Nova Ordem Mundial”, de início denunciada pelos “soberanistas-bolsonaristas”, de fato exclui uma grande massa indivíduos, que forma a gordura de desassistidos. Porém, em face á pandemia, o moedor de carne da economia – sem prevenção ou restrições (como quer o bolsonarismo), termina promovendo a tão sonhada “seleção natural”, reduzindo a gordura inconveniente por meio do “cancelamento de CPFs” em massa – hoje na base de 1500 por dia.
A equação macabra é perfeita, mas a ciência e a medicina, ao que tudo indica, surgiram como incógnitas que atrapalham os cálculos e impedem o resultado.
Não por outro motivo, laboratórios, organizações de saúde e médicos, tornaram-se os alvos do ódio fascistóide.
Não se tenha qualquer dúvida: esse é o cerne do pensamento de Jair Bolsonaro. O restante do discurso é mera tautologia – uso de palavras diferentes para expressar, dissimuladamente, sempre a mesma ideia.
Thomas Babington Macaulay, grande historiador do Século XIX, anotava que os seres humanos tornam-se racionais na medida em que preferem o que preferem.
A teoria econômica, no sentido observado por Macaulay, constrói-se como um gigantesco floreado que expressa uma evidência banal. Um belo objeto intelectual, equilibrado, cujas potencialidades explicativas e preditivas são, no melhor dos casos, duvidosas.
O discurso econômico utilitarista, construído sobre uma coluna empírica propositadamente ausente, precisaria de mais que um toque de varinha mágica para reencontrar, afinal, o solo empírico que julgou dispensável à partida.
Talvez seja essa a “razão” de quadros intelectualmente relevantes, como o Ministro Paulo Guedes, ainda confiarem em conduzir alguma lógica econômica casada com o utilitarismo bolsonarista.
O problema é que, tal qual ocorreu na Alemanha dos anos 1930, com Hjalmar Schacht e Von Papen em relação a Hitler, o “casamento” pode resultar em uma descomunal tragédia.
A frase da Charge que ilustra este artigo, portanto, transcende em muito o humor.
Utilitarismo e hipocrisia comandam a política homicida no Brasil
A conferir.
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. É Editor-Chefe dos Portais Ambiente Legal, Dazibao e responsável pelo blog The Eagle View. Twitter: @Pinheiro_Pedro. LinkedIn: http://www.linkedin.com/in/pinheiropedro
Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal, 04/03/2021
Edição: Ana A. Alencar
As publicações não expressam necessariamente a opinião da revista, mas servem para informação e reflexão.