Cerca de 40 mil mamíferos morrem atropelados todos os anos só no estado. No país com a 4ª maior malha rodoviária do mundo, dados são desconhecidos. Projetos buscam reduzir impacto.
Por Robson Rodrigues
O Estado de São Paulo finalmente pode dizer que tem seu primeiro viaduto vegetado adequado para travessia segura de animais. A estrutura fica na Rodovia dos Tamoios, no município de Paraibuna (SP), e faz parte de uma das ações de mitigação e compensação feitas por conta das obras de duplicação do trecho de serra, a maior obra rodoviária do Brasil.
A passagem começou a ser construída em 2015 pela Dersa (Desenvolvimento Rodoviário S.A.). Em 2018 iniciaram o processo de arborização feito pela empresa PlantVerd — em que a estrutura se tornou uma continuação da floresta — e, em junho de 2021, o viaduto ficou totalmente adaptado ao fluxo de animais silvestres e acaba de passar para a administração da Concessionária Tamoios.
De acordo com a Dersa, a passagem custou R$ 2,4 milhões. Ela incluiu cercas direcionadoras para guiar os animais e foram plantadas árvores nativas, como cambuci, goiaba, pitanga e uvaia, espécies que produzem frutos atrativos para alguns animais e consideradas de pequeno porte, para que mesmo na idade adulta não comprometam a estrutura física da passagem.
O diretor-executivo da PlantVerd, Antonio Borges, conta que o viaduto está estrategicamente na região do Parque Estadual Serra do Mar, a maior porção contínua preservada de Mata Atlântica no Brasil, e foi implantada num local chamado Serrinha, que atravessa um fragmento florestal. Os estudos identificaram a presença de algumas espécies importantes, como gato mourisco, antas, iraras e jaguatiricas.
A maioria das passagens para animais no Brasil são túneis que cruzam as rodovias e ferrovias por baixo. No entanto, a luminosidade e as dimensões podem fazer com que nem todas as espécies se sintam à vontade em usá-las. “O trabalho visou eliminar a influência do homem, pois um animal quando sente o cheiro humano não vai atravessar”, diz Borges.
O executivo conta que estradas e rodovias impactam o ambiente e a biodiversidade no entorno através dos efeitos de barreira. As passagens possibilitam a conectividade de habitats, evitando fragmentos de floresta limitados que isolariam populações de espécies ou separariam os animais de fontes de água e alimento.
“É preciso ter troca genética da fauna para que a população de um lado se reproduza com a outra e tenha animais geneticamente mais resistentes. Isso se chama fluxo gênico e é fundamental para a sobrevivência das espécies. Esses animais carregam também banco genético da flora e são extremamente importantes para a manutenção da mata Atlântica, garantindo a biodiversidade”, explica.
Redução de acidentes
Outro objetivo da passagem é evitar que os bichos cruzem a via e se envolvam em acidentes. A relação conflituosa entre animais e rodovias é nítida quando se analisa os números. Só no estado de São Paulo, cerca de 40 mil mamíferos de médio e grande porte morrem atropelados todos os anos. Os dados são um levantamento feito pela pesquisadora do Centro de Conservação e Sustentabilidade do Smithsonian/EUA, Fernanda Abra, para seu doutorado.
“A rodovia está inserida em um contexto ambiental muito sensível, que é a Serra do Mar. O bioma é um hotspot, um dos poucos lugares do mundo com uma rica biodiversidade, mas também uma das áreas do planeta mais ameaçadas pelo homem”. Abra avalia que esse é um importante passo dos administradores da rodovia em suas operações por conta do contexto ambiental sensível. Ela diz que São Paulo tem um cenário mais favorável à fauna em relação às medidas para reduzir acidentes com animais e aponta alguns caminhos para adequação das rodovias.
“O cercamento impede que o animal cruze a via e o encaminha a uma passagem segura. Juntas, essas soluções podem reduzir em até 86% a média de atropelamentos de animais de médio e grande porte”, afirma.
Fernanda também é sócia-diretora da ViaFauna, empresa que atua no mapeamento de risco de fauna e medidas de mitigação, e seus estudos calculam que o estado de São Paulo gasta em torno de R$ 56 milhões por ano para atender acidentes nas vias relacionados a animais. Para ela, é preciso avaliar obras como essa também pela perspectiva da segurança do tráfego.
“Um acidente com uma anta, por exemplo, pode gerar perda total do veículo, morte de uma espécie ameaçada de extinção, risco às vidas humanas, interrupção do tráfego, mobilização de equipes de segurança e uma série de outros custos”, diz.
O objetivo é que a mortalidade dos animais atropelados caia, mas a administração da rodovia Tamoios não revela o número de ocorrências com animais. Segundo a concessionária, ao longo da pista existem outras 14 passagens. Dez subterrâneas prontas, duas aéreas e outras duas em construção. Para essa nova passagem, a companhia ainda não faz o monitoramento da fauna, o que torna impossível comparar a redução de acidentes envolvendo animais.
Empreendimentos mais sustentáveis
A pressão sobre os ecossistemas tem feito com que as agências ambientais, Ministério Público e terceiro setor exijam que os novos empreendimentos tenham o menor impacto possível. A alta mortandade de animais nas rodovias GO-239 e na GO-118, em Alto do Paraíso, que circundam o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, motivou uma ação civil pública interposta pela Associação dos Amigos das Florestas (AAF).
A medida determinou que a Agência Goiana de Infraestrutura e Transportes (Goinfra) implante seis passagens aéreas e 15 subterrâneas, além de redutores de velocidade para a proteção dos animais. A ação é inédita em Goiás e vai custar R$ 13,8 milhões. Essas são as primeiras passagens de fauna do estado em áreas de preservação ambiental. A vice-presidente da AFF Flávia Cantal conta que essa região do cerrado tem uma taxa alta de endemismo e é um dos parques mais importantes do Brasil.
“São milhares de animais mortos por atropelamento todos os anos. É um impacto pior do que a caça e o tráfico de animais”, calcula. “Em anos de pesquisa, mapeamos os corredores de fauna para a implantação dessas estruturas”. Cantal elogia a coragem da Agência Goiana, pois essa ação mitigatória sofre resistência de parte da população local.
A assessora estratégica da Goinfra e mestre em direito ambiental, Gabriela De Val, conta que enfrentou dificuldades e resistência de pessoas que enxergam a novidade com desconforto. “Não seria diferente quando trazemos uma ação inédita para o Estado: as instalações das passagens de fauna, ainda mais em um local de turismo internacional, envolto pela questão mística atribuída a Alto Paraíso”, diz.
Responsabilidade ambiental
O gerente de Avaliação de Empreendimentos de Transporte Rodoviário da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), Camilo Fragoso afirma que “hoje todas as novas obras de infraestrutura no estado de São Paulo já nascem ambientalmente responsáveis”. Segundo Fragoso, a ideia é que a Cetesb tenha uma gestão com medidas mitigatórias em todos os 22 mil km de rodovias estaduais de São Paulo.
No caso das obras da Tamoios, a rodovia tem importância estratégica, uma vez que liga um dos principais parques industriais do estado ao Litoral Norte. Entretanto, a região também tem reservas naturais importantes com rica biodiversidade e alto sequestro de carbono. Por conta dos contornos rodoviários, a obra precisou fazer ações de compensação. A PlantVerd já reflorestou 430 hectares de flora nativa da região, a maior restauração do Brasil em 2020 e um dos maiores já feitos no estado de São Paulo.
“A importância da compensação ambiental é porque a Mata Atlântica fornece uma série de serviços ambientais ao Estado de São Paulo, como alimentos, água, regulação climática, proteção e fertilidade do solo”, diz Antonio Borges, da PlantVerd.
Para a diretora de Avaliação de Impacto Ambiental da Cetesb, Renata Ramos, o reflorestamento alinha infraestrutura e mobilidade do tráfego com a sustentabilidade ambiental. “Fizemos vistoria na região dos plantios. Com três anos de implantação, as mudas estão vigorosas e a tendência da Cetesb é dar como termos cumpridos porque a floresta vai voltar”, diz.
Ela acrescenta que diversos animais foram avistados novamente na região como antas, preguiças, serpentes, porco-do-mato, aves, cotia, entre outras espécies dispersoras de sementes.
Perdas “invisíveis”
Não existem no Brasil estudos de abrangência nacional de longo prazo mapeando o número de animais que se envolvem em acidentes. A reportagem questionou o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) sobre quantas passagens de fauna existem nas rodovias federais do Brasil.
A autarquia respondeu em nota que não mantém um banco de dados com levantamento das estruturas de proteção à fauna, mas que na maior parte das rodovias e ferrovias construídas após 1981 foram incorporados “bueiros celulares de concreto, como solução de drenagem, com dimensões capazes de permitir a passagem de vertebrados silvestres de médio porte”.
Diante desse apagão de informações, o que se sabe é que o país tem cerca de 20% de todas as espécies do planeta e possui a quarta maior malha rodoviária do mundo. Algumas iniciativas para proteção da fauna têm estudado e reduzido o impacto das rodovias na vida animal.
É o que tem feito o presidente do Instituto de Conservação de Animais Silvestres (ICAS), Arnaud Desbiez. Ele monitorou quase 1200 km de rodovias pavimentadas no Mato Grosso do Sul entre 2017 e 2020 para entender o efeito das estradas sobre a população de tamanduás-bandeira e contabilizou quase 12.500 carcaças de animais.
Desse total, 761 são de tamanduás. “Esse número é subestimado, pois considera só estradas pavimentadas, que representam 15% das rodovias. Isso está impactando a taxa de crescimento da população de tamanduás”.
O estudo demonstrou que esses atropelamentos são por falta de medidas de mitigação corretas, já que as vias monitoradas têm passagens para os animais, mas não possuem cercamento para encaminhar os bichos até uma travessia segura. “Faz três anos que temos um projeto de reabilitação e soltura de tamanduás-bandeiras. Os filhotes órfãos têm ajudado a explicar à sociedade o impacto das rodovias”.
Fernanda Abra avalia que o cercamento precisa ser adequado, já que que em muitas rodovias foram feitas tentativas de afastar os animais da estrada, mas são ineficientes, pois “tatus cavam, veados pulam, quatis escalam e antas e capivaras arrombam as cercas”.
Um exemplo que deu certo foi no Paraná. A coordenadora executiva do Projeto Onças do Iguaçu, Yara Barros, conta que uma ação simples na rodovia do Parque Nacional do Iguaçu, que leva até as Cataratas, zerou a morte de animais por atropelamento.
“Não é todo veículo que pode entrar no Parque Nacional do Iguaçu. Os carros e ônibus que têm acesso recebem um GPS que controla a velocidade para proteger a fauna em geral. Desde 2009 não há registros de mortes”, diz. Todavia, os atropelamentos em outras vias do Oeste do Paraná onde não há medidas de mitigação são frequentes e ela sempre é acionada a atender ocorrências com animais.
Fora do Brasil, os melhores exemplos para o mundo são da Holanda e do Canadá. Esses países foram amplamente cortados por rodovias e ferrovias, gerando um isolamento geográfico nos biomas locais. Todavia, esse problema vem sendo amenizado com diversos caminhos e passagens para o trânsito seguro de animais.
Fonte: UmSóPlaneta
Publicação Ambiente Legal, 02/08/2021
Edição: Ana A. Alencar
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